Há vários autores que são mais cultuados do que propriamente lidos, e o franco-cubano Alejo Carpentier não tem nenhuma posição de destaque nessa lista. No Brasil, onde a maioria das editoras pauta seus lançamentos priorizando o retorno financeiro, obras consideradas de difícil absorção por um mercado cada vez mais refratário a uma literatura que não seja facilmente consumível necessitam de um apelo adicional, na maioria das vezes extraliterário, para chegar às livrarias e, por fim, ao grande público. No caso de Carpentier, o relançamento em terras brasileiras de um importante título de sua bibliografia no ano em que se comemoram 120 anos de seu nascimento, antecipado, no ano que passou, por uma novela inédita por estas bandas e seguido por um terceiro lançamento não menos relevante, talvez não tenha sido mero acaso. Talvez o mercado brasileiro tenha simplesmente se aberto a receber e fazer as honras devidas a esse grande e inigualável autor.
Carpentier tem uma biografia das mais ricas. Nascido na Suíça, veio ainda bebê para Cuba (fato só descoberto depois de sua morte), porque o pai, arquiteto francês, tinha interesse pela cultura hispânica e queria, ao mesmo tempo, fugir da decadência europeia para viver num país jovem e de futuro. A mãe, de origem russa, era professora de línguas. A soma desses fatores lhe proporcionou viver uma infância entre múltiplas culturas. Também foi a mãe pianista que ensinou ao pequeno Alejo as primeiras noções de música, algo que passou a ser fundamental em sua vida e em sua obra. Depois de o pai ter abandonado a família, Alejo precisou deixar os estudos para trabalhar e ajudar nas contas da casa. Mas logo voltou à Europa para completar o ensino secundário em Paris, onde também continuou seus estudos musicais e tornou-se um razoável pianista, segundo suas próprias palavras. Voltou a Cuba, onde seguiu estudando música e também arquitetura, curso que não chegou a concluir. No início dos anos 1920, interessou-se pela política e tornou-se jornalista, profissão que exerceu durante toda a vida. Embora se dissesse apolítico, a militância de oposição ao regime cubano o levou à prisão acusado de ser comunista, e depois ao exílio em Paris, onde viveu por onze anos.
Real maravilhoso
Naquela época, a capital dos franceses vivia dias de grande efervescência como centro cultural do mundo, reunindo artistas e intelectuais de diversas nacionalidades, muitos deles ali exilados. Carpentier logo interessou-se pelo movimento surrealista, e suas primeiras experiências na ficção foram dentro dessa estética então vanguardista. Das discussões com os amigos escritores, o venezuelano Arturo Uslar Pietri e o guatemalteco Miguel Ángel Asturias, surgiu um novo conceito literário que viria a ser responsável pelo grande boom da literatura latino-americana no século passado: o “realismo fantástico”. (Carpentier, depois de retornar à América e fazer uma viagem ao Haiti, tratou de forjar seu próprio conceito, o do “real maravilhoso”, um pouco diferente daquele mais genérico, por assim dizer, mas dentro da mesma linha.) A interlocução, contudo, não se deu apenas no âmbito da literatura: Carpentier teve uma relação próxima com compositores como Darius Milhaud e Heitor Villa-Lobos e com pintores como Giorgio De Chirico e Pablo Picasso, dentre vários outros artistas que escreveram grande parte da história da arte contemporânea.
O Alejo Carpentier que chegou a Caracas em 1945 para um autoexílio que duraria 14 anos já havia passado antes pelo Haiti e pelo México. Vinha impregnado de tudo o que absorveu e ajudou a construir na Europa quanto a novas técnicas e estéticas; daquilo que viu e sentiu no Haiti e que foi para ele uma espécie de descobrimento do universo americano; e, por último, do resultado de suas pesquisas sobre música mexicana. As duas últimas experiências de viagem lhe renderam o segundo romance, O reino deste mundo, onde, em seu prólogo, Carpentier reafirma o conceito do “real maravilhoso” que já havia apresentado um ano antes num ensaio.
Nos anos em que viveu em Caracas foram escritos os dois romances que serão resenhados aqui e que, por terem, como se verá adiante, relação direta com alguns fatos importantes da biografia do autor, demandaram uma contextualização um pouco mais extensa do que seria o justo e necessário em outras situações.
Caminhos tortuosos
Os passos perdidos, lançado originalmente em 1953, traz uma história que seria relativamente simples se as cores e os matizes do “real maravilhoso” não a levassem por caminhos tão tortuosos como os igarapés da selva amazônica onde se desenrola a maior parte da trama. O protagonista é um musicólogo e compositor que acaba de concluir um trabalho e se vê subitamente sem rumo na vida. Casado com uma atriz de teatro que atua numa peça de sucesso há anos em cartaz, vive numa cidade que parece ser a Havana nos anos que antecedem a Revolução Cubana. Culto e algo pernóstico, anda às voltas com um projeto que não evolui: uma cantata cujo libreto se baseia nos versos de Prometeu desacorrentado, obra do poeta romântico inglês Percy B. Shelley. Para completar o quadro, tem como amante uma excêntrica astróloga com aspirações de intelectual. Quando sua mulher parte inesperadamente em turnê com a companhia de teatro e ele se vê sozinho na cidade sem pouco ou nada a fazer, atende a contragosto ao chamado de seu velho mentor, o Curador do Museu Organológico da universidade à qual está vinculado e que lhe propõe uma saída mais do que honrosa para sua inatividade: uma viagem pelos confins da selva amazônica em busca de instrumentos musicais primitivos a serem incorporados ao acervo do museu. Ele primeiro refuta a oferta, mas a amante o convence a aceitá-la e acaba viajando com ele. A viagem principia com os dois voando provavelmente a Caracas como se fossem marido e mulher — e estamos nos anos 1950 numa sociedade religiosa e ultraconservadora nos costumes —, mas a aventura começa de fato quando eles empreendem a grande travessia do romance: quanto mais se afastam do mundo urbano e civilizado e avançam selva adentro, mais se torna nítida a percepção de uma verdadeira viagem no tempo. E aqui não é possível adiantar detalhes fundamentais da história para não roubar sua magia do futuro leitor.
Tal como aconteceu a Carpentier, que visitou a porção venezuelana da selva amazônica e conheceu os cenários luxuriantes magistralmente descritos no romance, o protagonista sofre uma profunda transformação no decorrer dessa travessia. Aspectos sensoriais — aromas, sabores, sons, texturas e cores — são trabalhados com maestria e respondem em grande parte pela atmosfera mágica: pouco há de sobrenatural ou extraordinário, além de uma ou outra crença ou lenda ancestral trazida por algum personagem — e esse ponto talvez seja o que diferencia o “real maravilhoso” de Carpentier do “realismo mágico” de seus colegas latino-americanos. Esse maravilhoso existe de fato em solo americano, e ele é real, palpável, sorvível.
O discurso de Carpentier é considerado barroco, e com razão, pela crítica especializada, pelo que tem de rebuscado, às vezes beirando o pomposo. Por outro lado, a Carpentier não interessa ser direto a ponto de contar que um personagem saiu para comprar um maço de cigarros. Primeiro, o veremos em casa sofrendo com alguma inquietação existencial, filosofando sobre a vida, os problemas matrimoniais, citando meia dúzia de obras, algumas passagens em latim, e então, a rua, uma distração pelo caminho, o leitor sem saber ainda aonde o narrador quer chegar, um encontro inesperado, outra distração, novas citações, e enfim, o quiosque e os cigarros, e de repente se descobre o que ele quer contar, e a cena faz todo sentido. E tudo sempre embalado numa prosa elegante, num léxico primoroso que soa às vezes anacrônico, mas com a óbvia intenção da organicidade, pelo menos é o que sugere a excelente tradução de Sérgio Molina. Os vários capítulos são construídos quase todos em único parágrafo, blocos inteiros que exigem uma atenção redobrada para que não se perca nenhuma de suas sutilezas estilísticas, e elas são muitas. Nada, rigorosamente nada, soa fora de tom, numa prosa que vai agradar ao leitor que aprecia um texto mais refinado e pronto a se maravilhar com belas passagens que parecem deixadas no meio do caminho para serem lentamente degustadas. Pode, contudo, frustrar alguém acostumado a um discurso mais direto e a um enredo que privilegie a ação.
Sonata em três movimentos
Também da fase venezuelana, O cerco, novela publicada em 1958, contém pouco mais de um terço das 320 páginas de Os passos perdidos. Ambientada em Havana na década de 1930, nos dias tumultuados que sucederam a queda do ditador Gerardo Machado, ela traz o movimento de dois jovens aparentemente sem nenhuma relação cujos destinos irão se cruzar em algum momento da trama. Um deles é o bilheteiro de teatro e aprendiz de músico que abre a novela citando em italiano a dedicatória da partitura da Terceira sinfonia de Beethoven tirada da biografia do compositor que ele está lendo antes de ser interrompido por alguma exigência de sua função. A Eroica de Beethoven é justamente a obra do programa do concerto dessa noite. O outro jovem é um ex-estudante de arquitetura que se tornou revolucionário, acabou preso e, sob tortura, delatou seus companheiros; agora caçado por eles, esconde-se no mirante de um velho casarão em ruínas. Terceiro personagem e ponto em comum entre os dois, a prostituta Estrella, única a merecer um nome na história.
Como bem lembra Laura Janina Hosiasson, em brilhante ensaio publicado por ocasião do lançamento do livro na Ilustrada da Folha de S. Paulo, o próprio Carpentier mencionou mais de uma vez sua intenção de compor a novela como uma sonata em três movimentos. O cerco se compõe efetivamente de três partes intituladas por singelos números romanos. Na primeira, são apresentados os três personagens centrais, o que equivaleria à exposição dos temas numa sonata; a segunda e mais substanciosa das partes é destinada ao desenvolvimento desses temas, e é onde se põe à prova a virtuosidade do autor/compositor; na terceira, a conclusão. Mas há outros detalhes a serem observados. Beethoven foi o gênio absoluto da forma sonata que ajudou a consolidar em suas composições. O primeiro movimento da Sonata patética, por exemplo: um grave acorde em Dó menor seguido de uma seção lenta, depois a apresentação de dois temas rápidos e contrastantes, seu desenvolvimento, uma mudança de tonalidade, e a volta para encerrar com o mesmíssimo acorde em Dó menor, como se se fechasse um ciclo.
Numa analogia possível com o primeiro movimento da Patética, O cerco tem uma estrutura in finis res: a primeira cena é cronologicamente a última na trama, e tudo o que vem depois não passa de vários flashbacks que vão conduzir a narrativa de volta a ela. Quanto à segunda parte, é inegável o virtuosismo de Carpentier no desenvolvimento de sua sonata. Aqui, outra vez, os capítulos construídos em único parágrafo mostram uma solidez que chega a pesar, pois são muitos os sentimentos que movem o delator em sua fuga, dentre eles a culpa, mãe de todos os grandes conflitos humanos. Mas também o uso de diferentes técnicas narrativas, desde um simples narrador em terceira pessoa que embaralha para o leitor os dois personagens masculinos, chegando a trechos em sofisticado monólogo interior. Por último, um clima de mistério que remete sutilmente à literatura policial. Ainda que se trate de uma narrativa mais curta comparada ao caudaloso Os passos perdidos, não se espere uma leitura mais fácil. Importante destacar a tradução impecável assinada por Silvia Massimini Felix que faz jus à qualidade do original.
Fechando a tríade de lançamentos brasileiros, temos o maravilhoso volume A cidade das colunas, publicado originalmente em 1964: um ensaio em cinco capítulos sobre a arquitetura havanesa, ilustrado por 40 fotografias em preto e branco do italiano Paolo Gasparini. O que à primeira vista parece ser mais um belo livro de arquitetura, ganha, com a assinatura e o olhar privilegiado de Alejo Carpentier sobre a cidade, uma dimensão inusitada e um diálogo interessantíssimo com suas outras obras.
Para quem quer se aventurar no real maravilhoso do mestre cubano, essas três obras o revelam em todas as suas várias possibilidades.