O refúgio do mito

"Os deuses no exílio", de Heinrich Heine, faz a defesa do helenismo contra os “nazarenos”
Heinrich Heine, autor de “Os deuses no exílio”
01/04/2010

Entre os sonhos de Borges, existe um em que os deuses aparecem, voltando de um exílio de séculos, para desfilar tragicamente em uma Faculdade de Filosofia e Letras. Foragidas desde a ascensão da “lua do Islã” e da “cruz de Roma”, as divindades olímpicas regressam agora degeneradas, bestiais, sem o brilho dos velhos tempos, e acabam sendo baleadas pela platéia acadêmica. Este conto, do livro O fazedor, é um bom exemplo de como repercute na modernidade o tema do desterro dos deuses e de seu massacre, enquanto força mágica, pela fuzilaria da erudição científica. A literatura como último refúgio do mito, no quanto inspirou escritores e artistas desde o romantismo, faz lembrar Os deuses no exílio, do poeta alemão Heinrich Heine.

Publicado primeiramente em francês, em abril de 1853, três anos antes do fim da vida e do exílio de Heine em Paris, esse texto causou alvoroço no meio literário não somente da França, mas também da Alemanha, onde chegou a circular clandestinamente, sob censura, em versões não autorizadas pelo autor. A razão da popularidade de Os deuses no exílio, e de sua influência sobre inúmeros escritores, entre eles Gérard de Nerval, pode ser redescoberta agora com o lançamento, pela editora Iluminuras, de um rico material incluindo a tradução das versões francesa e alemã do texto, mais dois excelentes ensaios críticos, além de excertos dos Irmãos Grimm e textos de Théophile Gautier e Eça de Queiroz, que figuram, respectivamente, como amostra das fontes de pesquisa e dos desdobramentos criativos da obra de Heine na literatura.

O livro traz ainda, em uma tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, o poema Os deuses da Grécia, uma espécie de gênese da narrativa, composta por Heine quase trinta anos antes. Ali aparecem, como personagens de um espetáculo fantasmagórico, um Zeus destronado, uma Juno impotente, uma Afrodite avelhantada, que despertam no poeta a compaixão e a defesa dos deuses vencidos na luta contra os deuses novos, “dominantes e tristes deuses,/ a malícia na pele de carneiro da humildade”. Esta defesa do helenismo ressurgirá, com a mesma compaixão, e agora com um humor finíssimo, em Os deuses no exílio.

Na versão francesa do texto, Heine começa contando a história de um certo bacharel Henri Kitzler, envolvido no megalômano projeto de uma Magnificência do cristianismo, um manuscrito, no fim, atirado ao fogo, como “oferenda expiatória” aos antigos deuses mortos pelo triunfo da cruz. Com essa narrativa introdutória, o autor passa a olhar para os templos arruinados, “fortalezas de Satã” aos olhos dos cristãos, e o que o poeta vê, na derrocada dos costumes pagãos, é o espírito alegre do helenismo ser banido pela vitória de “nazarenos melancólicos”. Se em tempos primitivos os deuses foram expulsos do Olimpo pelos Titãs, obrigados a se refugiar na terra sob a forma animal, o cristianismo seria o novo gigante a rechaçar os deuses da terra, levando-os a mais uma metamorfose, agora sob a forma humana. Baco, irreconhecível debaixo do capuz de um monge tirolês, encarna aí perfeitamente a defesa do mito “na pele de carneiro da humildade”, retomando o poema de Heine.

Humor
O conflito entre helenos e nazarenos, que o autor expõe logo nas primeiras páginas de Os deuses no exílio, aludindo a um conflito entre duas maneiras de pensar e sentir, caracteriza o próprio tom da narrativa, que oscila entre o jocoso e o melancólico. No relato do deus Mercúrio, por exemplo, bem se nota o humor de Heine. Disfarçado num homenzinho gorducho, de rosto avermelhado, vestindo uma roupa antiquada e um tricórnio, Mercúrio se apresenta a um pescador da costa oriental da Frísia para negociar com ele o transporte de “uma certa quantidade de almas, ou seja, tantas quantas couberem em seu barco”. Sendo o deus dos ladrões e dos comerciantes, como diz Heine, nada mais “natural que, ao escolher os disfarces sob os quais procuraria se esconder e a condição que lhe permitiria viver, levasse em conta seus antecedentes e seus talentos”. Foi assim que, entre um ofício e outro, “que diferiam entre si apenas por algumas nuanças”, Mercúrio optou “pela condição mais lucrativa e menos perigosa: o comércio, e, para ser comerciante por excelência, fez de si um comerciante holandês”.

Já no episódio do exílio de Júpiter, o quadro é predominantemente desolador. Em uma ilha do Pólo Norte viveria o rei do mundo, em estado decrépito, coberto com peles de coelho, junto de uma velha cabra e um pássaro desplumado. Recebendo a visita de marinheiros que aportam na ilha por acidente, desviados da rota por uma tempestade, Júpiter reconhece entre eles alguns gregos e pede que lhe dêem notícias de sua terra natal.

Era curioso, contudo, que nenhum dos marinheiros conhecesse os nomes das cidades sobre as quais lhes fazia perguntas e que, segundo dizia, haviam sido florescentes em seu tempo. Por outro lado, os nomes pelos quais os marinheiros designavam as cidades e os povoados da Grécia atual lhe eram completamente estranhos. O ancião balançava a cabeça sem parar, mostrando abatimento, e os marinheiros se entreolhavam, surpresos.

O ensaio crítico de Marta Kawano, no livro, trata maravilhosamente da questão do exílio dos deuses e do estilo ao mesmo tempo “irônico e sentimental” de Heine, destacando os aspectos autobiográficos presentes na história de Júpiter ao final da narrativa. Para compor a figura devastada do personagem, “cujo destino, sendo ele o deus dos deuses”, conforme lembra Kawano, “é emblemático da derrota de todo o paganismo”, não faltaria a Heine o motivo de seu próprio exílio em Paris, e também da doença que o paralisou nesses últimos anos de vida.

Além disso, vale a pena cotejar o relato de Heine com a versão de uma lenda nórdica, um dos apêndices do volume, sobre o desterro do deus Thor. Pode-se entrever aí como o autor utiliza criativamente suas fontes, reinventando-as. Sobre a atividade mitográfica de Heine, aliás, que abrange desde canções populares a livros eruditos, é precioso o estudo de Márcio Suzuki, intitulado A anatomia comparada em literatura, expressão usada pelo próprio poeta em Os deuses no exílio. Confirma-se, com este ensaio, que o rastreamento de elementos mitológicos, exercido com argúcia por Heine, denota um trabalho que de longe transcende o de um pesquisador, pois seu desafio é reavivar na palavra o poder dos mitos e dar à escrita “uma fertilidade helênica”, como diz Suzuki, que “se contrapõe à linguagem esquálida e impotente dos ‘nazarenos’”. Pensando, portanto, na literatura como reduto dessa força mágica, seria interessante sondar, hoje, com olhos heinianos, sob quais formas literárias os deuses ainda sobrevivem.

Os deuses no exílio
Heinrich Heine
Trad.: Hildegard Herbold e Márcio Suzuki
Iluminuras
165 págs.
Heinrich Heine
Nasceu em Düsseldorf, na Alemanha, em 1797. Poeta, ensaísta, novelista e dramaturgo, considerado por Nietzsche “um artista da língua alemã”, Heine foi um dos grandes nomes do romantismo alemão, com uma obra que se estende da poesia lírica à filosofia, e que influenciou inúmeros autores, como Brecht e Dostoiévski. Em 1831, emigrou para a França, por razões políticas, e foi prestigiado por literatos e artistas parisienses, que o acolheram nesse período de mais de duas décadas de exílio. Faleceu em Paris, em 1856. Entre suas obras publicadas no Brasil, estão O rabi de Bacherach, Livro das canções, Das memórias do Senhor de Schnabelewopski e Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha.
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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