O que nunca se esquece

Ao remexer nas lembranças de um aborto, Luciana Gerbovic constrói uma protagonista apenas frágil e pueril
Luciana Gerbovic, autora de “A maior mentira do mundo”
01/08/2025

Há muito se expande a produção ficcional feita por mulheres no mundo todo. Os temas ainda são tradicionais e recorrentes, como a luta contra o patriarcado, violências físicas e morais, relações amorosas fraturadas (geralmente em prosa intimista).

Entretanto, um tema feminino não recorrente (veio com grande alarde após a francesa Annie Ernaux ganhar o Prêmio Nobel em 2022) é o do aborto — só possível ao corpo feminino, e tão silenciado em várias obras onde sobram cicatrizes físicas e morais.

Em O acontecimento, narrativa de Ernaux, emerge a complexa temática: está lá a difícil decisão do aborto ilegal e a grande solidão da mulher grávida naquele momento. Muitos anos depois, já escritora, Ernaux criará um misto de autoficção e diário em que analisa esse passado sob nova ótica.

Em A maior mentira do mundo, de Luciana Gerbovic, temos um reforço na temática. A obra de Ernaux é de 2000; esta, da brasileira, é de 2024. Ambas são curtas, em primeira pessoa, e querem registrar a violência de um aborto da juventude; lá com o nome de O acontecimento — eufemismo —, aqui sob o ambíguo título: A maior mentira do mundo. Em ambos os casos, seja narrativa ficcional ou biográfica, o que está claro para o leitor é que um aborto nunca se esquece. E que é fundamental a reflexão da protagonista, anos depois, distanciada no tempo e na memória.

Em Ernaux, a protagonista vai buscar essa cicatriz no corpo. Na obra de Gerbovic, numa situação familiar banal, a violência é imperiosa: jovem rica, estudante de 19 anos, é obrigada pelos pais a abortar um filho impróprio com rapaz pobre, em hora imprópria. Silencia e aceita essa solução.

Estrutura
O romance começa quando a protagonista volta de Noordwijk, na Holanda, onde perdeu as esperanças de reencontrar o amor da juventude. Ambos tomaram os rumos esperados: casamento, filhos, carreira.

Decepcionada, a narradora vaga pela cidade holandesa, e Mateus não aparecerá. A frustração da fantasia romântica se mistura à revisão dolorosa de um passado que não passou. Que passado? Tempos de namoro, amor, gravidez e um aborto — mas tempos romanticizados na memória da narradora. Assim, Camilla começa a escrever, sob catarse, o que poderá, talvez, virar livro:

Talvez, se chegar a me ler (quem é que sabe o que farei com este palavrório?), você pense na menina riquinha mimada que enxergava o convívio com a classe média como uma experiência sociológica.

Gerbovic usa o foco narrativo que lhe parece apropriado: o que lemos seria uma carta, longo e-mail ou publicação destinada ao grande amor da vida, o pai do filho que não nasceu. Ou seja, a obra está em “segunda pessoa”: tem um interlocutor direto, Mateus. Nem sempre esse monólogo funciona, e o leitor tem a impressão de que a narradora se esquece, vez por outra, de que escreve para alguém. Às vezes, a narrativa se assemelha a qualquer outra em primeira pessoa.

Nos trinta anos que separam o namoro, o aborto forçado e este texto, ambos se reencontraram apenas uma vez, quando fizeram sexo, mas pouco falaram do passado.

Cheguei de Noordwijk há três dias. Do endereço que lhe passei. E que você confirmou ter recebido.

Massa, Milla. Vou dar um jeito de ir (…) Quero muito te ver de novo (…)

Passei oito noites e nove dias lendo essa mensagem na tela do celular (…) Não irei apagar a mensagem. Ilusão apagar o que existiu.

A autora deseja que o leitor tenha em mãos, como um voyeur, parte das supostas conversas do casal, mas há um desencontro definitivo.

O leitor percebe (talvez a protagonista não) que o grande amor da juventude é mais dela do que dele — amor que ela mesma abandonou, apesar da insistência dele no início.

Infelizmente, tal como narrada, a história de amor revela-se apenas um grande clichê. Ela, rica e apaixonada, obedece aos pais que rejeitam tanto a gravidez quanto o namorado de outra classe social, e casa-se depois com o marido adequado (jurista e filho de desembargador), com quem tem dois filhos. Ela tem sua carreira, viaja, cria os filhos e mantém-se casada com um marido que a trai confortavelmente.

Ricos e pobres
Gerbovic coloca em questão que a diferença social talvez tenha sido a grande culpada pelo fim do sonho do casal, ao valorizar — talvez de forma um pouco rasa e um tanto ingênua (da voz narrativa) — essa diferença aparece em vários trechos:

Sua mãe, cheia de pastas com lições para corrigir e diários de classe que seu pai ajudava a carregar. Tinha algo de honesto — portanto, comovente — nessa rotina de classe média, tão diferente da minha.

Diferentemente de Ernaux, cuja dor pelo aborto está também na solidão e na decisão — análise feita anos depois —, esta protagonista nunca agiu, nem reagiu, nem foi, afinal, abandonada: “foi obrigada a” — acusação simplória e conveniente, jogada sobre os pais nos trinta anos seguintes. Escreve deslocando aos pais sua culpa pela inação.

Na época, o pai, numa caricatura patriarcal um tanto exagerada, pergunta o que o rapaz fará a respeito da gravidez, e este, simplório, diz: “Vamos casar, ué”. Ela, silenciosa, “não tirava os olhos da ponta dos (…) pés”.

A mim parece que, no Brasil dos anos 1980 (época das Diretas Já, de que o casal participou), as cenas de um pai rico expulsar a filha de casa por ter um neto advindo de classes baixas, e depois obrigá-la (com o silêncio da mãe) a fazer um aborto, sofrem certo desfocamento. A menina universitária, feminista e supostamente politizada, olhando para a ponta dos sapatos sem reagir, está mais, digamos, para os anos 1950. Não tirar os olhos dos pés é silêncio, é aceitar a violência, que ela, como se lê ao fim da obra, julga ter superado. A própria narradora carrega essa imagem antiquada. Por quê? Para encontrar mais romantismo?

Incomoda, na construção da personagem, o fato de que essa mulher, sempre rica, hoje casada, com carreira própria e filhos, não reflita o quanto é e foi dependente dos homens, dos patriarcas — nada mudou. O quanto o patriarcalismo que critica se mantém em sua mente. O reencontro com o amor da juventude, a rigor, tem aura de uma aventura que em nada mudaria o mundo de ambos.

Quando aborta sob as ordens do pai, o médico lhe diz: “E quando acordar vai ser como se nada tivesse acontecido”. Seria esta a maior mentira do mundo?

Anos depois, num ataque histérico pós-parto (talvez o melhor momento da narrativa), quando o sogro (desembargador!) e o marido a internam numa clínica, sob o silêncio conivente da mãe e da sogra, pouco lamenta estar longe da criança recém-nascida. Ela lembra de Mateus. Lembra-se obsessivamente da frase do namorado perdido e, (supostamente) falando com ele, diz:

Talvez meu problema não seja matar tudo o que toco. Talvez meu problema seja manter os mortos para sempre.

Trinta anos depois da juventude, os mortos reais e simbólicos, mantendo-se vivos, são grande impedimento para a personagem amadurecer, para escapar das amarras com que a sociedade pode calar uma mulher.

Assim, este texto que o leitor tem nas mãos me parece não alcançar, de forma alguma, as intenções da autora, que buscou, na sua protagonista (uma suposta escritora), mostrar mais do que “um aborto não se esquece”. Ocorre que a personagem não cresce. E quando a narrativa tenta ascender para questões de gênero, sociais, ideológicas, fica ainda mais frágil.

Camilla não progride com suas reflexões literárias porque os anos não a mudaram para que escreva, insisto. Há trechos que poderiam ter crescido — como a memória da generosidade dos pais dela, quando cuidaram de uma menina, filha da empregada, que engravidou aos 14 anos. Infelizmente, a postura e as cenas são rasas: Camilla registra apenas as diferenças que aceitará: como filha de agregada, a criança, ao contrário de seu filho, teve a chance de nascer, crescer e aceitar o apadrinhamento. O filho pobre de Camilla não seria digno de carregar o sobrenome do pai. Ingênua é a narradora, que perde a chance de analisar o quão caricata é a resposta da mãe:

Mas e o futuro da Márcia, mãe? Ela está na escola, depois tem a faculdade,? (…) E nunca mais homem nenhum vai querer a Márcia porque homem nenhum querer uma menina usada. E o futuro da Márcia, mãe? (grifo meu)

Mas, Camilla, minha mãe riu com os lábios caídos, cheios de dó da minha falta de entendimento sobre tudo, essa gente já não tem futuro. (grifo meu, p. 96)

Sem entender esse mundo, Camilla não atrai como personagem porque permanece ingênua e alentada pelas fórmulas de que gostaria de escapar. A Gerbovic talvez tenha escapado a chance de construir uma narradora forte, num texto forte. Poderia ter um “romance de formação”.

Ao final, Camilla recebe um e-mail da mãe de Mateus, que ainda a considera nora. Diz essa mãe (elogiada pelos lanches, pela luta de classe média a que pertence tão contrastante com a própria mãe e a sogra real de Camilla) que Mateus está bem, casado e feliz.

Depois dessas últimas notícias, Camilla encerra o texto em dúvida (que não me pareceu sincera) se mantém o que escreveu ou se apaga tudo.

Eu poderia apagar (…) tudo o que escrevi. Selecionar tudo e Del. (…) Mas escrevi demais, acho. (…) Tem muito amor aqui para ser apagado.

E encerra, parecendo-nos bastante equivocada:

(…) talvez, Mateus, estas palavras todas não sejam para você, como eu achei no início (…) Talvez, e estou quase certa disso, estas palavras todas sejam para a Madalena. (grifo meu)

Madalena é a filha dela, a menina que crescerá e lerá o texto da mãe. Ou seja, o texto permanece, é um legado. Feminista? De como amadurecer? Não me parece. Camilla não mudou nenhuma regra. Segue a vida, esquece-se finalmente do filho que nunca existiu, se acomoda ao casamento nada róseo: passou a trair o marido para neutralizar o jogo do adultério.

A rigor, o que deseja que a filha leia? A resposta a dialogar com o título da obra (A maior mentira do mundo) qual é?

Talvez a maior mentira seja (e fico em dúvida sobre as intenções de Luciana Gerbovic) a de que a vida muda. Mas não: nada muda. A vida feminina (social, cultural, conjugal, amorosa) é apenas um clichê. Essa seria a maior verdade do mundo.

A maior mentira do mundo
Luciana Gerbovic
Quelônio
128 págs.
Luciana Gerbovic
Nasceu em São Paulo (SP), em 1975. É advogada, professora e mediadora de clubes de leitura na capital paulista. A maior mentira do mundo é seu romance de estreia.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho