O retorno de um gênio

Juventude em Viena traz de volta à tona parte da obra excepcional de Arthur Schnitzler
Arthur Schnitzler, autor de “Juventude em Viena”
15/10/2015

Pergunte para uma pessoa comum o nome de algum escritor de expressão alemã da primeira metade do século 20: o mais provável é que a resposta será Thomas Mann. Na verdade, o mais provável é que a pessoa peça para conversar de um assunto que seja mais do seu interesse do que literatura, ainda mais de um tempo tão incomensuravelmente distante quanto setenta ou oitenta anos. No entanto, optando por nos manter nessa construção retórica mambembe, se perguntarmos por um segundo nome, a pessoa já teria de demonstrar um interesse específico pela literatura desse idioma ou época para responder Arthur Schnitzler. Um interesse em psicanálise talvez sirva de ajuda para ouvirmos tal resposta, afinal, parte da consagração do autor se deu pela sua associação com Freud.

Nos dias atuais, Schnitzler é conhecido principalmente pela autoria do excelente Breve romance em sonho, objeto de uma adaptação cinematográfica surpreendentemente tediosa em se tratando de uma narrativa sobre sexo que conta com a Nicole Kidman jovem como uma das personagens principais. Pouco se discute hoje a obra do escritor austríaco. Seus livros tendem a ser editorialmente disponíveis para o leitor comum em poucas publicações, tanto aqui quanto nos Estados Unidos (ou pelo menos é o que mostra a amazon.com), ainda que tenha sido um dos nomes mais consagrados de sua época e tenha exercido grande influência entre autores ainda hoje em leitura corrente: corre a história que Joyce tenha se inspirado enormemente na novela O tenente Gustl, tido como primeira narrativa em fluxo de consciência na língua alemã, para compor parte de seu Ulisses.

Parece ser no intuito de amenizar essa defasagem que vem a iniciativa da Record (que já lançou no Brasil O tenente Gustl, O médico das termas e O caminho para a liberdade), com tradução e organização de Marcelo Backes. Percebe-se cuidado e interesse na publicação, acompanhando o texto ao final um cronograma detalhando eventos da vida do autor, um posfácio contextualizando as memórias dentro do panorama da obra maior do autor e um glossário elucidando as decisões tradutórias (que, vale registrar, teriam tido mais serventia diagramadas na forma de notas de pé de página).

No entanto
Ainda que seja comum que literatura seja identificada primeiramente como uma coletânea de textos clássicos, lidos por dezenas e centenas de anos depois de sua primeira publicação e (sonho último, utopia máxima) depois da morte do autor, existe uma dissonância que jaz na base da leitura de qualquer livro relativamente antigo: o leitor que se teve em mente durante a composição da obra é radicalmente diverso daquele que não estava vivo na época em que o texto foi escrito, mesmo nos casos em que o autor fosse dado a colocar cotidianamente o dorso na mão na testa, jogar a cabeça para trás e lamuriar-se com ênfase a respeito de sua consagração estar destinada a vir apenas postumamente.

Esta dissonância se dá tanto nos níveis mais complexos, como o descrito por Borges no texto do Kafka e seus precursores, falando da maneira pela qual um autor posterior tem a capacidade de jogar luzes novas em autores mais antigos (da forma como, por exemplo, todos os regionalistas brasileiros tendem a ser lidos na luz e na sombra de Guimarães Rosa), quanto nos níveis mais simples, em que elementos tidos como de conhecimento comum entre o autor e seu imaginado leitor passam por um apagamento/esquecimento ou pela necessidade de virem acompanhados de notas esclarecedoras. O texto permanece exatamente o mesmo (ainda que em traduções a cada geração renovadas, ele vai tender a formulações diferentes, atualizadas), mas as leituras, por partirem de cérebros necessariamente diferentes com o passar das décadas, vão se modificar de forma imprevisível. A noção de permanência de um texto não é tão simples e fixa quanto gostaria de se imaginar; qualquer imortalidade literária é mais feita de água, com inevitáveis enchentes e ressacas, do que de mármore, estátua permanente no meio da praça por toda a eternidade.

Tarefa nova
As memórias, que a princípio narrariam uma vida simples, corriqueira e banal ainda que um tanto agitada (especialmente no aspecto amoroso), de um jovem médico de grande afã poético, passam a ter na leitura de dezenas e dezenas de anos depois a dura responsabilidade de evocar por si só um mundo completamente desaparecido, mais desaparecido do que a grande distância no tempo geralmente faria uma época qualquer desaparecer. Não se fala aqui, nesse livro, do final do século 19 em Nova York, no Rio de Janeiro, ou Estocolmo. Não se fala, repetidamente, de uma minoria que enfrenta os preconceitos de sempre e que aos poucos iria tendo sua condição melhorada pelo esclarecimento progressivo que gostamos de imaginar que vai se instalando com o passar das gerações. Fala-se de Viena, e de judeus. Não bastando o esquecimento relativo (e injusto) pelo qual passou a obra literária de Schnitzler, o texto de suas memórias ainda precisa aturar ser lido sob a égide de narrativa pré-apocalíptica, em que o leitor frequentemente tem suas inevitáveis conjecturas a respeito de “o que será que aconteceu depois com Fulano e sua família” lidando com a grande probabilidade de extermínio terrível, em campos de concentração ou de batalha.

A sombra em cima da obra inteira se torna ainda mais escura e nítida a partir da reiteração de instâncias em que Schnitzler narra o antissemitismo explícito que atravessava a sociedade vienense inteira. Diferentemente dos preconceitos de hoje, perversamente escondidos em sussurros e números de estatísticas que muitos optam por não enxergar, naquela época era questão de discussão pública e esbravejada a suposta inferioridade inquestionável dos judeus: as bandeiras de suásticas realmente não figuram como um absurdo que ninguém teria previsto.

Em outro exercício retórico de valor questionável, se deixarmos de lado todo esse futuro terrível, a leitura do livro se mostra de interesse menor que (ou posterior a) a leitura da obra ficcional de Schnitzler. As dezenas ou centenas de figuras que aparecem ou desaparecem da vida do jovem autor ficam apenas como curiosidades e esquecimentos, talvez mais interessante para alguém que tenha um contato mais extenso da obra do austríaco. As últimas páginas trazem sinopses de suas outras obras, algumas a serem lançadas no futuro próximo: talvez tivesse sido mais interessante publicar essas memórias por último, ou pelo menos depois dos contos completos, como um indicativo de uma ordem de leitura mais proveitosa. De qualquer forma é certamente louvável a iniciativa da editora e do tradutor de tentar reavivar o interesse por Schnitzler, sem dúvida ganhamos todos com uma presença maior de seu nome em nossas estantes.

Juventude em Viena

Arthur Schnitzler
Trad.: Marcelo Backes
Record
475 págs.
Arthur Schnitzler (1862-1931)
Foi talvez o maior nome da literatura austríaca do início do século 20. Escreveu contos, romances e suas peças de teatro estavam sempre entre as mais badaladas de Viena, na época um dos grandes centros culturais da Europa. Sua obra trata frequentemente de sexualidade, assim como o antissemitismo e outros preconceitos da sociedade na época.
Breno Kümmel

É escritor.

Rascunho