Há poucos xingamentos que podem ser tão ultrajantes quanto filho da puta. Ser filho de uma moça de vida nada fácil significa ter sido gerado (muito provavelmente) sem amor, em troca de algum dinheiro, algum favor instantâneo. Significa também não ser desejado desde o início, ser um estorvo que atrapalha a profissão desta moça, que já a adotou por não querer ou não poder assumir outras ocupações. Assim, ser filho da puta é quase a mesma coisa que ser mulher do padre, é algo que não deveria existir. Mas existe, e às pencas por aí. Claro, sem contar os filhos da puta honorários, estes quase sempre políticos, em alguns casos juízes de futebol, o motorista da frente que fez uma barbeiragem e outros.
No entanto, será que a condição de filho da puta pode ser ampliada para nora da puta, ou neto da puta? Será que a condição de ser desprezado pode ser estendida para os membros de uma família que porventura um filho da puta possa constituir? A teoria interessante é um dos temas do livro de Eliziário Goulart Rocha, Silêncio no bordel de tia Chininha. Lançado originalmente em 2001, o livro reaparece nesta segunda edição para mostrar que, passados cinco anos de seu lançamento, ele não perdeu o vigor e a qualidade. Pelo contrário, é enorme a sensação deixada pela leitura — a de que tudo não passa na verdade de um grande bordel, que estamos escondidos em algum canto dele vendo toda a sacanagem ocorrida do outro lado da parede, sem poder se manifestar.
A história é aparentemente simples. Ataliba, o filho da puta da história, é casado com Jovita e tem cinco filhos, todos com nomes compostos, estilo novela mexicana. Mas Ataliba é um fracasso na vida, e seus dois únicos predicados sempre foram a facilidade em passar cantadas certeiras em moças e a prodigalidade em fazer filhos. Fracassado, Ataliba resolve fugir de Outeiro das Almas, cidade escondida nos rincões do Rio Grande do Sul, naquele pedaço onde os pampas são mais fortes que a nacionalidade, onde o gaúcho argentino e o brasileiro se encontram e dividem a terra, para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Ele abandona a casa, Jovita, seus cinco filhos e sem pestanejar some. Jovita, sem saber o que fazer, sem nenhum ofício, não tem a quem recorrer senão à sua sogra, a Tia Chininha do título, dona do bordel de Outeiro das Almas há sabe-se lá quanto tempo.
A partir da chegada de Jovita ao bordel de Tia Chininha, começa a verdadeira história. Jovita, moça que preservou de seu passado apenas um recato pequeno-burguês, vive dia após dia a esperança de que Ataliba um dia volte (ainda que não acredite nisso), o medo de que seus filhos descubram o que é a casa da Tia Chininha, que as filhas que já começam a entrar na puberdade se interessem pela coisa e que ela própria descubra prazeres que seu marido até então lhe deu eventualmente, mas que agora parecem ser algo completamente diferente. Jovita é colocada para viver em um barracão ao lado do casarão onde está o bordel, e toda noite ela e os filhos são condenados a ficar em silêncio. Afinal, nada poderia ser pior para os negócios de um bordel que uma família completa, com cinco filhos, morando nele. Os homens querem discrição e calma para fazer o que fazem desde sempre.
O bordel de Tia Chininha é o ponto de encontro da espécie humana, como, aliás, são praticamente todos os bordéis mundo afora. Há as moças que foram abandonadas e se viram forçadas a ser prostitutas, pela total ausência de outras qualificações. Há as moças que, apesar de prostitutas, continuam sonhando em encontrar o príncipe encantado. Há aquelas que não nutrem sonho algum e gostam de verdade da profissão. E há aquelas que têm saudades dos tempos áureos de seu corpo e que agora se resignam ao que lhes é oferecido. Quanto aos homens, estes são mais simples. Querem apenas uma mulher que faça o que eles pedem sem desejar nada em troca além de dinheiro, sem pedir carinho, atenção, reciprocidade, etc. Enfim, são homens que não querem ser confrontados, pois sabem que, se o forem, perderão o confronto.
A história narra então as desventuras desta nora da puta e dos netos da puta que, constrangidos a viver uma vida escondida, crescem à margem de tudo, escutando através da porta gritos, sussurros e risadas de um mundo que não lhes pertence. E como a vida é cheia de surpresas, Jovita e Chininha, parceiras improváveis, viverão muitas delas e conseguirão, apesar de tudo, sobreviver e até mesmo superar as dificuldades que aparecem pelo caminho.
Eliziário procurou ao máximo ser simples e direto em sua linguagem, bem como na estrutura narrativa do texto. Claro, quando se fala em simples e direto, significa que o autor trabalhou muito para chegar a um produto final que seja absolutamente enxuto, sem sobras nem excessos. E Silêncio no bordel de tia Chininha se lê brevemente, com gosto e um sorriso no rosto, mesmo em seus momentos mais trágicos. Além disso, há alguns truques de estilo no livro que fazem com que sempre nos lembremos do início da história, do momento em que Ataliba parte para o Rio de Janeiro, da única carta que escreveu durante todo o seu exílio voluntário. É interessante o recurso por nos colocar muito mais próximos de Jovita. Nosso pensamento é assim, sempre retorna a alguns instantes cruciais, instantes estes que parecem ser definidores de todo o futuro. “Putz, se eu tivesse ido (ou não ido) lá, tudo seria diferente.” Jovita tem esta sensação toda hora, e outros momentos cruciais vão se sobrepondo a este, culminando em um final inesperado, mas redentor, pelo menos para quem torce para Jovita e contra todo e qualquer filho da puta que apareça pela frente.
Eliziário, sem ser moralista nem piegas nem reformador de morais, consegue dar ao puteiro (ou, como dizem os gaúchos, um chineiro) de Tia Chininha o ar de uma casa diferente sem ser exótica. Na prática, nenhum puteiro é um antro de perversões, perversas são certas pessoas que o freqüentam e levam a sua perversão de casa e a levam de volta ao lar. Eliziário segue a linha dos grandes escritores que falaram de diversos outros puteiros e mostra o local como uma casa de respeito, de ordem e disciplina, com seus rituais próprios e peculiaridades da profissão.
Silêncio no bordel de tia Chininha é um grande livro. Sabendo extrapolar, como diz Eduardo Bueno, temos também a sensação de que estamos vivendo no quarto dos fundos de um bordel. Fazemos parte do clube dos estarrecidos, e se já perdemos o senso de indignação, que pelo menos conservemos o do ridículo.