O que realmente importa

Em "A tatuagem de pássaro", a iraquiana Dunya Mikhail expõe agruras dos conflitos no Oriente Médio
Dunya Mikhail, autora de “A tatuagem de pássaro”
01/08/2023

A iraquiana Dunya Mikhail se notabilizou mundo afora com a poesia, chegando a ganhar o Prêmio Unesco-Shariah para a Cultura Árabe. A sua estreia no Brasil, com o romance A tatuagem de pássaro, conta com bela capa de Cristina Gu e tradução direta do árabe feita por Beatriz Negreiros Gemignani. O livro foi finalista do International Prize for Arabic Fiction, em 2021.

A tatuagem de pássaro conta a história de Helin, desde sua vida no pequeno vilarejo montanhoso de Haliqi, arredores de Mossul, até o momento da invasão e domínio do Estado Islâmico (EI), cobrindo aproximadamente os últimos 20 anos da história do Iraque. São os aspectos descritivos bastante presentes na obra que nos fazem ter uma noção ainda maior do significado das últimas décadas para a sociedade iraquiana, bem como o Oriente Médio como um todo. Todavia, o livro não se ancora em um propósito histórico e informativo, permanecendo em uma consistente proposta estética e literária.

Ainda assim, é inevitável nos questionarmos quanto aos nossos conhecimentos em relação ao mundo árabe. Com uma linguagem que se distancia daquela encontrada em jornais — embora sustente o propósito descritivo — as perguntas que fazemos a partir de Dunya Mikhail são bastante saudáveis, mesmo que incômodas. Isso porque o livro se revela como um precioso documento sobre as consequências dos conflitos vivenciados pelos personagens, bem como uma forma de expressar os afetos, impressões, sofrimentos, das principais vítimas dos conflitos na região.

A temática, sem dúvidas, tem grande apelo humanitário — as brutalidades cometidas pelo EI acentuam isso. Entretanto, Mikhail não se rende a uma obra panfletária e salvadora, repleta de esperanças ante a possibilidade de reconstrução de uma vida. Assim sendo, não se trata de tecer fios para a construção de uma militância contra os horrores dos conflitos no Oriente Médio.

A omnisciência do narrador em terceira pessoa permite-nos o trânsito ainda mais eficaz entre as situações factíveis derivadas da guerra. Assim, confere robustez à realidade dos episódios narrados, tomando um relativo distanciamento dos personagens principais, deixando a sua angústia à mostra, tendo-a como uma das consequências de todos os problemas ali vivenciados. O isolamento de Helin, ao ser aprisionada pelos daichis (integrantes da milícia do EI), a sua separação da família, é um bom exemplo disso.

Da mesma maneira, esse distanciamento narrativo permite que o leitor consiga elaborar de uma forma mais livre os julgamentos quanto aos fatos à medida que são narrados. Isso porque, embora esteja posicionado ante a angústia dos personagens, ele não se encontra preso ao olhar destes personagens, elaborando uma reflexão sobre as circunstâncias em que se encontram pelo filtro de alguém.

Ao mesmo tempo, isso não significa que Mikhail não tome partido quanto aos fatos. Pois, a partir da característica omnisciência do narrador, a própria dor e sofrimento vividos pelos personagens deixam de ser algo pessoal, pertencente apenas a alguém em alguma situação particular, fazendo parte dos demais fatos a comporem a realidade apresentada.

Seu corpo enorme em cima dela reprimia sua respiração, e ela queria chorar. Sua família lhe veio à mente. Eles não sabem onde ela está agora. Como o pai ficaria furioso se descobrisse tudo o que estavam fazendo com ela. O pai tinha um coração gentil e sempre a perdoava independentemente do que ela fizesse, sobretudo ao ver as suas lágrimas.

Antes e depois
Parte considerável da trama se passa na montanhosa região do Haliqi. Muitos curdos, tal como os familiares de Helin, viviam nas montanhas iraquianas. Mikhail apresenta isso demonstrando como se estabelecia a relação indivíduo e natureza, compondo uma admirável beleza. Assim, ela traz um artifício narrativo, de modo a deixar a entender a existência de um antes e um depois da dominação do Estado Islâmico. Uma estabilidade, sustentada por um ambiente profundamente bucólico, é abalada. A toda a beleza do Vale do Haliqi, surge a vida sob o EI. Aliás, merece nota que o livro se inicia justamente com o cativeiro de Helin e outras mulheres, seguidos dos estupros cometidos pela milícia extremista.

O nome Helin amarra a paz anterior e o entrelaçamento dos personagens com o ambiente das montanhas do Haliqi. Em curdo, o seu significado é “ninho de pássaro”. Ao se casar com Elias, suas alianças são tatuagens do pássaro qabaj, comum na região do Haliqi, sustentando a história dos dois ao mesmo tempo que a mencionada harmonia com a natureza e a estabilidade que posteriormente seria destruída.

O contraste entre beleza e brutalidade é marcante na obra. Dunya Mikhail nos ajuda a dimensionar essas transformações, de modo que percebamos o quanto foi devastado com a destruição de uma guerra insana, sustentada pelo fanatismo. Embora mantenha uma linguagem poética em parte significativa do livro, não há um abuso de adjetivos — nem mesmo para qualificar as brutalidades vivenciadas. As constantes pausas são fundamentais para que as ações ocorram, de modo que fique ainda mais clara a interação dos personagens com tais ações, conferindo mais peso aos acontecimentos.

Não há maniqueísmos na obra de Mikhail. O extremismo do EI decorre não de uma natureza humana, algo como uma semente que existe no interior do indivíduo. Ele é construído. A autora não sustenta uma perspectiva inocente, o que poderia produzir histórias excessivamente introspectivas, focadas no conflito do sujeito com essa “pequena semente” interior que quer manifestar um mal oposto à suposta natureza da humanidade. O caminho é oposto, direcionando a sua visão no sentido de sustentar a posição do indivíduo nesses conflitos, retratando até mesmo o inevitável papel que ele deve sustentar ali. Importa o que há de mais imediato: a sobrevivência.

Alguns dos personagens, como os filhos adolescentes de Helin, são aliciados pelo EI para se tornarem parte de seu exército. Não há a exposição dos dilemas vividos pelos dois meninos no que diz respeito à aceitação da doutrina, tampouco no que se refere à sua postura ante o sofrimento da mãe. Tendo em vista a necessidade de sobrevivência, restringir-se a tais dilemas, ainda que relevantes, não contribuiria tanto para a construção da trama. Os meninos simplesmente mudaram de lado e é isso o que importa naquele momento.

Os temas
Estamos diante de uma obra que abre mão de apresentar “temas maiores”, edificantes, na falta de palavras melhores. Mikhail opta por focar no dia a dia, naquilo que poderia ser o mais banal do cotidiano. Por isso a inexistência de dramatizações de situações vividas pelos personagens. As descrições tornam-se diretas, porém, delicadas. Contrariamente, as circunstâncias dos conflitos implicam voltar de maneira urgente para a sobrevivência. Assim, o relato torna-se o mais importante.

Enfim, chegou-lhes a resposta que os fez chorar e bater nas próprias bochechas em lamento. Os daichis mataram os homens do segundo grupo e venderam suas mulheres e crianças. Essa notícia lhes foi anunciada por uma vizinha cujo marido era daichi. Por que fizeram isso com o segundo grupo e não com o primeiro? Haveria um motivo ou fora arbitrário? Nenhum dos prisioneiros remanescentes sabia.

Isso fica ainda mais evidente quando notamos que, a despeito da centralidade do conflito — cujas origens mostram-se bastante complexas —, A tatuagem de pássaro não se retém ao tema da interação entre Ocidente e Oriente. A urgência de se tomar a situação, a maneira como vivem as vítimas da guerra e da dominação do Estado Islâmico adquirem proeminência. Ainda que possa estar certa a tese de que a miséria vivida pela população daquela região, vítima dos embargos norte-americanos e sua perseguição, isso não se sobrepõe na obra, basicamente sequer é mencionada.

No livro, o EI surge de maneira inesperada, quase que como uma surpresa para os personagens. Não há anúncio de sua proximidade. Porém, diferentemente de isso significar a desconsideração quanto às causas de seu surgimento, Mikhail nos induz a concluir que isso é secundário. Não importa o verdadeiro responsável pela eclosão do conflito ou de tal ou qual miséria humana. O mais relevante, neste caso, é que vítimas de uma violência brutal são produzidas cotidianamente.

Desse modo, podemos entender a inexistência do embate entre o público e o privado, normalmente mediado por vidas interiores dos personagens, que se fez tão presente nas literaturas realistas e modernistas, por exemplo. O que temos, em seu lugar, é a precisão de um antagonismo direto entre essas duas instâncias, reduzindo claramente qualquer espaço para a ficção da vida interior dos personagens.

Não existe um personagem a despontar como o grande esclarecido, capaz de explicar a origem de todo o mal e suas consequências. Isso não é importante. Antes de qualquer coisa, toma-se como relevante a necessidade de sobrevivência dos indivíduos e que, de alguma maneira, são aqueles diretamente punidos.

A condição crítica na qual vivem os personagens é a preocupação com a sua existência. Não importam mais os efeitos das ações dos indivíduos, as eventuais obras futuras que marcariam o seu lugar na trama e, consequentemente, na história, de modo a construir imensas metáforas a partir dos dilemas vividos pela consciência e suas estruturas moralizantes.

Dunya Mikhail traz uma obra atual. Vale-se do triste momento vivido no Oriente Médio, ao mesmo tempo em que atenta para a existência de uma profunda e inigualável beleza que é capaz de produzir uma solidez das relações sociais. Entretanto, tudo o que nos apresenta, ante a urgência da necessidade de se sobreviver aos absurdos humanos, conferindo uma inigualável voz literária aos conflitos por ela presenciados, pode ser projetado para o nosso mundo Ocidental. Aliás, talvez esteja na hora de vermos aquilo que mais importa.

A tatuagem de pássaro
Dunya Mikhail
Trad.: Beatriz Negreiros Gemignani
Tabla
288 págs.
Dunya Mikhail
Nascida em 1965, em Bagdá (Iraque), formou-se em Literatura Inglesa pela Universidade de Bagdá, com mestrado em Literaturas Orientais pela Wayne State University, nos Estados Unidos, onde vive desde 1995. A autora é um dos nomes mais importantes da literatura do mundo árabe na contemporaneidade.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho