O prazer e o fim

Amor e morte são a argamassa na alvenaria de "Eu queria que você soubesse", de Marcos Kirst
Marcos Kirst, autor de “Eu queria que você soubesse”
01/06/2017

Conta a lenda que certo dia, Eros, o deus do amor, embriagado por Hipno, adormeceu numa caverna, deixando cair suas flechas. Espalhadas pelo chão, elas misturaram-se aos dardos de Thanatos, o deus da morte. Ao acordar, o deus do amor recolheu suas flechas, mas sem querer levou algumas que pertenciam ao seu opositor. Desde então, Eros passou a carregar as flechas do amor e da morte.

Eros e Tânatos: as duas pulsões antagônicas que, segundo Freud, movem o ser humano — a pulsão sexual que serve à preservação da vida, e a pulsão da morte, que leva à destruição.

Não me parece um acaso que Eu queria que você soubesse, narrativa cujo tema é central o despertar da sexualidade, já comece com a impactante cena de um crime. Sexualidade e morte, amor e ressentimento, são a argamassa na alvenaria deste romance curto, mas denso, de Marcos Kirst.

A história parte do relato de uma paixão juvenil traumática, marcada por sentimentos negativos como culpa e ódio. Deste dualismo pulsional o protagonista só consegue fugir encouraçando-se no pragmatismo contábil, convicto de que as relações humanas podem funcionar na mesma base do “Método das Partidas Dobradas”, no qual para cada entrada de crédito ocorre, pelo menos, uma de débito. De passagem, o autor faz um apanhado da recente história do Brasil (igualmente traumática), desde a ditadura militar até os dias de hoje.

Logo nas primeiras páginas, o leitor é cativado por uma escrita segura e eloquente, com descrições detalhadas de lugar (o Planalto Serrano Catarinense) e de clima (frio, restos de gelo). Mas a paisagem aqui não é mera decoração, antes espelha o estado de espírito do personagem deste primeiro capítulo, o caminhoneiro Evaristo, que, na sua expectativa da volta para casa após uma longa jornada, depara com o terrível crime. A suspeita de que algo vai acontecer exerce grande força de tração sobre o leitor, compondo uma imagem a um tempo idílica e tensa, que marcará a tônica da narrativa pelas próximas cento e cinquenta páginas:

Foi ali, no meio do quase nada, que Evaristo viu-se frente a frente com a tragédia. Num desnível razoável em relação ao leito da rodovia, onde crescem três pinheiros ao lado de um pequeno açude barrento, estava um carro quase todo enfiado numa moita de unhas-de-gato. Apenas a parte traseira, ligeiramente erguida, estava à mostra. Era o suficiente para produzir o brilho prateado que ele havia visto de longe e que, agora, de perto, parecia ter outra cor.

Kirst possui a sutileza de sugerir o horror sem mostrar o horrível. Por exemplo, vemos a cena do crime pela perspectiva do choque de Evaristo. E é assim que o autor continuará, no desdobrar do romance, contando a história e descrevendo as situações: sempre pelo viés da reação dos personagens, da paisagem ao redor, de detalhes arquitetônicos, do humor ou até mesmo por meio de descrições de métodos de contabilidade, a profissão do protagonista.

Paira ainda sobre esse primeiro capítulo, que funciona como uma introdução dos temas centrais que serão tratados no romance, a sensação de que tudo está sempre por um fio: a vida, os reencontros, os medos, assim como a alegria que o caminhoneiro sentiu pelo tricampeonato de futebol ocorrido na véspera e que agora, à visão hedionda do morto, parece já tão distante.

Na sequência, o narrador traça um panorama da situação do Brasil dos anos 1970, em plena ditadura, onde reina uma mistura de crescimento econômico e apatia política, coroados por forte censura e perseguição a opositores. Um país onde a lei máxima é recalcar, não falar, calar:

Segundo as nossas leis, tudo o que aconteceu naquela fase é crime prescrito, anistiado, coisa que não se deve mexer. O Brasil tem dificuldade para tratar desse assunto, prefere fingir que tem cicatrizes saudáveis quando, na verdade, tem feridas internas putrefatas que, de tempos em tempos, exalam teimosamente seu mau cheiro.

Estrutura mista
Somos apresentados ao pacatismo idílico de terra natal do protagonista (que é a mesma do morto do início) e para onde retorna três décadas depois. Como se fizesse um balanço de sua vida juntando as peças soltas da memória, o narrador-protagonista conta sua história lançando mão de uma estrutura narrativa mista, na qual tanto a cronologia quanto os destinos dos personagens vão se desenrolando em forma de episódios não lineares, mas sem perder de vista o arco dramático.

Alternando situações e relatos, ora descobrimos mais sobre o morto, ora sobre o Brasil da época, ora sobre a personalidade do protagonista em busca de reconciliação com o seu passado. E entre uma coisa e outra, o autor insere suas reflexões nem sempre cômodas sobre o amor, sobre o tempo, as desilusões que se vai acumulando ao longo da vida, ou sobre o dia a dia embotado e sem brilho da massa:

Depois de viverem anos e anos em permanente contenda com a necessidade, a rotina e a solidão, aguardavam a magra aposentadoria que lhes proporcionaria apenas o imprescindível. Um futuro opaco é tudo o que vidas sem fulgor podem aspirar. Nada mais do que isso.

Apesar do vaivém, o fio condutor do romance mantém-se na descoberta do desejo sexual e no amor atormentado do protagonista por Carmem, mulher bem mais velha e, além disso, casada, por quem se apaixona na adolescência. A relação entre os dois jamais se realizará de fato, mas seus fantasmas acompanharão o narrador para o resto de sua vida. Carmem era a amante de Vicente, o morto da primeira cena, e aqui as pontas do relato se unem.

A não realização do desejo é ponto de partida para a idealização da amada. Quanto maior a impossibilidade de amá-la, mais ele a endeusa. Sente-se completamente apaixonado e tomado pela “imaginação que começava a revelar forte inclinação à lascívia”.

Na verdade, estava me sentindo perdido, estranho, desprotegido, como se não me reconhecesse mais depois de ter rompido o casulo onde meu corpo nunca mais caberia. De repente, a minha imaginação caprichosa e impulsiva como eu acabara de descobrir que era parecia ter sido libertada e queria flutuar pelo ar sem qualquer regra ou direção.

Carmem se torna uma obsessão para o protagonista e ele passa a espioná-la. É por meio desse amor e suas conturbações que o narrador descobre os antagonismos da paixão, a concomitância do bem e do mal, do desejo e do ódio. O ideal de musa inalcançável, somado ao sentimento de culpa, o perseguirá e cunhará todas as suas relações com mulheres a partir daí.

Só quando conhece Rita, ao completar cinquenta anos, tem a coragem para uma autoanálise e um acerto de contas com o passado. Ele vai a Porto Alegre à procura de Carmem, a quem não tinha visto nos últimos trinta anos e lhe conta toda a sua história.

O encontro se revela catártico, ele se livra de seus fantasmas e consegue pôr um ponto final naquela longa jornada de culpa para, enfim, poder ver o antigo brilho nos olhos da sua imagem no espelho.

Rubem Alves escreveu certa vez que o ser humano possui um ar de despedida em tudo que faz: “As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. Saber da nossa finitude, bem como da finitude de todas as coisas nos enlaça àquilo que realmente interessa. Flechas de Tânatos e flechas de Eros nos atravessam a todo instante e ter consciência desses instantes nos possibilita fruir da beleza única do momento que nunca mais será”.

Eu queria que você soubesse
Marcos Kirst
Artemeios
152 págs.
Marcos Kirst
Nasceu em Ijuí (RS). Vive na capital paulista desde 1974. É formado em Administração de Empresas, com especialização em Comunicação e Marketing Cultural. Desde 1978, atua na área editorial, tendo trabalhado em empresas como Abril Cultural e Prêmio Editorial. Foi diretor de marketing e comunicação da Câmara Brasileira do Livro (2003 a 2007). Atualmente, é gerente de projetos e programas culturais da SP Leituras — Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho