O preso que sonhava

Mario Benedetti, falecido em maio passado, soube como poucos utilizar sombrias memórias para escancarar os horrores que cercam o ser humano
Mario Benedetti por Osvalter
01/06/2009

O uruguaio Mario Benedetti — um dos principais nomes da literatura latino-americana, integrante da chamada Geração de 45 — morreu em 17 de maio, aos 88 anos. Autor prolífero, com mais de oitenta obras publicadas, entre poesias, contos, ensaios e romances, acabou sendo exilado de seu país, por dez anos (1973 a 1983), devido às suas posições políticas de esquerda e à militância ferrenha contra a influência dos EUA na história da América Latina.

Os dados biográficos do autor e todo seu engajamento político acompanhado da dura experiência de preso exilado, por conta do golpe de Estado do Uruguai, em 1973, sem dúvida alguma, deixaram vestígios profundos em sua vasta produção ficcional. Não é à toa que, naturalmente, o nome de Benedetti esteja vinculado às mais diversas classificações que tangenciam o universo da literatura de testemunho, de denúncia das atrocidades de uma época que não se pode esquecer. Afinal, a memória parece ser o melhor antídoto contra o horror e buscar formas ficcionais de transfigurá-la representaria, em última instância, um ato de resistência. Por esse viés, a literatura acabaria assumindo a missão de recontar, sob as vestes da ficção, aquilo que só quem viveu ou testemunhou pode lembrar. E a lembrança, assim ficcionalizada, torna-se necessária porque exerce a função de propalar a toda humanidade, a fim de que não se recaia no erro novamente, a crueldade, a baixeza de atos que, no auge de nossa desumanização, somos capazes de cometer. Testemunhar, nesse sentido, significaria reabilitar, de algum modo, a voz dos que, diante do horror, foram obrigados a calar.

Emudecemos diante das guerras de todo gênero, das mais variadas formas de exploração e abuso de poder, de todos os holocaustos, das infinitas e abomináveis expressões da tortura. E contra esse mutismo, sem dúvida, se insurge a voz altissonante do Benedetti militante e, também, a do escritor. Analogamente ao que Primo Levi desenvolve, no romance Se isto é um homem (1947), transformando, em matéria ficcional, o testemunho do vivido no campo de concentração em Auschwitz, o escritor uruguaio, especialmente em Primavera num espelho partido (1982) e Correio do tempo (1999), publicados no Brasil pela Alfaguara, busca fazer com que se ouçam as vozes dos que sofreram nas masmorras sombrias da ditadura e todos os demais que, envolvidos afetivamente com aqueles presos e exilados, acabam tendo, também, suas vidas dilaceradas.

Mas se partirmos para a leitura de Mario Benedetti, apenas com olhos já direcionados à constatação da força de seu discurso de escritor engajado, correremos o sério risco de reduzir a grande potencialidade de sua literatura aos estereótipos classificatórios. Nesse sentido, vale lembrar o que Susan Sontag questiona em Ao mesmo tempo (resenhado neste Rascunho, nº 107), a propósito do valor eminentemente literário de certas obras, que os rótulos taxonômicos acabam por distorcer ou negligenciar.

Por isso, faz-se necessário perceber a riqueza de nuances dos procedimentos narrativos usados pelo escritor uruguaio que, com a maestria de um artesão, tece e destece os fios do narrar, conferindo à sua literatura uma dimensão que transcende o mero testemunho. Mais do que um “libelo pela construção da realidade” — como se tem afirmado —, a obra de Benedetti alcança a universalidade das contradições humanas, em sua ampla rede de significados. Ao tratar do preso exilado, por exemplo, não se restringe apenas ao exilado político, vítima da opressão do sistema, mas toca, de modo perspicaz e contundente, no exílio nosso de cada dia, nas múltiplas faces da incomunicabilidade que nos fazem sofrer, talvez, do mal maior: o do aprisionamento do ser em seu cárcere interior, estrangeiro a tudo e a todos.

Diálogos densos
Os contos de Correio do tempo chamam atenção, logo de saída, pelos subtítulos de cada uma das partes que compõem a coletânea: Sinais de fumaça; Correio do tempo; As estações e Colofão.

Interessante observar que, de fato, os textos inaugurais podem ser definidos como esses sinais, índices muito preliminares do que, aos poucos, irá tomando corpo, no que se configurará a seguir. Assim, as narrativas dos Sinais de fumaça sugerem mais do que revelam, em diálogos densos que quase não explicitam nada, anunciando o que está por vir, tal como nas mensagens ritualísticas de comunicação entre certas tribos primitivas, em que a fumaça exercia o poder subliminar de avisar que algo importante estaria acontecendo.

Já em Correio do tempo, a segunda parte, reunião dos contos que dão título ao livro, o que antes apenas se insinuara, de maneira esfumaçada, adquire forma, pois teremos consciências narrativas várias, que se expressam por meio de cartas. Da comunicação incipiente da fumaça, passaremos à força material da correspondência epistolar, de cartas escritas no papel, palpáveis registros do ocorrido.

Assim, há um conto, todo estruturado em tenso diálogo, em Sinais de fumaça, cujo título é Dezenove. Em resumo, refere-se ao número de um preso político, o Dezenove, que, tendo sobrevivido à cruel carnificina dos que eram jogados vivos dos aviões no mar — prática muito comum à época das ditaduras militares do Uruguai, Chile e Argentina —, decide procurar seu carrasco para assombrá-lo. A narrativa é contida e aqui a maestria do diálogo bem-construído confere ao conto a precisão imagética, tão cara à linguagem cinematográfica, já que é possível “ver” a cena descrita. Conseguimos ver o preso chegando à casa do militar e declarando-se um sobrevivente ao maior dos horrores: o de ter sido jogado vivo no oceano. Porém, esses detalhes, justamente porque não são revelados num discurso verborrágico, mas sim pontual e incisivo, acabam dando a impressão de um esfumaçamento do que ainda está na névoa da dúvida ou do sonho. Tanto é verdade que o tempo todo o militar imagina estar sonhando, como se o Dezenove fosse um espectro, um fantasma, pois seria praticamente impossível sobreviver àquela situação.

Barbárie
A “nuvem de fumaça” que sugere a barbárie desse tipo de crime virá explicitada na segunda parte do livro em Com os golfinhos, por meio de outra voz narrativa, a de uma adolescente, Paulina, que, em uma carta endereçada à mãe adotiva Maria Eugenia, revela a dor de ter descoberto que seus verdadeiros pais, presos políticos, haviam sido jogados vivos ao mar. E a irada indignação transborda, diante da descoberta de que os que a adotaram teriam sido cúmplices daquele crime.

Nesse segundo caso, os personagens passam a ter nome, não são apenas identificados por um número — como no caso anterior. A narrativa adquire forma, e o que antes se sugeria de modo tenso e ambíguo passa a ser evidente e assustadoramente claro. O discurso incontrolável, irônico e ressentido de Paulina toca explicitamente na ferida aberta das seqüelas da ditadura. Ela é vítima do sistema, “contundida e ferida” — para usar os próprios termos do autor em Primavera num espelho partido — uma das tantas que terão suas vidas dilaceradas.

Mas é importante verificar o quanto a dimensão poética das formas do narrar, que aqui se assume, é que confere a tragicidade necessária à denúncia desse horror. De fato, simbolicamente, o ventre do mar, como um Deus, acolhe os pais mortos da menina, mesmo de modo abrupto e cruel e permite que ela retorne, por meio do narrar, ao fundo desse oceano, “com os golfinhos”, como se voltasse à fonte genesíaca da vida intra-uterina, resgatando, poeticamente, o irreversível. Temos, assim, a complexidade do paradoxo de buscar algum traço de vida, redenção ou transcendência no que já sucumbiu:

…mas meus pais afogados não voltaram… No melhor dos casos, não estão rodeados de apóstolos, mas de golfinhos. Talvez, Deus, se existe algum, não more lá no Altíssimo, mas no fundo do mais profundo dos mares. E lá onde está, ignore tudo, embora de vez em quando abra suas brânquias e distribua bênçãos. Não descarto que uma noite dessas, eu, que não sei nadar, afinal me decida e mergulhe para buscá-lo, assim mesmo, sem bóias, mas com a mochila cheia de recriminações… Tchau, Paulina.

O conto Sonhou que estava preso pode, também, ser lido como uma célula inicial, um microcosmo poético que será transfigurado em um dos principais motes do romance Primavera num espelho partido.

A idéia de que o sonho e a memória são, mais do que formas, estratégias de sobrevivência às atrocidades do real é já conhecida no mundo das artes. Manuel Puig, em O beijo da mulher aranha, utilizou desse expediente, carregando conotativamente as imagens oníricas de seus personagens na prisão como via de escapismo do submundo, para alguma possível transcendência estética.

Prisão x sonho
Mas, em Benedetti, a representação da realidade do cárcere, sublimada pelo sonho, assume características muito peculiares. No conto citado, um preso acaba encontrando, ao sonhar, forças para resistir à dura realidade da cela. Aos poucos, transforma o mínimo mundo ao redor, tornando-se destro em recriá-lo, por meio das mais variadas e coloridas expressões oníricas. De certa forma, a superação do trauma do aprisionamento se viabiliza pela libertação possível no sonho. Então, teríamos, a seguinte equação: realidade = prisão x sonho = liberdade. Porém, o imponderável e a quebra total de expectativa se instauram ao final do conto. Depois de muitos anos confinado, quando posto em liberdade, o ex-preso, já em lençóis e cama limpa, na casa da irmã que zela por ele, continuará sonhando, não que está livre, mas preso. A equação parece se reverter: agora o sonho adquire o peso do poder de aprisionar…

O desconcerto e o estranhamento advêm do fato de que, mesmo que o corpo o leve para os espaços de liberdade, uma vez confinado, o indivíduo perde a dimensão essencial do que é ser livre e, então, a gravidade do paradoxo é a de que o espírito e a mente, na verdade, não conseguem se libertar jamais dos condicionamentos a que o corpo foi submetido. Talvez, como um “vício de forma”, título de uma série de contos de Primo Levi (Vizio di forma, 1971), cujo eixo central denuncia quão bruscamente pode o humano passar ao desumano, a partir do momento em que se lhe infligem situações violentas, muito calcadas na matriz pavloviana de adestramento de animais.

A mesma perplexa inquietação percorre todo o romance Primavera num espelho partido, que parece propor a crucial pergunta sem resposta: o que resta de quem passou pelos porões da ditadura? Depois da violência e de tamanha humilhação, como acreditar no sonho? Em quem se transformam os presos políticos torturados? Em quem se transmutam seus amigos, conhecidos, familiares, filhos, amores? O que não se vai e permanece íntegro, após tantos exílios? Enfim, o que sobra de um espelho, quando ele se parte?

Espelho estilhaçado
A imagem recorrente do espelho partido como reflexo da identidade dilacerada, em Benedetti, traduz metaforicamente a dor irreparável que a violência das separações de toda ordem pode gerar. O espelho, agora estilhaçado em fragmentos, representa a perda da identidade e da dignidade humana, incapaz de se reconhecer, após a humilhação da tortura e do exílio. Talvez, de modo análogo, um pouco como, poeticamente, revela Cecília Meireles em:

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida
A minha face?

Importa ressaltar que a estrutura narrativa, criada pelo autor uruguaio, revigora a idéia das personagens aquebrantadas, já que o corpo do romance é todo fragmentado, coerente com a idéia dos estilhaços vítreos que refletem e refratam o estranhamento do eu, que já não sabe mais quem é ou em quem se transformou.

Assim, o sumário que abre Primavera num espelho partido apresenta, desde o início, os títulos dos capítulos, por meio de ícones que tentam identificar os personagens, em suas múltiplas vozes narrativas.

O romance trata, em resumo, da história do preso político Santiago, um militante de esquerda, que durante o golpe militar no Uruguai, em 1973, acaba confinado por cinco anos, dois meses e quatro dias, ao fim dos quais se libertará. Para além da denúncia das atrocidades por ele sofridas, a fragmentação do espelho de sua vida, também se reflete nas vidas vinculadas à dele, especialmente, na de sua mulher, Graciela.

Todos os familiares têm de enfrentar o exílio forçado para Buenos Aires. Cada qual, a seu modo, aprenderá a se refazer em suas novas identidades. Mas o conflito maior é o que aponta à questão do exílio interior, da distância do convívio e da quebra da intimidade sofridos, por exemplo, pela mulher, para quem o tempo corre em outra dimensão, na freqüência natural das mudanças a que estamos todos sujeitos.

A dissonância entre o modo pelo qual Santiago apreende o tempo, que parece suspenso, na prisão e a velocidade das mudanças sofridas por Graciela, cuja passagem das horas, em liberdade, só oprime e sufoca é bastante reveladora. Ao final, mesmo que o amando a distância, ela não resiste aos apelos da vida real e se relaciona com Rolando, o melhor amigo de Santiago. É, também, desse tipo de dilaceramento do eu dividido entre a ânsia de reconstruir a vida e a culpa pelos que deixamos de amar que trata o romance.

Mas é fundamental perceber como isso se dá no plano estrutural da obra. Aparecem, como reflexos dessa imagem estilhaçada de Santiago, pela prisão e pelo exílio, em plena primavera, os demais, os amigos, dentre os quais se destaca Rolando; o pai, Dom Rafael; a mulher, Graciela, e a filha, a pequena Beatriz. O romance ganha complexidade e força narrativa, pois vai sendo construído a partir de cada uma dessas consciências, que, tal como as múltiplas faces do espelho partido, adquirem voz própria, não sucumbindo à onipotência da voz de um único narrador, detentor da verdade dos fatos e único dono-testemunha da história.

Ilustração: Osvalter

Trajeto de retorno
Como os diferentes movimentos de uma partitura musical, veremos desfilar, em ordem crescente e decrescente, mas de modo repetitivo, num refrão: Intramuros — título que se refere ao preso, quando confinado e às cartas que escreve para a mulher; Feridos e contundidos — que narra os dilemas pelos quais passa Graciela, ao perceber que a relação amorosa com o marido, a partir do desgaste do tempo que ele passa na prisão, se deteriora; Dom Rafael — que encarna a sábia voz do velho pai de quase setenta anos, um professor que também tem de aprender a duras penas a lidar com o exílio forçado, devido ao encarceramento do filho; Exílios — que reúne diversos casos de exilados, narrados pela voz do personagem-autor, uma espécie de alter ego do próprio Mario Benedetti; O outro — aqui representado por Rolando Asuero, o amigo mais próximo de Santiago que acaba se envolvendo e amando Graciela; Beatriz — que assume a narrativa em primeira pessoa, da voz da menina, extremamente vivaz e curiosa, capaz de conferir nuances de leveza e alegria ao trágico de toda a situação. Só ao final, aparecerá o novo índice: Extramuros, em que a voz de Santiago, já fora da prisão, no trajeto de retorno a casa, se manifesta.

Ao esfacelar a coesão da narrativa, o autor consegue relativizar os pontos de vista, num procedimento requintado de relativização da própria história oficial, ampliando os modos de percepção de um momento histórico tão crucial e polêmico. Se fosse apenas o mero testemunho de mais um episódio do horror, não adquiriria a dimensão universal da grande literatura, pois talvez incorresse na redução do relato.

A fragmentação do espelho, portanto, mais do que a revelação do momento de ruptura de vidas deterioradas pela ditadura, acaba incidindo no estilhaçamento dos indivíduos feridos e contundidos, que já não sabem mais qual é o seu lugar no mundo.

Interessante perceber, também, que a voz do personagem autor, Mario Benedetti, ao recontar passagens de vida de vários exilados, nos fragmentos intitulados Exílios, parece exercer a função de uma certa quebra do ilusionismo. Talvez, aqui, a intenção, à la Brecht, seja a de quebrar a chamada “quarta parede”, ou seja, permitir que a “realidade” possa entrar no espetáculo/livro, sem as nuances da representação ou da transfiguração, como um alerta ao espectador/leitor, a fim de que se lembre de que o romance não pretende, em momento algum, se distanciar dos fatos concretos de uma história que ocorreu e que é preciso contar.

Beatriz, trégua, sonho e primavera
Diante desse rol de sofrimentos, exílios, perdas e rupturas várias poderia se ter a impressão de que Benedetti encarna a feição sisuda e carregada dos escritores assumidamente trágicos. Claro que, em sua alma de escritor, jazia uma profunda e dolorosa cicatriz — que inclusive aparece transfigurada nas cicatrizes de vários personagens, vítimas da violência do cárcere. Mas, aos poucos, na compreensão geral de sua criação, nota-se que ele não permanece refém da dor.

Por exemplo, no romance A trégua, de 1960, uma de suas mais importantes obras, de cunho intimista, o velho viúvo Martín Santomé, vivendo o tédio e uma espécie de clausura em uma vida arrastada e sem sentido, encontrará uma saída, ao descobrir-se apaixonado pela jovem Laura Avellaneda. A “trégua”, aqui, tal como uma pausa concedida, um momento de paz, em meio à dura batalha, talvez pudesse ser traduzida por estas palavras de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa: “qualquer amor é um intervalo na loucura”.

Tal como na Primavera, em que as flores renascem após longo inverno, a trégua e o sonho representariam pequenas janelas de luz, nas paredes sombrias da existência.

Assim, parece que o drama existencial da vida só decantou e purificou, ainda mais, a veia poética de nosso autor, que se autodefinia como “alegremente melancólico”.

A busca de leveza, em meio à opressão, vem também representada na visão de mundo de Beatriz, a menina filha do preso Santiago, de Primavera num espelho partido. Poética e ludicamente, ela tem a “mania” de brincar com a ambigüidade das palavras, com a ironia fina e bem humorada de quem, como os poetas e os cegos, “sabe ver na escuridão”.

Beatriz e o seu próprio nome — em tributo à intertextualidade com a personagem de Dante — está a indicar quem, de certa forma, pode conduzir os desesperados do Inferno à alguma réstia de luz paradisíaca. E faz isso por meio da linguagem poética, calcada no lúdico e na inocência pueril das primeiras associações de descoberta do mundo. Mas não nos enganemos: a inocência de Beatriz é esperta, pois travestida do aguçado olhar sarcástico e irônico do autor, hábil artesão nos jogos do narrar:

Tio Rolando disse que esta cidade está ficando imbancável de tanta poluição que tem. Eu não disse nada, para não passar por burra, mas da frase inteira só entendi a palavra cidade. Depois fui ao dicionário e procurei a palavra IMBANCÁVEL e não achei. No domingo, quando fui visitar meu avô, perguntei o que queria dizer imbancável e ele riu e explicou de muitos bons modos que queria dizer insuportável. Aí sim entendi o significado, pois Graciela, ou seja, minha mãe, me diz, às vezes, ou melhor, todo dia, por favor, Beatriz, por favor, às vezes você fica realmente insuportável. Precisamente nesse mesmo domingo ela me disse isso, mas dessa vez repetiu três vezes, por favor, por favor, por favor, Beatriz, às vezes você fica realmente insuportável, e eu, bem tranqüila: você está querendo dizer que estou imbancável, e ela achou graça, mas não muita, mas me tirou do castigo, o que foi muito importante. A outra palavra, poluição, é bem mais difícil. Essa sim está no dicionário. Ele diz, POLUÇÃO: efusão de sêmen. O que será efusão e o que será sêmen. Procurei EFUSÃO e achei: derramamento de um líquido. Também achei sêmen e diz: germe, semente, líquido que serve para a reprodução. Ou seja, o que tio Rolando falou quer dizer o seguinte: essa cidade está ficando insuportável de tanto derramamento de sêmen…

Analogamente à revitalização luminosa que Beatriz consegue conferir às sombras da prisão, há também, de modo recorrente, nos temas eleitos pelo autor, o do sonho e o da memória, como meios eficazes de reinvenção da vida, diante da dura realidade. Daí por que ser extremamente necessário, para sobreviver, não abdicar dos mesmos, para que possam arejar os porões da existência confinada:

Um preso sonhou que estava preso. Com nuances, claro, com diferenças. Por exemplo, na parede do sonho havia um pôster de Paris; na parede real havia apenas uma mancha escura de umidade. No chão do sonho corria uma lagartixa; no chão de verdade um rato o fitava.

O preso sonhou que estava preso. Alguém massageava suas costas e ele começava a se sentir melhor. Não conseguia ver a pessoa, mas tinha certeza de que era sua mãe, uma especialista no assunto. Pela ampla janela entrava o sol da manhã, e ele o recebia como um sinal de liberdade. Quando abriu os olhos, não havia sol. A janela gradeada (três palmos por dia) dava para um poço de ventilação, para outro muro de sombras.

Ao sair finalmente da prisão, depois de tantos anos, Santiago, num misto de euforia e dúvidas sobre o que haverá de encontrar “lá fora”, faz uma verdadeira ode à primavera. Ele, que havia sido preso em plena primavera, num estranho redesenhar dos traços cíclicos do destino, será posto em liberdade naquela mesma estação do ano:

…depois desses cinco anos de inverno ninguém vai me roubar a primavera…

A primavera é como um espelho mas o meu está com a ponta quebrada/era inevitável não ia sair inteirinho desse bem nutrido qüinqüênio/mas apesar da ponta quebrada o espelho serve a primavera serve…

O que nos fica, como legado da obra de Mario Benedetti, talvez seja essa possibilidade de reinventar a vida, apesar de todos os exílios. Em meio aos inevitáveis e penosos desafios do viver, há um preso que sonha; uma primavera que retorna. Como o velho Rogerio Velasco, personagem do conto Testamento hológrafo, diria:

deixo um vidro com chuva que me deixava alegremente melancólico
deixo uma insônia com lua crescente e duas estrelas
deixo a sineta com que chamava a esquiva boa sorte
deixo o relâmpago da memória, que às vezes ilumina os baldios da minha consciência.

Deixando-nos, o grande escritor uruguaio dá-nos a prova definitiva de que sua obra singular não nos deixará jamais.

Primavera num espelho partido

Mario Benedetti
Trad.: Eliana Aguiar
Alfaguara
224 págs.
Correio do tempo
Mario Benedetti
Trad.: Rubia Prates Goldoni
Alfaguara
168 págs.
Mario Benedetti
Nasceu em 1920, em Paso de Los Toros (Uruguai). Estreou na literatura em 1945. O reconhecimento veio 11 anos depois com Poemas de oficina. O romance A trégua (1960) é uma de suas obras mais importantes e foi traduzido para 19 línguas. Devido às suas posições políticas de esquerda, Benedetti exilou-se do Uruguai por doze anos, quando o país sofreu um golpe militar, em 1973. Morou na Argentina, Cuba e Espanha e voltou ao seu país somente em 1985. Foi ainda um grande crítico da política externa dos EUA. Seu último livro, Testigo de uno mismo, foi lançado no ano passado. Benedetti morreu em 17 de maio, aos 88 anos.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho