O que anima um corpo

Em "Assombrações", de Domenico Starnone, o tom áspero desconcerta ao tratar da vaidade como garantia de algum sentido à vida
Domenico Starnone, autor de “Assombrações”
30/03/2019

Um senhor de 75 anos, artista consagrado, volta à casa de sua infância, reformulada e habitada por sua filha, para tomar conta, por alguns dias, do neto de quatro anos. O que vai se desdobrando, com um tom que mistura comicidade e angústia, é que o velho passa a ter de se proteger do neto, e tudo o que menino provoca nele, ao invés de cuidar dele.

A relação entre avô e neto é, em primeiro plano, de contraposição: o corpo frágil do primeiro, recém-recuperado de uma cirurgia, e o vigoroso do segundo, que ainda carrega a potência indefinida do poder vir a ser qualquer coisa. Entretanto, há também uma curiosa coincidência de posições, que gira em torno da reivindicação do pronome eu: “Batalhamos com o eu: eu, eu, eu, tão enérgico e no entanto tão parecido com um piado frágil, primeiro um, depois o outro”. Às voltas com as críticas de um jovem editor e com a baixa das demandas de trabalho e do consenso de seu reconhecimento, Daniele não parece, de início, querer abdicar do nome que construiu para ser o vovô de Mario. As concessões e as atenções que o menino exige, para o velho, parecem apenas subtrações — de tempo, de energia, de singularidade.

Essa batalha pelo eu só pode vir a cessar com a capitulação do avô. Ela se dá quando o menino, dando mostras da crueldade — tão parte da infância e tratada de maneira crua e risível por Starnone —, tranca o avô na varanda do apartamento. Daniele lembra dessa sacada como uma parte cara à casa de sua infância, mas na que habita a filha, o genro e o neto, o cômodo passa a ser uma precária extensão sobre o vazio. Ele recorda que, quando criança, gostava de pular na frágil estrutura com forma de trapézio para assustar sua mãe e, na velhice, passa a entender muito mais o pavor da mãe do que a diversão da criança que fora.

Ao ver-se preso na sacada, tendo a liberdade, única e exclusivamente, nas mãos de seu algoz, um menininho de quatro anos, Daniele passa por algum tipo de epifania, que revela a vacuidade que o envolve. Não a do precipício sob os seus pés, mas a que ele carregava dentro de si. Antes da revelação do nada e da ingenuidade dos revestimentos que lhe custaram um vida para mascarar o estado que enfim se encontra, de despropósito e desamparo, o narrador passa pelo desespero, pela angústia, pelo medo. Até que é tomado por tamanha brandura que permite que ele abdique do eu para ser vovô.

Quando o menino, tão festejado pelos pais por sua suposta genialidade, consegue libertar o avô do castigo da sacada, a convivência dos dois se torna mais leve, sem tantas repreensões e censuras. O avô desiste do trabalho, que lhe dava alguma sensação de utilidade. A renúncia, no entanto, é experimentada quase como uma libertação, no ponto em que a própria noção de utilidade se mostra débil e frágil.

Fantasmas
A palavra “brincadeirinha” é usada pelo avô para atenuar as tensões entre ele e o neto depois de alguma bronca que, logo depois de proferida, parece excessivamente dura. Antes de trancar o avô na sacada, Mario toma essa palavra para si e torna-se ele o autor de uma brincadeirinha. É esse o título do romance em italiano: Scherzetto, e a escolha do tradutor por Assombrações não deixa de chamar atenção. Primeiro porque o título em português retira a presumida afabilidade dos jogos das crianças e da relação entre avô e neto, e também por causa do plural. Suspeito que a leitura se deva às muitas formas que os fantasmas assumem ao longo da narrativa.

Uma delas é a que surge da penumbra que “animava o inanimado” do apartamento, na primeira noite de Daniele em Nápoles, quando vê, em um lampejo, as formas do pai, da mãe e da avó. Outra está no enredo do conto que ele devia ilustrar: A bela esquina, de Henry James. Diante da resistência dos dedos e da dificuldade para dar forma aos fantasmas dessa história, o narrador decide desenhar a sua própria casa, a qual, apesar de ser a mesma estrutura, não é a que ele está com o neto. Era necessário que as luzes da casa do presente fossem apagadas para que os espectros da casa da infância se revelassem.

Ainda, os contornos mais perturbadores dos fantasmas são o tudo que fora descartado pelo narrador, para que ele se tornasse o pintor de renome que volta idoso à casa do passado. Os sons dialetais, as lembranças que o espaço inspira, a fragilidade do corpo o vão colocando perante os eus abortados, o tudo que ele poderia ter sido e não foi. Os caminhos que não levou adiante, já que na adolescência encontrou o desenho como ofício, que parecia lhe garantir alguma excepcionalidade só dele e que permitiu a sua partida da cidade. Uma vez que essa excepcionalidade revela-se um mero truque de vaidade, o tumulto de eus — violentos, remissivos, subservientes, rebeldes — volta para atormentá-lo. Como se a subsistência dos eus tolhidos reforçasse que não existe fuga bem-sucedida e que não há como deixar as origens para trás.

Trancado na sacada, o narrador olha o menino pelo vidro e nota que o espectro que ele deveria ilustrar estava ali na sua frente o tempo todo. Mario era o fantasma, porque ele carregava no corpo uma confusão efervescente de pura potência. Com quatro anos, aquela criatura, cheia de disposição e crueldade, ainda levava em si o emaranhando de eus, “um fantasma espantoso” que “exige um presente no futuro, quer se desenhado, pintado, fotografado, filmado, descarregado, transmitido, narrado, repensando”.

Ecos do além
A última das formas fantasmáticas é a do apêndice, O jogador alegre, que sucede o desfecho do enredo. Trata-se de um caderno com anotações e esboços de Daniele, que contém também uma inscrição que indica que o narrador morreu. Os fragmentos desse caderno póstumo começam dois meses antes da viagem de Daniele a Nápoles e acabam no seu segundo dia com o neto. A última das anotações faz referência ao medo que a sacada desperta e à dúvida se ele deve temer pelo menino ou o menino.

Há um notável contraste entre o tom da narrativa e o do apêndice. Embora seja justamente o desfalecimento da vaidade que faz o enredo avançar, o caderno tem um tom ainda mais despudorado, um trato mais seco, corajoso e direto em relação à filha, ao genro, ao neto e à falecida esposa.

O jogo com a perspectiva parece ser um dos traços marcantes da escrita de Starnone. Em Laços, a narrativa é composta por três livros, cada um deles narrado por um membro da família. A fragmentação do ponto de vista oferece acesso aos efeitos destrutivos que cada um dos personagens exerce na vida dos outros. Em Assombrações, ainda que seja a mesma voz, o apêndice segue a forma de registros de um diário e mostra o que o Daniele narrador parecia querer omitir ou o que não pôde ser dito na construção dos três capítulos. Como diários são escritas reguladas pelo cotidiano e fazem questão do silêncio, talvez a brusca interrupção dessa parte se deva à transição da vida solitária em Milão para a barulhenta e conturbada convivência com o neto.

Sobre o conto de James, consta a seguinte anotação: “Cada vez mais o caminho para nos salvarmos de nós mesmos é o abismo”. Mas que tipo de salvação seria essa? Para Daniele, a resposta parece ambígua. O abismo lhe revela a futilidade da vaidade, o precipício da sacada mostra que o que acreditava ser um nobre destino não passava de uma história bonita que ele contara a si mesmo. Parece haver algum ganho, um alívio do extenuante esforço necessário para manter de pé as construções que sustentam o eu. Ainda assim, é possível viver sem uma destas? A indicação do ano de óbito de Daniele, no apêndice, sugere que não.

Assombrações
Domenico Starnone
Trad.: Maurício Santana Dias
Todavia
178 págs.
Domenico Starnone
Nasceu em Nápoles (Itália), em 1943. É escritor, jornalista e autor de dezenas de romances. Dele, em 2016, a Todavia publicou Laços, livro vencedor do Bridge Prize de melhor romance.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

Rascunho