O que nos ensinam as memórias

Antonio Carlos Secchin se debruça sobre autores “menores” e clássicos da poética e prosa brasileira
Antonio Carlos Secchin, autor de “Memórias de um leitor de poesia”
01/01/2012

Desnecessário seria relembrar aqui os méritos de Antonio Carlos Secchin como crítico e pensador da literatura, por tantos já adequadamente destacados; quanto aos mais desavisados, basta que consultem a quarta capa destas Memórias de um leitor de poesia, em que constam trechos de laudatórias declarações de João Cabral (que viu no ensaísta o melhor estudioso de sua obra), Benedito Nunes (a quem Secchin semelha “um poeta que se fez crítico ou simplesmente um poeta-crítico”) e Sergio Paulo Rouanet (para quem o ensaísta “faz a mímese da poesia que comenta”), entre outros. Assim sendo, avancemos para o que de fato importa: o que há de novo, neste novo livro de Secchin?

Compilação de textos apresentados em eventos diversos e publicados em vários veículos, o livro privilegia, como já explicita o título (que se refere a um dos textos do volume, de que tratarei mais à frente), a vertente da produção literária que Antonio Carlos Secchin mais se compraz em visitar; não obstante, se desejamos qualificá-lo como um “leitor de poesia”, seria necessário remeter a expressão a um sentido etimológico — como alguém que colhe (lego, -ere) as condições de produção (poíesis), no caso, literária. Isso porque, em primeiro lugar, Secchin não se debruça exclusivamente sobre textos poéticos (basta que se leiam, neste livro, os textos sobre Machado de Assis e Edla van Steen); e porque, em segundo lugar, seja qual for o objeto de leitura de Secchin, ele é invariavelmente extrapolado, embora jamais acidentalmente.

Com efeito, a Secchin nunca interessam as leituras óbvias. Se, por um lado, se apraz em reavaliar as obras de poetas considerados “menores” — o que já indicia um gosto pelo desvio —, por outro lado, seja lendo autores desconhecidos ou consagrados, sua percepção tende a rastrear os fios invisíveis que enlaçam a letra a uma trama secreta. O melhor exemplo disso é Alencares e Assis, brilhante texto sobre o “curioso jogo de espelhos, sintonias e afastamentos” em torno do trio José de Alencar, Machado de Assis e Mário de Alencar: como demonstra Secchin, Mário, filho de José, é feito por Machado seu filho simbólico (quando esse o acolhe em sua “casa”, trabalhando para seu ingresso na Academia Brasileira de Letras em detrimento de Domingos Olímpio, cuja trajetória era francamente superior à do eleito), após Mário ter apagado o rastro que unia a sua obra à do pai biológico (ao renegar seu primeiro livro, único àquele dedicado), o que ocorre quando Alencar já fora escolhido como pai simbólico de Machado (quando este elegeu aquele para ser o patrono de sua cadeira na Academia). Na mesma linha, inscreve-se a leitura que Secchin faz da “epistolografia poética” de Drummond, bem como sua análise sobre Cecília Meireles como enigma (que lhe faculta propor uma inusitada — e pertinente — aproximação entre as obras de Cecília e de João Cabral).

Mas a Secchin também apraz desbravar terrenos poéticos pouco explorados; assim, visita obras de grandes autores costumeiramente negligenciados (caso de Fagundes Varela e Mário Pederneiras), ou momentos negligenciados daqueles consagrados como grandes autores (ao analisar a obra religiosa de Jorge de Lima e os primeiros poemas de Vinicius de Moraes). E, como tudo isso nasce da pena de um ensaísta que é também escritor e cujo estilo prima pela clareza, ler o livro é como percorrer um guia de viagem que expõe desconhecidas sendas da literatura brasileira.

O ensaio que empresta o título ao volume, apresentado como aula inaugural em 2004 na Faculdade de Letras da UFRJ, está sem dúvida entre os mais inspirados e valiosos escritos de Secchin. O texto constitui, efetivamente, a reconstrução de um singular itinerário, que compreende desde os tempos da primeira discência — em que desperta um precoce fascínio, sobretudo por Drummond — até os anos de faculdade, em plena apoteose de um estruturalismo caricato, marcado por uma tendência às formulações herméticas e pela repúdia da dimensão histórica da arte — o que, se pretendia concorrer à construção de uma “cientificidade” na análise literária, ao juízo de Secchin logo demonstrou a importância da receptividade do leitor, responsável por elaborar novas leituras possíveis a partir de sua condição particular.

Mais à frente, já tratando de sua carreira docente, defende Secchin um imperativo ético fundamental: a necessidade de preservação do vínculo entre a poesia e a experiência vivida, sem nunca reduzi-la a um mero reflexo do real ou desprezar a especificidade de sua linguagem — o que encerra, como observa o ensaísta, uma consciente intervenção contra os sistemas de inclusão e exclusão social, que afinal operam também nos sistemas lingüísticos e culturais. O literário brota de “uma espécie de mínimo múltiplo comum da língua”, ressalta, e não através de uma “aceitação acrítica das diferenças” que apenas preserva as defasagens impostas por estruturas de poder.

O que nos ensinam, finalmente, as Memórias de Antonio Carlos Secchin? Porventura, que há entre a letra e o sentido mais do que sonha nossa freqüentemente vã tradição crítica, muitas vezes ainda afeita a estilos de época e a fórmulas consolidadas. Por um lado, se a obra dos melhores autores está destinada a jamais ensejar interpretações definitivas, que nos lancemos a esses desvios; por outro lado, não aceitemos passivamente os juízos estabelecidos sobre os autores “menores”, que tanto podem trazer em si elementos valiosos quanto, na pior das hipóteses, podem fornecer importantes subsídios para a análise da produção literária de seu tempo, ainda quando mediana ou epigonal. Eis, em suma, o convite (ou desafio) que nos faz Secchin: lancemo-nos ao desconhecido; (também) lá habita a poesia.

Memórias de um leitor de poesia
Antonio Carlos Secchin
Topbooks/ABL
275 págs.
Antonio Carlos Secchin
É poeta e ensaísta. Foi professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e em diversas universidades européias. Membro do PEN Clube do Brasil desde 1995, em 2004 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Escreveu e editou livros como João Cabral: a poesia do menos; Poesia completa de Cecília Meireles; Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar, entre outros.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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