O que poderia ter sido e não foi

Resenha do livro "O nariz do morto", de Antonio Carlos Villaça
Antonio Carlos Villaça, autor de “O nariz do morto”
01/07/2007

Adiar, ao máximo, o enfrentamento com a vida. Talvez esse seja o lema da minha geração (nasci em 1974). Talvez a minha geração possa ser definida como a dos adulteens (informe-se). O leitor e a leitora do Rascunho devem saber do que se trata, não sabem? Sou de uma geração que, por razões diversas, opta por comodidades mediocrizantes: permanecer na casa dos pais, consumir, evitar compromissos, consumir, fugir da realidade, consumir, além de pretender continuar jovem por muito, muito tempo. Minha geração é deprimente. Minha geração, de maneira geral, quase não lê: minha geração consome audiovisual (a deglutição, e a defecação, é instantânea). Minha geração parece ter medo de enfrentar qualquer coisa. O que deu errado com a minha geração?

A pseudo-reflexão do parágrafo anterior surge, por acaso, a partir do contato com a reedição de uma obra-prima publicada originalmente em 1970, O nariz do morto, de Antonio Carlos Villaça (1928-2005). O nariz do morto é uma longa narrativa em que o autor procura mapear os seus passos neste planeta. Villaça foi, acima de tudo, um leitor. Voraz. Um sujeito para quem a vida não existiria sem a leitura. O grande problema dele, pelo que o livro sugere o tempo todo, foi enfrentar a vida. Villaça, de acordo com tudo o que escreveu em O nariz do morto, postergava ao máximo o confronto com a realidade. “Fugia de mim. Fugia da vida. Fugia do mundo. Fugia das traições do meu destino. Fugia.” E assim, de repente, toda uma vida se passou.

“Queria ser culto. Queria que a cultura tomasse conta de mim. Queria tornar-me um humanista.” Villaça, realmente, seguiu o mote da frase anterior. Se embriagou com os livros. E ao longo de O nariz do morto escreveu a história de suas leituras. Vasto mundo esse o dos livros. Villaça analisa os muitos, inúmeros, livros que leu e aponta aspectos relevantes e possíveis problemas das muitas obras com as quais se deparou. Também relata as relações que teve com autores, muitos deles do time primeiro da literatura nacional. A interlocução com Manuel Bandeira, por exemplo, ganhou páginas seguidas em O nariz do morto. “Manuel me recebia de pijama, ou roupão sobre a pele, chinelos. Homem educadíssimo, refinado moralista, cheio de delicadezas, mas à vontade ao receber seus amigos pessoais no aconchego de seu apartamento.” Villaça lia, relia, dialogava com autores, sonhava ser um escritor também. “Queria ser escritor. E então aparecia a sombra de minha particular dificuldade. Não escrevia, quase.” De fato, escritor se tornou. Mas havia aquela outra dificuldade existencial, maior.

A dor de viver. O estranhamento que é pulsar e ter de dar o inevitável passo seguinte. A hesitação diante do que se anuncia logo a seguir. Desde a infância, desde o colégio, durante o seminário, no mosteiro, depois do mosteiro enfim. “Interesse pela vida — enorme. Fome de vida. Frêmito. Desejo de sair, atuar, participar da vida. Curiosidade.” E, como se sabe, os relógios não param. E o que fica da leitura de O nariz do morto está traduzido, e imortalizado, em uma frase de um amigo de Villaça, Manuel Bandeira; aquela frase que sintetiza o mote bandeiriano e o que Villaça parecia sentir e sofrer: A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.

“Vivi? Não vivi. Mas auscultei ou sondei a larga vida, ansiosamente debrucei-me sobre o coração humano, habituei meu ouvido sobre ao seu bater. Conheço o homem. Sei o que existe nele. Sei exatamente quem são as pessoas. Foi tudo o que pude aprender. Foi o melhor que recolhi de minhas muitas viagens, reais ou imaginárias.”

O nariz do morto
Antonio Carlos Villaça
Civilização Brasileira
383 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho