O risco do pensamento

Pequeno ensaio sobre um grande momento
Ilustração: Tiago Silva
01/10/2014

Na primeira década do século 21, tive a sorte de atuar como editor de três das quatro edições do Rumos Jornalismo Cultural, criado pelo Itaú Cultural. Ao meu lado, a companhia atenta de Babi Borghese. Guiando-nos, sempre, Claudiney Ferreira. Jovens estudantes cheios de fôlego — alguns dos melhores dentre eles assinam as reportagens deste Dossiê — me ajudaram a tomar contato com um jornalismo cultural em plena metamorfose. O século 20 ficara para trás. Novos desafios tecnológicos nos lançavam em uma era de criatividade, incertezas e inquietação. Realizado online, o laboratório de jornalismo cultural oferecido pelo programa fazia parte desse momento de ruptura em que práticas consagradas eram colocadas em questão e em que novos caminhos, não só para o jornalismo, mas também para a cultura, se desenhavam. Selecionados das salas da universidade, esses alunos nos trouxeram sua perplexidade, sua disposição para o risco, sua sintonia com os novos tempos informatizados, arrastando-nos, assim, para o próprio coração da mudança. Eles me deram, sobretudo, coragem e lucidez para pensar e ver o novo. Para testemunhar a mudança em seu estado nascente, ali onde novas gerações se confrontavam — já sem os vícios do passado — com uma realidade futurista.

Mas é preciso observar com calma essas transformações. É preciso, sobretudo, pensá-las. Temos, com frequência, a sensação de que o mundo explodiu, gerando uma energia que já não conseguimos controlar. A vida política e social abandonou as velhas rotas. As sucessivas novidades do mercado e os apelos compulsivos da publicidade, que invadem todas as brechas do cotidiano, nos asfixiam. Não temos pernas para acompanhar os cada vez mais acelerados avanços da tecnologia. O mundo nos escapa — e esse sentimento, de fuga veloz, de fragmentação e de precipitação define a cultura contemporânea. O próprio conceito de cultura já não corresponde ao domínio das tradições. A expansão alucinada da indústria cultural, assim como os experimentos cada vez mais radicais da tecnologia, subverteu, por completo, nosso conceito de cultura. Com o surgimento da nova realidade virtual, os domínios tradicionais da cultura se esfarelaram. Mais do que nunca, tornou-se muito difícil dizer o que é e o que não é cultura.

Transformações
Os efeitos dessas profundas transformações sobre o jornalismo cultural foram devastadores. Primeiro porque, sem condições mais de definir com clareza os domínios da cultura, os suplementos e jornais culturais, em geral, perderam o horizonte. Para a maior parte deles, hoje, tudo é cultura: culinária, moda, consumo, gastronomia, sociedade, astrologia, terapias, etc. A cultura é confundida, ou reduzida, ao entretenimento. Lá se vão os tempos em que a cultura se resumia, antes de tudo, aos domínios clássicos da crítica — de teatro, de literatura, de cinema — e à divulgação dos bastidores das artes e da produção de espetáculos. O resultado é que a maior parte dos cadernos culturais se desfigurou. A cultura clássica perdeu espaço, isso quando não desapareceu. Em muitos casos, os suplementos culturais tornaram-se irreconhecíveis. Imaginamos que possam ser tudo, menos suplementos culturais. A cultura passou a ser tudo. E no domínio do tudo, onde já não existem diferenças, coisa alguma pode, de fato, existir.

O golpe mortal chegou com a expansão da web. A internet foi decisiva no questionamento radical do conceito de autoria. Em um ambiente aberto em rede, que iguala produtor e consumidor, na internet qualquer um pode ser autor e, ao mesmo tempo, receptor (leitor, espectador, etc.) da obra alheia. O duplo papel diluiu as fronteiras clássicas entre o produtor de cultura (o “artista”) e o consumidor (a “plateia”). Em contraste, o jornalismo cultural impresso — seja em suplementos, segundos cadernos ou publicações independentes —, que insiste em seguir os padrões da cultura tradicional, ganhou, subitamente uma aparência “antiga”. Mas será isso mesmo? Ou não nos tornamos, nós também, incapazes de enxergar novo? Em tempos líquidos, para citar a expressão consagrada do pensador polonês Zygmunt Bauman, tempos em que a cultura é tragada pela fragmentação, pela rapidez e pela disseminação caótica, retornar à via do pensamento é não só uma atitude saudável, mas salvadora. Pensar, além de mais importante, se torna mais difícil.

Não quero dizer com isso que a nova realidade deva ser negada — ao contrário. Quero dizer que ela deve ser pensada. Depois do deslumbramento inicial com os novos aparatos tecnológicos, que continuarão a se expandir e a nos surpreender, chegou o momento, talvez, de retomar o controle da situação, em vez de nos deixar arrastar pela aluvião de que Bauman nos fala. Não se trata mais de tentar comprimir a nova realidade — que é veloz, incontrolável e irreversível — nos desgastados parâmetros do pensamento tradicional. Em vez disso, o jornalismo cultural, dentro ou fora da internet, tem hoje o papel de desenhar novas maneiras de pensar e de observar criticamente a cultura (as culturas, pois estamos em tempos complexos e plurais) em que vivemos. Cabe a ele, em resumo, redesenhar o mundo.

Pensar e imaginar
Muitos se iludem achando que, com a expansão do mundo em rede, desaparece a noção de Sujeito — isto é, o indivíduo pensante e dono de si, aquele que “sabe o que quer”. Acreditando que estamos condenados ao puro fragmento e à mais miserável anomia, e partindo do princípio de que habitamos agora uma espécie de roda viva, eles concluem que a própria ideia de homem se esgotou. O que é uma visão distorcida da tecnologia, como se ela viesse contra nós, e não a nosso favor. Nesse suposto mundo sem leis e sem regras, de nada mais serviria pensar, pois estaríamos todos destinados apenas a acelerar, a propagar e, talvez, a enlouquecer. Nesse mundo hiperinformado, já não existiriam mais distinções entre os vários setores culturais, uma vez que estaríamos todos sujeitos — aqui no sentido de submetidos — a um único e indecifrável emaranhado de conexões. Os que nisso acreditam se esquecem que o pensamento continua a funcionar da mesma maneira. Continuamos a pensar — ainda que de outras maneiras; continuamos a imaginar — ainda que os limites expandidos da imaginação, às vezes, nos assustem. Continuamos vivos. A tecnologia não nos matou, ao contrário, ela nos alimentou e fez crescer.

As publicações culturais que se espalham pelo Brasil de hoje, dentro ou fora da internet, dão prova disso: o pensamento nunca foi tão importante. É o pensamento crítico que define, antes de tudo, as condições e os atributos de um artefato cultural. Nunca foi tão importante refletir, com atenção e entusiasmo, a respeito do conjunto dos padrões, crenças, superstições e comportamentos que nos definem enquanto humanos. Mais ainda: a arte — que para muitos, pelo menos em sua forma original, parece “morta” — nunca foi tão necessária como elemento catalisador e gerador de significados. Sem compromissos com sistemas conceituais, com crenças metafísicas e com princípios universais, a arte é, por excelência, o lugar da liberdade de pensamento e da transformação. Em um mundo que (para o bem ou para o mal) explode e se fragmenta, nunca precisamos tanto dela. Ao privilegiar as artes, em consequência, o jornalismo cultural se torna não decadente, ou inútil, mas fortemente renovador.

As velhas tradições culturais foram renovadas pela aceleração e fragmentação tecnológicas. Mudam os suportes — no lugar do velho livro em papel bíblia, temos hoje o ebook — mas a literatura continua a ser a mesma. Não importa se lemos Dom Quixote no tablet ou numa velha coleção em capa dura: o texto de Miguel de Cervantes sobrevive, incólume, em ambas as plataformas e não muda por causa delas. Ao contrário, a expansão das novas tecnologias, em vez de matar, expande as possibilidades dos campos tradicionais da cultura. Os recursos digitais invadem o teatro, que já chegou até ao Facebook; o cinema pode ser admirado em um iPhone; as artes visuais passam por profundos movimentos de ruptura. No entanto, as artes tradicionais, que nos alimentam desde a Antiguidade, continuam a nos emocionar e a nos mobilizar. Continuam a se situar, portanto, no coração da cultura — e em consequência, a merecer um papel central, como objetos privilegiados, no jornalismo cultural.

O repórter cultural, ele também, se equipa com novas tecnologias, que expandem suas possibilidades de ação, mas que não substituem a eficácia, ou o fracasso, de seu pensamento. O repórter continua a ser o sujeito de sua reportagem, que permanece marcada por seu olhar pessoal, pelas perspectivas em que ele escolhe atuar e, sobretudo, por sua capacidade crítica. O diálogo com a realidade — ainda mais em épocas de jornalismo em tempo real — por certo se alterou. O repórter precisa digerir os fatos e artefatos com mais rapidez, mas continua com a necessidade de se apossar deles. Faz isso com mais recursos e novos olhares, mas continua a ser o sujeito da ação. Por mais radicais que sejam, as novas tecnologias não excluem o humano, ao contrário, o expandem. Assim como não está mais autorizado a desprezar e descartar as novas tecnologias, sob pena de perder o avanço da história, o jornalista cultural não foi, do mesmo modo, “apagado” por elas. Em vez do 14-Bis, hoje ele pilota um jato transcontinental — mas permanece na posição de piloto.

