O retorno do filho torto

Em romance de estreia, Tito Leite mostra como, após tentar viver de arte numa metrópole hostil, um nordestino volta à dura realidade do interior
Tito Leite, autor de “Dilúvio das Almas” Foto: Domingos de Melo
01/07/2022

Ele pinta quadros e vende artesanato nas ruas de São Paulo. Leonardo, narrador e protagonista de Dilúvio das Almas, é um sujeito perdido pelas esquinas da metrópole, nordestino chegado há muitos anos da pequena cidade cujo nome intitula o romance.

Eram poucos os que davam atenção ou mesmo notavam que eu estava presente. Afinal, eu era apenas um baiano. Aqui eles chamam todos os nordestinos de baianos. Uma vez escreveram no muro de uma construção Vamos colocar os baianos no pau de arara. Não era do caminhão que estavam falando.

A invisibilidade experimentada na capital paulista movimenta o desejo de se pôr em marcha novamente. Afinal, trata-se de uma gente indesejada, que constrói a riqueza dos outros e sente na pele a dor da exclusão. Na literatura brasileira, ele faz parte de uma galeria que inclui tanto a Macabéa clariceana, de A hora da estrela (1977), quanto a personagem Rísia, de As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto.

À semelhança da protagonista de Felinto, o narrador decide voltar à cidade natal, de onde saíra ainda adolescente sem dizer adeus. Juazeiro do Norte, Canudos e Recife são escalas por onde passa esse andarilho antes de chegar à sua terra, o lugar dos esquecidos. O retorno desse filho torto ocupa o centro da trama, que arrebata pela força da história, mas também pelo apuro formal e o trabalho com a linguagem, construída em torno de frases curtas que vão nos tirando o fôlego à medida que avançamos junto ao corpo cansado de Leonardo.

Não se professa o discurso do reencontro feliz. A família passa por numerosas dificuldades e a cidade do interior não é idílica, mas marcada por antigas práticas de dominação e coronelismo. O nome da localidade evoca a narrativa bíblica, da enchente ameaçadora e da tentativa de salvação. No texto, sagrado e profano se encontram a cada tanto e nos oratórios de Dilúvio das Almas há gente que reza desejando o mal a quem lhe feriu. Da boca do narrador vem o aviso: lá não há inocentes e a danação é quase garantida. Vinganças, violência e a difícil tentativa de amar irão marcar a trajetória do protagonista.

Caos e aceitação
A cidade é retrato na parede que já não dói: “Se eu fosse escrever um livro com personagens desse lugar, colocaria a dedicatória Para minha cidade, que nunca amei”. No volume que temos em mãos o agradecimento se dirige a outro alguém. Sob a bênção maldita de Rimbaud, Leite constrói um personagem que acaba encarando o dilúvio de peito aberto, depois de tanto escapar dele.

A relação com a própria origem é hostil, mas por outro lado se faz presente uma ambientação saborosa, de um certo Brasil que cheira a sabonete Palmolive, tem gosto de cajuína e faz soar a música de Reginaldo Rossi. Na paisagem lírica do semiárido ainda se busca o amor. Uma gramática da pele se instala, em belas passagens em que a linguagem não tem medo de dizer do prazer do corpo em sua dimensão erótica.

Apesar do ofício como religioso, em sua atuação como monge beneditino, Leite não faz da escrita lugar para puritanismo ou oportunidade para pregar bom comportamento. Esse mundo marcado pela rusticidade e pelas leis do desejo em alguns momentos lembra Marçal Aquino — sobretudo aquele de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005). À semelhança de alguns dos personagens do autor paulista, Leonardo é um homem que não se envergonha de amar as mulheres. “Uma cidade sem motel é uma cidade triste”, afirma.

Ao estrear no gênero romance, Tito Leite está acompanhado de outras vozes talentosas de sua geração, como Socorro Acioli, Jarid Arraes e Itamar Vieira Junior, em cuja prosa se faz presente a temática social aliada a uma determinada geografia do nordeste brasileiro. Não à toa há uma cena em que o narrador joga o diploma no rio São Francisco, que acolhe com indiferença o documento agora inútil. É preciso arrumar um emprego e por ali ninguém exige ensino superior para lecionar, observa, ecoando a poética cabralina da educação pela pedra.

Pautado por um ritmo encadeado, o romance se encaminha para um final que explode em sangue e fogo, em que o retorno à terra natal se dá pela integração ao avesso. Leonardo encontra na lavoura dos donos do poder a imagem dilacerante desse sertão contemporâneo. Diante da truculência, é preciso estar atento e forte, como alerta a canção de Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Aquele que na cidade grande mostrava sua faceta de artista e pensador, na volta ao lar incorpora os atributos que enxerga ao seu redor. Mas o tom bíblico da referência à sarça ardente fala da impossibilidade de redenção e a romã, o fruto da paixão, dará lugar ao embate direto com uma realidade brutal: “Eu era um corpo, e a vida, uma ferida aberta”.

Dilúvio das Almas
Tito Leite
Todavia
110 págs.
Tito Leite
Nasceu em Aurora (CE), em 1980. É autor dos livros de poesia Digitais do caos e Aurora de cedro. Mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e monge beneditino. Vive em um mosteiro em Olinda (PE).
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho