O retorno do desejo

Amor em dois tempos, de Livia Garcia-Roza, apresenta uma trama simples, de texto enxuto que flui com leveza
Livia Garcia-Roza, autora de “O amor em dois tempos”
07/07/2015

O narrador de Dom Casmurro resolve construir uma Casa aos moldes da que viveu na adolescência e onde partilhou os primeiros impulsos amorosos com sua Capitu. Afirma: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois senhor, não consegui recompor nem o que foi nem o que fui”.

O romance O amor em dois tempos, de Livia Garcia-Roza, também tematiza o encontro amoroso e a passagem do tempo na construção da vida dos personagens. Entretanto, não há um fim evidente de atar duas pontas da vida, muito embora, por vezes, por obra do acaso, isso pareça ocorrer. Como não havia determinação da protagonista para esse fim, o que se desenrola a partir do reencontro com o primeiro amor não pode ser enquadrado em uma expectativa tão pretensiosa. Inevitável, porém, suscitar questões: terão conseguido os personagens recompor o amor que foi interrompido na juventude? Terá o reencontro recomposto o que foi cada um? Entre os dois tempos o que contou, além das cinzas e do esquecimento? “Dizem que a função da memória é também a de esquecer. Espero que essa função seja ativada em meu cérebro, se é que alguma coisa ainda se ativa em mim.”

O que parece valer como princípio desse fio de tempo que se descortina na construção da narrativa, como insinua a epígrafe introdutória do livro, é que “o amor continua porque não sabe onde parar…”. Da mesma forma, o romance parece continuar para além das suas cento e noventa e nove páginas.

No presente narrativo Vivian, a narradora e protagonista, assim se descreve, no início e na última frase do livro: “Sou uma senhora, não propriamente idosa, mas uma senhora”. Surpreendida com a morte do marido, passa a viver novas experiências e reelabora o que foi sua vida até ali. A partir desses fragmentos de memórias é que busca também construir os personagens, a começar por Conrado, seu marido. A perplexidade da viuvez lança-a à realidade e evidencia sua solidão. “Conrado não nascera para o carinho, o abraço, a lentidão dos afetos. (…) ele não gostava de manifestações efusivas. // E eu, ao contrário dele, praticamente só sabia demonstrar minhas poucas satisfações com alarido.” Contudo, o casamento permanece de pé até a morte do parceiro. Situações de instabilidades não faltaram. Mas, Vivian se manteve firme, como recomendara o pai, observando as primeiras dificuldades do casal: “Fique firme, minha filha. Fique firme”.

A aridez dessa relação e as diferenças de perspectivas fizeram a existência de Vivian, “de dias todos iguais”, um tédio. “Eu me sentia cada vez mais só, muito só, e comecei a querer um filho.” O filho veio, com ele, os afazeres e as preocupações de mãe. Ele cresceu e logo foi viver sua vida adulta. Na protagonista, o vazio só não se instalou de vez, porque num belo dia, ela percebe: “um solzinho raiou na minha cabeça e me ocorreu a ideia de escrever”. A escrita passou a ser companheira de solidão e ajudá-la a conferir sentido aos seus dias e pegar o gosto por contar histórias.

A morte do marido representa uma reviravolta para Vivian. Ela recebeu dele a incumbência de transportar suas cinzas para Salvador, a cidade onde ele nascera. Muito da ação que é empreendida, a partir daí, vem dos esforços e percalços para a realização da tarefa. Hilda é a amiga que se propõe a acompanhá-la. E é na convivência durante a viagem que passa a descobrir que a amiga é quase outra pessoa. Na intimidade do convívio, Hilda revela-se para a protagonista que acaba tendo que caminhar com as próprias pernas. Suas manias, sua inveja, seu rancor e mau-humor atrapalham muito. E muito ajuda quem não atrapalha. Precisava ser mais benevolente com a amiga. Afinal, “se o tempo nos tira tudo, em compensação nos deixa mais compassivos, benevolentes, com o olhar mais generoso”. Assim deveria ser, mas nem sempre se consegue. Foi preciso seguir sem a amiga.

Tudo muito bem, até que no meio do caminho havia Laurinho… que não era propriamente uma pedra, mas o primeiro amor que chega prometendo encantamento primaveril numa terra ressecada pelo luto e pelo tempo acumulado em carências e frustrações.

Com imagem de inocência, a infância é um problema insolúvel. Interminável… Sessenta anos depois, regressava com a força dos começos numa junção inacreditável de tempos, como se não tivesse havido separação.

Voz e legitimidade
O romance é estruturado em catorze capítulos numerados, compostos em mosaico de tempos distintos, fragmentos de lembranças, perspectivas projetadas e preocupações corriqueiras. Cada um desses aspectos, admiravelmente, ganha voz e legitimidade. A senhora não propriamente é idosa, mas já vivida pelo desgaste do tempo revelado no corpo que precisa de cuidados. Preocupações com a coluna, com o coração, com a pressão surgem, quase como um movimento hipocondríaco. Fica evidente a fala de alguém com uma idade mais avançada que, em seus detalhes cotidianos, movimenta-se impulsionando a vida. “De quantas falas sou feita? De muitas.” E todas elas buscam expressão nesse turbilhão de tempos e sentimentos. “Por que eu não me aquietava? Mamãe, minha avó, minhas tias, todas tiveram uma velhice digna, sóbria, honrada. Aceitara a nova etapa que despontava. Escutei a frase delas. Já eu, em lugar da quietude, escolhi estar ao lado do desejo.” Será que todas tiveram mesmo essa quietude ou, simplesmente, não quiseram ou puderam expressar o lado do desejo de cada uma? Quanta paixão não revelada incendiou cada peito? Como saber?

A construção da narrativa se dá pautada numa trama simples, mas cheia de incidentes ou acidentes, o que garante certo suspense. A mescla de fatos banais com os inusitados, presente narrativo com passado reconstruído por ruínas da memória que teimam em esboçar sentidos, por vezes desgastados ou perdidos, permite um texto enxuto que flui com leveza. É o domínio da linguagem que garante expressão a essa inquieta senhora, consciente de sua condição, que traz na alma os sonhos e a capacidade de amar do seu tempo de menina. É essa mesma linguagem que dá voz a tantas falas que carrega dentro de si e que dá vida aos personagens que a ajudam a construir a sua própria história.

Se os dois tempos não foram capazes de atar as duas pontas da vida, a narrativa esforça-se para concatenar suas incongruências. E o amor continua como resquício da irreverência da infância, como foco de resistência contra o absurdo, que são: o excesso de sentidos em profusão (que até parece falta deles), a ausência de afetos, o desencanto, a desistência dos impulsos eróticos vitais, a entrega lenta aos braços da morte. O amor é, portanto, mais que mito. É o foco de resistência para a experiência afetiva num espaço urbano que pretende consumir o tempo e reduzir a cinzas os restos mortais, tanto do companheiro de vida, quanto dos sonhos do primeiro amor. Essa senhora quebra os paradigmas do conformismo e da submissão a uma condição imposta pelo culto da juventude e pela lógica do mercado, que condenam ao silêncio o corpo carregado de acúmulo de tempo e suas memórias mais caras. É esse corpo-alma-texto vibrante que resiste, e jamais se entrega porque carrega, em si, a poderosa força dos começos.

Amor em dois tempos

Livia Garcia-Roza
Companhia das Letras
200 págs.
Livia Garcia-Roza
Nasceu no Rio de Janeiro e foi psicanalista. Estreou na literatura de ficção em 1995, com Quarto de menina e é autora de romances como Cine Odeon, Solo feminino, Meu marido, Milamor, entre outros. Além de romances, escreve contos e literatura infantojuvenil.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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