Capacidade crítica
O repórter cultural, ele também, se equipa com novas tecnologias, que expandem suas possibilidades de ação, mas que não substituem a eficácia, ou o fracasso, de seu pensamento. O repórter continua a ser o sujeito de sua reportagem, que permanece marcada por seu olhar pessoal, pelas perspectivas em que ele escolhe atuar e, sobretudo, por sua capacidade crítica. O diálogo com a realidade — ainda mais em épocas de jornalismo em tempo real — por certo se alterou. O repórter precisa digerir os fatos e artefatos com mais rapidez, mas continua com a necessidade de se apossar deles. Faz isso com mais recursos e novos olhares, mas continua a ser o sujeito da ação. Por mais radicais que sejam, as novas tecnologias não excluem o humano, ao contrário, o expandem. Assim como não está mais autorizado a desprezar e descartar as novas tecnologias, sob pena de perder o avanço da história, o jornalista cultural não foi, do mesmo modo, “apagado” por elas. Em vez do 14-Bis, hoje ele pilota um jato transcontinental — mas permanece na posição de piloto.

Por tudo isso, fica muito difícil levar a sério os vaticínios daqueles que, desiludidos, apregoam a morte do jornalismo cultural. Não: ele não só continua vivo, como se transformou, alargou seu domínio sobre a realidade, incorporou novas técnicas e procedimentos. A noção de Sujeito se transformou, mas o Sujeito continua a existir. Em definitivo: publicações de sucesso e de respeito, dentro ou fora da internet, dão conta de que o jornalismo cultural não se esgotou. Talvez a imprensa — por pressões de mercado, de moda, de princípios — já não lhe dê o destaque e o mérito que lhe é de direito. Até porque, apesar da explosão da tecnologia, que alterou radicalmente nossa noção de cultura, continuamos imersos em uma cultura — ou talvez, para ser mais preciso, em um caldeirão de culturas que interagem e que se conectam febrilmente. O jornalismo se tornou mais febril — porque a cultura se tornou mais exaltada e veloz. Lida com novos instrumentos, novos recursos, novas perspectivas, mas continua a existir.

Minha experiência pessoal com os jovens do Rumos Jornalismo Cultural me convenceu, em definitivo, de que o jornalismo cultural conserva um lugar privilegiado no mundo da mídia. Ponto de entrecruzamento entre a formação e a informação, entre a cultura e a sociedade, e ainda que muitas vezes desprezado pelas circunstâncias, ele continua a ter um papel decisivo na relação dos homens consigo mesmos. A transformação não veio para matar, mas para alimentar. A mudança não propõe o fim do jornalismo cultural — tampouco o descarte da cultura — mas, ao contrário, sua propagação. Um fio secreto liga jornalismo e cultura: o pensamento. Quanto mais complexo se torna o mundo, mais urgente é pensá-lo. Claro: uma realidade instável e acelerada exige de nós um novo pensamento, de urgência e risco. O risco passou a ser, talvez, a palavra chave. Sem ele — sem que o sujeito se coloque, ele mesmo, em risco — já não é mais possível pensar.

Rumos Itaú Cultural – Jornalismo Cultural
Programa de estímulo para professores e estudantes de Comunicação Social de instituições brasileiras de ensino superior, que contemplou 54 universitários e 25 docentes ao longo de quatro edições (2004-2005, 2007-2008, 2009-2010 e 2011-2012). Gestão: Claudiney Ferreira; coordenação: Babi Borghese; editores dos Laboratórios para os estudantes selecionados: Israel do Vale (2005) e José Castello (2008, 2010 e 2012); mediadores dos Fóruns de Discussão para os professores contemplados: Alex Primo (2010) e Nísio Teixeira (2012). Saiba mais em http://novo.itaucultural.org.br/rumosjornalismocultural/rumos-jornalismo-cultural.html

Dossiê Rumos Jornalismo Cultural no Rascunho
Curadoria de Conteúdo: José Castello (Curitiba – PR); produção editorial: Babi Borghese (São Paulo – SP); Ilustrações: Tiago Silva (Campo Mourão – PR); realização: equipe do Itaú Cultural.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho