O resgate de Pederneiras

Mário Pederneiras representa um papel fundamental como imprescindível elo entre a poesia parnaso-simbolista e o Modernismo
01/03/2005

É conhecida a discutível teoria de que o tempo é o melhor crítico literário, com autoridade para determinar definitivamente o valor de uma obra. Depois de cem anos, afirmam alguns conhecedores dos poderes do implacável Cronos, é possível que um texto já esteja apto para adquirir a sua definitiva posição no ranking da literatura universal ou, pelo menos, na de seu país. Um julgamento severo relegaria certo livro ao esquecimento, que acabaria devorado pelas traças no cemitério dos alfarrábios ilegíveis. O Quixote ou Madame Bovary já cumpriram esse estágio probatório. O transcurso temporal, no entanto, não é o único fator computado na consagração ou no esquecimento de uma obra literária. Quando as editoras, sem o respaldo de uma política cultural, deixam de reeditar obras de menor valor comercial, apesar de elas constituírem parte indispensável do patrimônio de nossas letras, não se sabe se o tempo ou se o descuido dos responsáveis pela manutenção da nossa cultura viva e atuante seria a causa do ostracismo de importantes obras. Este tinha sido o caso, até agora, em relação às poesias de Mário Pederneiras. No entanto, graças à iniciativa da Academia Brasileira de Letras e ao descortino e trabalho crítico do poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, a Poesia reunida do poeta carioca emerge da obscuridade, oferecendo um rico material para o exame dos estudiosos e a fruição dos leitores de poesia.

Ainda que não se situando no rol dos poetas de primeira grandeza, representa Mário Pederneiras um papel fundamental como imprescindível elo entre a poesia parnaso-simbolista e o Modernismo, cuja estética já se manifestava desde a primeira década do século 20, quando foi publicado um dos mais bem realizados livros de Mário, Histórias do meu casal, de 1906. Livro que revela a maturidade do poeta, por meio da conquista de uma dicção pessoal bastante diferenciada de seus pares, no período que Alceu Amoroso Lima chamou de sincrético, e outros, sem melhor definição, adotaram o inócuo rótulo de Pré-modernismo. Neste momento, visivelmente eclético, escreveram ativamente Murillo Araújo, Álvaro Moreira, Tasso da Silveira, Felipe D’Oliveira, Guilherme de Almeida (que chegou ao Modernismo sem modernizar-se) e, com uma poesia de melhor fatura, o jovem poeta de Luz mediterrânea, Raul de Leone.

Antonio Carlos Secchin resgatou Mário Pederneiras do limbo da nossa cegueira editorial, dando visibilidade a um novo modelo peculiar de verso híbrido, em que as inflexões da prosa contaminavam de forma saudável a serôdia retórica parnasiana. Influenciando com a linguagem da prosa o estilo sublime e grandiloqüente dos pós-parnasianos (Hermes Fontes, Martins Fontes, Luiz Delfino, entre outros), Mário Pederneiras construiu seus poemas dentro de um espírito de simplicidade, sem tornar-se simplório, como o seria mais tarde J. G. de Araújo Jorge, ou Olegário Mariano, romântico retardatário na periferia da modernidade.

Mas, pelo lapso entre a publicação do último livro de Mário Pederneiras, Outono, de 1921, escrito em 1914 e esta edição definitiva de 2004 (não esquecendo a intermediação da antologia universitária da editora Agir, datada de 1958), não bastaria apenas a leitura dos versos do poeta para uma avaliação, em profundidade, do que significou a contribuição de Pederneiras para a nossa poesia no limiar da tímida revolução da vanguarda brasileira — o Modernismo. Este movimento, como se sabe, não promoveu uma ruptura radical com a tradição, como fizeram os “ismos” europeus: Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo. Os modernistas de 22 modestamente pleiteavam (em termos de ruptura com a tradição) a aceitação do verso livre, a abolição da rima, a inclusão de temas do cotidiano e a utilização de um vocabulário com empréstimos da oralidade. Não identificaram Mário Pederneiras como um adversário, como um ícone do Passadismo a ser destruído. A natural modernidade de Pederneiras salvou a sua poesia do ataque dos modernistas. É esta poesia, agora reapresentada, que pode ser lida hoje com prazer por um público mais amplo, graças à edição da ABL, com texto cuidadosamente revisto e estudo introdutório de Antonio Carlos Secchin, abordando, com superior entendimento, o processo poético de Mário.

Entre os muitos méritos consignados ao trabalho de Secchin, um dos principais foi o revelar a medida exata do valor e da contribuição da poesia de Pederneiras. O mestre aponta, com a competência que o qualifica como um dos nossos melhores ensaístas da atualidade, os pontos que devem ser destacados numa aproximação à obra poética de Mário Pederneiras.

Secchin compreendeu, com fina argúcia, a trajetória ascendente da poesia de Mário, partindo dos versos de Agonia, seu primeiro livro, que revela um certo epigonismo em relação ao marcante estilo de Cruz e Sousa, até a configuração dos poemas dos últimos livros, quando encontra a voz que caracterizou a originalidade de sua poesia. Como escreveu Secchin: “Falar de maneira simples de um mundo simples pareceu constituir-se na aspiração maior de Mário”. Os temas do amor doméstico, da paisagem carioca, da morte (o luto pelo prematuro desaparecimento de suas filhas) são sempre desenvolvidos numa atmosfera de plácida aceitação do mundo exterior. Rodrigo Otávio Filho, em seu livro de ensaios Simbolismo e Penumbrismo, capta também o tom intimista de Mário e reconhece como qualidade primeira do poeta a sinceridade. Uma subjetividade não isenta de certa nostalgia também está presente no constante diálogo de seus versos com a cidade que, ao modernizar-se, vai perdendo, pouco a pouco, o seu ar provinciano, cocoteando-se, não sem novo charme, como metrópole emergente.

Secchin coloca em seus devidos termos a discutível asserção de que fora Mário Pederneiras quem havia introduzido o verso livre no Brasil. Na realidade, a distribuição polimétrica dos versos do poeta obedece ainda a uma medida simétrica, em que se alternam os mesmos metros, ainda longe, portanto, da liberdade rítmica dos futuros modernistas.

O resgate da obra de Mário Pederneiras não seguiu o duvidoso exemplo mega-laudatório que precedeu a publicação de parte da obra poética de Sousândrade. A introdução de Secchin revela não só o raro discernimento crítico do professor titular de Literatura Brasileira, como a sensibilidade do poeta ao analisar, com conhecimento de ofício, os melhores e os mais expressivos versos de Pederneiras.

A aura de castidade que reveste os poemas escritos para a esposa, vistos pelo leitor através de um diáfano véu platônico, foi detectada por Secchin na anotação de que “as descrições de Júlia raramente vão além dos olhos, dos lábios e dos cabelos”:

A tua boca aromada
Quando o amor abre-a risonho —
É como a porta doirada
Do castelo azul do Sonho.

Quanto às descrições rurais do Rio de Janeiro, são sempre revestidas de uma placidez e de um bucolismo neo-árcade que, somadas aos quadros domésticos pintados por Pederneiras, fizeram com que alguns críticos aproximassem seus poemas da visão pré-romântica de Tomás Antônio Gonzaga. Acrescenta Antonio Carlos Secchin: “O pincel paisagista do poeta é bastante sensível às modulações oriundas das mudanças de estação, sendo o outono e o inverno de seu particular agrado estético”:

É no Outono que a Terra, à luz velhinha e boa
De um por de Sol, que à cisma exorta,
Entoa
A funérea canção da Folha Morta.

ou, em outro poema:

Que sossego que vai pelas lavouras…
Que mansidão no longo olhar do gado.

Ou, musa urbana:

Já te esqueceram a errônea
E arcaica lenda injusta
De Cidade-Colônia,
E te deram às Ruas e à morada
O lindo aspecto que tão bem se ajusta
Aos teus requintes de civilizada.

Antevejo para Mário Pederneiras, como fruto desta cuidada edição de sua Poesia reunida, poemas que tão bem refletem a alma recolhida do poeta, uma glória recatada, plácida e permanente, oposta aos alardes que acompanham, hoje, algumas efêmeras notoriedades do mundo das letras.

Poesia reunida
Mário Pederneiras
Academia Brasileira de Letras
316 págs.
Cláudio Murilo Leal
Rascunho