O que existe demais

Os contos de O que não existe mais marcam a boa estreia de Krishna Monteiro na literatura
Krishna Monteiro, autor de “O que não existe mais”
06/07/2015

Um dos contos deste livro nos remete ao início de A divina comédia, de Dante Alighieri. Trata-se de As encruzilhadas do doutor Rosa, de onde emerge um chamado ao narrador, e este chamado vem de Guimarães Rosa. Parafraseando o poeta florentino, eis as palavras do personagem: “No momento mais inesperado de minha vida, quando estava prestes a sucumbir diante de uma implacável solidão […]”. Muito semelhante às palavras de Dante: “Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per uma selva oscura” (“A meio caminhar de nossa vida/ fui me encontrar em una selva escura”, na tradução de Italo Eugenio Mauro, para a Editora 34). O conto de Krishna Monteiro é um percurso onde o doutor Rosa e o narrador aparecem lado a lado. A narrativa transita entre o sagrado e o profano, pois o personagem deseja saber o que há na valise do médico. Entram numa igreja, ao tentar apropriar-se do conteúdo da valise, percebe os olhares inquisidores dos religiosos. Assim como Dante percorre o inferno conduzido pelo poeta Virgílio, este narrador é conduzido pelo doutor Rosa, até que no final é presenteado com o que há na valise; na verdade, as chaves de que precisa para entrar no paraíso. Elas, no entanto, são de outra natureza. O doutor Rosa acaba por se tornar uma espécie de Beatriz, ele levará o narrador ao céu.

O que não existe mais, de Krishna Monteiro, é um livro constituído de sete contos. E já no prefácio, Noemi Jaffe procura fazer um inventário das perdas que o autor desfia em sua narrativa. Perdas estas que, ainda segundo a prefaciadora, acabam por persistir e, em consequência, existir até demais.

O primeiro conto é o que dá nome ao livro, O que não existe mais, e aborda a presença/ausência do pai: “Na primeira vez que te vi depois de tua morte, tu estavas na sala, de pé, em frente à minha estante e aos meus livros”. O narrador mora na mesma casa em que o pai viveu, transita pelos mesmos lugares, e se depara com a volta inesperada dele. Aquele que retorna está a alterar a ordem dos livros na estante, está a violar páginas, age como desejasse entranhar-se na história presente do narrador. O conto mostra uma alteração de percurso. Aqueles que já se foram não se perderam totalmente. Embora não tenham o poder de mudar o destino dos que ficaram, ao menos se permitem insinuar afetos.

Quando dormires, cantarei é um conto ambientado em torno de uma rinha de briga de galos. Os dois contendores na verdade constituem um duplo em que nenhum deles desaparece, mesmo que derrotado, mesmo que lhe sobrevenha a morte. A violência e a vaidade levadas ao extremo e a perspectiva da morte são percebidas igualmente pelos dois. O que acontece a um estende-se ao outro, criando uma espécie de polifonia, que somente a literatura é capaz de oferecer. Os dois animais mudam constantemente de posição. Qual é o mais ameaçador? Talvez a resposta esteja nos gestos virulentos das pessoas atônitas, que assistem ao confronto. É bem verdade que o canto e a destreza destes galos constituem uma metapoesia: “não é para ver […] Conceição puxou não sei de onde uma canção esquecida, cujo último verso era assim: ‘Quando dormires, cantarei’.” É o duplo desdobrando-se entre a impossibilidade da visão e a presença da música.

Originalidade narrativa
Outro conto narrado de uma perspectiva inusitada é Um âmbito cerrado como um sonho. Um cão descreve o apartamento onde vivem ele e sua dona, fala do homem com quem ela relaciona-se, os conflitos inerentes à vida do casal e o encontro desta mulher com as amigas. Tudo quase sempre encoberto por uma névoa, até que se revela a nudez, o mar e a morte. A constante procura pela originalidade narrativa, por parte de muitos autores, encontra neste caso sua correspondência. Apesar de os animais não serem capazes de nos transmitir narrativas, o conto não deixa de ser verossímil. A metafísica, inerente a nós humanos, estende-se através daqueles que desejamos humanizar.

Monte Castelo é o maior conto do livro e poderia, caso fosse o desejo do autor, transformar-se num bom romance. No começo, narrado a partir do ponto de vista de alguém ainda criança, ele aborda a complexidade das relações familiares e de sua influência na formação de um ser que, no futuro, ver-se-á mergulhado na mais profunda solidão. Mas o principal da narrativa recai sobre este menino e seu avô, a quem visita numa cidade distante, de tempos em tempos. A narrativa acompanha o crescimento do garoto, de suas ausências à casa do avô devido a conflitos entre sua mãe e sua avó. Conforme ele vai amadurecendo, suas reflexões, permeadas de saudade, vão intensificando-se. E perdura a narrativa deste avô, ex-combatente na Segunda Guerra Mundial. Toda nação, língua, ou cultura tem o seu ponto nevrálgico, trata-se do que há de mais trágico, que alimenta não só sua história, mas também as obras de arte que lhe servem de estofo. Nada a ver com nacionalismos. O que seria a literatura de um Sebald sem a Segunda Guerra Mundial, ou mesmo sem outras guerras, sem as cicatrizes que os conflitos deixam de herança na alma de cada um de seus personagens? Também temos nossas tragédias, basta nossos autores saberem explorá-las para termos uma grande e imponente literatura. Quando identificamos nossas verdadeiras adversidades e sabemos transformá-las em arte, expressamos o que há de mais universal da nossa realidade. O resultado disso tudo será a profunda reflexão sobre a condição humana. Krishna Monteiro, com este conto, passa a fazer parte do grupo de bons escritores brasileiros que eleva nossa cultura ao nível de qualquer outra, permitindo-nos abandonar resquícios de inferioridade diante das artes e da literatura de outros países.

Sudário é um conto impossível. Não na sua estrutura, mas na intenção de seu narrador. Ele tenta dissuadir alguém de praticar o suicídio. O final fica em aberto, num universo permeado pela exaltação do vigor da natureza.

Alma em corpo atravessada, último conto do livro, aborda a vida de uma narradora que pouco a pouco perde a capacidade de contar histórias. A mulher, que reúne ao seu redor sobretudo crianças, surpreende o narrador (um de seus ouvintes) com o súbito silêncio. Na primeira leitura, pensei de que se estava a anunciar o final do livro, mas na segunda concluí que se trata do papel impotente da literatura ante todas as tragédias humanas. No final, o silêncio soa como uma espécie de vigia e de lembrança de que somos seres caracterizados pela narrativa. Todos nós existimos porque temos uma história.

Apesar de ser o primeiro livro de Krishna Monteiro, O que não existe mais revela um autor maduro, capaz de descrever cenas com bastante plasticidade e de saber explorar os meandros da alma humana.

Como o personagem de A divina comédia citado no início, o narrador de Krishna Monteiro sabe descer aos infernos, transitar pelo purgatório e chegar às portas do paraíso. “Ao meio caminhar de nossa vida/ fui me encontrar em uma selva escura”, novamente os dizeres de Dante revelam a literatura, senão com o poder de dominar esta selva, ao menos capaz de torná-la arte. Como certa vez afirmou Carlos Drummond de Andrade: “Acho que a literatura, tal qual como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição.”

O que não existe mais
Krishna Monteiro
Tordesilhas
110 págs.
Krishna Monteiro
Nasceu em 1973, no Paraná. Graduou-se em economia e fez mestrado em ciências políticas. Depois de uma breve passagem pelo jornalismo, em 2008 ingressou na carreira diplomática. Entre 2010 e 2012, trabalhou como vice-chefe de missão da embaixada brasileira no Sudão. Além disso, foi editor de textos literários da revista Juca, publicada pelo Itamaraty. Atualmente, é cônsul adjunto do Brasil em Londres. O que não existe mais é seu livro de estreia.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

Rascunho