O romance Abril vermelho, do peruano Santiago Roncagliolo, vencedor do Prêmio Alfaguara de Romance 2006, é um thriller que reúne suspense, terrorismo, paixão, violência, neuroses familiares, política e humor. Todos esses elementos são arranjados por mão firme, hábil em criar uma trama que — depois de enganar o leitor com pistas falsas — será resolvida apenas nas últimas páginas.
Entre 9 de março e 3 de maio de 2000, nos estertores do governo Alberto Fujimori, o promotor distrital adjunto Félix Chacaltana Saldívar vê-se envolvido numa série de terríveis e inexplicáveis assassinatos. Decepcionado com o casamento, ele abandonara Lima, a capital, para viver em Ayacucho, a cidadezinha onde nasceu. E lá, ao contrário da tranqüilidade que busca, servindo a um Estado no qual os militares e o serviço de inteligência comandam a democracia de fachada, à sombra do Sendero Luminoso, Chacaltana terá de enfrentar inúmeras verdades.
Ele é o burocrata de meticulosidade ímpar, um perfeccionista cuja compulsão não se restringe apenas ao apego às leis, mas abraça cada detalhe de sua vida, incluindo o uso da sintaxe nos relatórios que envia aos superiores. Preocupa-se com a expressão perfeita, independentemente de relatar ou não a verdade. Ao mesmo tempo, é tímido, ingênuo, menosprezado por todos e alvo de chacotas. Parece flanar acima da realidade, dividido entre a parvoíce e um agudo senso de dever, que o forçará a seguir em frente nas investigações, apesar do seu receio e dos empecilhos criados por policiais e militares.
O início da história oferece ao leitor páginas cômicas, relatadas por um narrador sarcástico, nas quais surge Chacaltana, esse promotor que dialoga com a mãe já falecida e age em seu cotidiano como se ela estivesse viva; e que, para se sentir seguro, chega a dormir na cama materna. Lentamente, à medida que os crimes se sucedem e a investigação avança, ele se arrepende de cada nova pista descoberta, pois sabe que isso o obriga a perseverar. Forçado a agir, o homem que acreditava representar a lei descobre, atônito, uma realidade sobre a qual não possui nenhum poder. A cada passo, Chacaltana percebe que seus relatórios são peças inócuas dentro da vasta e emaranhada máquina estatal, e, ainda pior, que todos estão envolvidos numa vergonhosa trama: militares, governo e Igreja — há, por exemplo, um crematório, construído por solicitação do Exército, no subsolo da casa paroquial.
Poder e linguagem
A partir de certo momento, Chacaltana nota que todos aqueles com quem conversa acabam assassinados. Torna-se, desse modo, o centro dos crimes que investiga: uma espécie de Édipo, buscando às cegas o assassino que, indiretamente, parece ser ele próprio. Desconfiado de todos, vendo todas as certezas ruírem, “se o promotor Chacaltana sabe algo por experiência própria”, como afirmou Santiago Roncagliolo, em seu discurso ao receber o Prêmio Alfaguara,
é que toda paz implica olhar o horror cara a cara e ser capaz de certo grau de perdão. Mas ele também sabe que todo perdão traz consigo uma injustiça. Viver sem sangue significa, de alguma forma, conviver com aqueles que o derramaram. Depois do que experimentou neste livro, o promotor se pergunta o que pode ser pior: deixar os assassinos em paz ou deixar que sigam matando. Mas também sabe que não lhe cabe encontrar resposta para essa pergunta. As sociedades seguem dando suas próprias respostas e não se preocupam muito com sua opinião.
Desorientado, sentindo-se perdido, mas assim mesmo avançando em suas investigações, Chacaltana é o bufão que se transforma em herói trágico.
Tendo como parte do cenário as comemorações da Semana Santa e a religiosidade peruana, com seus mitos e crendices nascidos da aculturação entre espanhóis e quíchuas, Abril vermelho trata, basicamente, da irracionalidade subjacente a todo poder abusivo, que transforma inocentes em culpados — a irracionalidade que acaba sempre erigindo o Estado como o único grande inocente.
Esse poder se manifesta no texto não só por meio dos horrendos assassinatos, mas também na linguagem: contrapondo-se aos relatórios de Chacaltana, há uma outra voz que se manifesta, mas cometendo erros de ortografia e utilizando uma sintaxe confusa. A comparação entre esses dois discursos, no entanto, não pode ser feita aqui, sob pena de, ao realizá-la, desvendar-se a autoria dos crimes. Vale, contudo, chamar a atenção dos leitores para essa voz que chega ao desvario, numa clara contraposição à racionalidade do texto legal.
Um outro interessante recurso de linguagem refere-se à mudança de comportamento de Chacaltana, pois sua gradual tomada de consciência será acompanhada de modificações substanciais em seu discurso. Ele passa a falar com ironia e, nas entrelinhas do código burocrático de seus relatórios, deixa que a verdade transpareça.
Ainda que em Abril vermelho estejam todos os ingredientes de um thriller prazeroso — incluindo os estereótipos da mocinha inocente que pode ser culpada, do militar sádico e extrema-direita, do juiz fingido e do médico-legista debochado, que come chocolates a ponto de se lambuzar sobre os cadáveres —, trata-se de um romance que não se propõe a ser apenas um ótimo passatempo. Além do cuidadoso trabalho de linguagem, o irônico narrador nos oferece a saga de Félix Chacaltana Saldívar, na qual nenhuma dobra da realidade permanecerá sem explicação, incluindo as memórias familiares do protagonista, seu obscuro sentimento de culpa e suas angustiantes neuroses. A cada página, o leitor será convidado a lembrar a lição das melhores tragédias: todo homem paga um alto preço para se tornar herói.