O poetinha em verso e prosa

"Crônicas inéditas" traz narrativas que só tinham circulado em revistas e jornais e "50 poemas macabros" conta com sete textos inéditos de Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes por Fabio Miraglia
01/04/2024

Vinicius de Moraes foi um homem múltiplo. Além de poeta, foi censor cinematográfico, crítico de cinema, bolsista de literatura inglesa em Oxford, diplomata em Los Angeles, Paris e Montevidéu, cronista de jornais e revistas, tais como Diretrizes, Fatos e fotos, A manhã, Última hora, O pasquim e outros mais, letrista e músico, cantor, dramaturgo, roteirista de cinema, tradutor, jurado em festivais internacionais de cinema etc., etc., etc.

Ao longo de seus quase 67 anos de vida, Vinicius produziu muito. Mesmo assim, considerável parte do que este artista infatigável fez acabou não sendo publicada enquanto ele viveu. Existem várias explicações para isso. Um dos empecilhos foi justamente a circunstância de dedicar-se a inúmeras atividades. Por conseguinte, isso gerou um segundo tipo de impedimento: falta de tempo para selecionar, revisar criticamente o que gostaria de pôr em circulação.

Desde sua morte, em 1980, frequentemente têm aparecido novas publicações que deleitam os admiradores do poeta e compositor. E isso só tem acontecido porque a família de Vinicius disponibilizou inéditos e manuscritos para a Fundação Casa de Rui Barbosa. Este acervo tem se revelado uma verdadeira mina de ouro para os pesquisadores da obra viniciana e, é claro, para os leitores.

Muitos textos que compõem Crônicas inéditas e 50 poemas macabros foram retirados do arquivo pessoal do poeta que está sob guarda do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da mencionada Casa de Rui Barbosa. O primeiro livro apresenta textos que anteriormente só tinham circulado em revistas e jornais. O segundo traz poemas já publicados em vários livros do poeta e alguns que “ainda não haviam sido pinçados por uma antologia desde a publicação de origem”, conforme observa o posfácio do organizador Daniel Gil. Completam o volume sete poemas inéditos.

O poeta-cronista
Gerações de leitores travaram contato com as crônicas de Vinicius de Moraes por meio das várias reedições de Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966). Nas obras, o poeta-cronista destaca, na Advertência do primeiro volume, que “Esta coletânea de crônicas, se bem que mescladas a poemas de fato e de circunstância, é o primeiro livro de prosa do A.”. No Prefácio à 1ª edição do segundo livro, informa o poeta que “As crônicas constantes deste livro cobrem um quarto de século de atividade jornalística do Autor”.

O primeiro livro, com dedicatória à Lucinha (Maria Lúcia Proença, quarta mulher de Vinicius), contém 88 textos, havendo quase uma perfeita alternância entre crônicas e poemas em suas páginas. Segundo a Advertência do autor, a publicação do livro surgiu da organização de “mais de mil crônicas” copiadas e ordenadas por Yvone Barbare, secretária de Vinicius na ocasião. Acrescenta o poeta que os textos tinham sido quase todos publicados a partir de 1959, no jornal Última hora. Somente cinco textos (dois poemas e três crônicas) fazem menção a datas.

Em seu segundo volume de crônicas, Vinicius apresenta 55 textos divididos em dois blocos: os escritos entre 1941 a 1953 e os escritos entre 1964-1966, ambas as séries publicadas em diversos jornais e revistas, cobrindo, segundo o autor, desde fatos que “vêm da II Grande Guerra até as calamidades públicas da presente conjuntura”. Entrevê-se neste comentário a preocupação com as questões sociais, sem ficar de lado, é claro, o condimento erótico e lírico que caracteriza a escrita viniciana. Diferente do volume anterior, este só apresenta um único poema, A brusca poesia da mulher amada, dedicado à Nelita (quinta esposa do poeta), que funciona como abertura do livro.

Faltava aos leitores do Vinicius cronista uma coletânea como esta de Crônicas inéditas, cuja organização e prefácio esclarecedor foram feitos por Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho. Nos textos deste livro, encontra-se aquele Vinicius anterior a seu sucesso na música popular brasileira, lidando com “crônica de jornal, conversa, notícia, confissão, indignação política, discurso de amizade, declaração sempre pronta de amor”, segundo a descrição de Antonio Candido em texto que compõe a Fortuna crítica de Vinicius de Moraes: poesia completa e prosa.

Um bom número de informações sobre Vinicius no papel de cronista pode ser obtido no prefácio Mil cronistas em um. Neste texto de abertura, além de comentários sobre algumas crônicas do livro, há um mapeamento sobre a atuação de Vinicius prosador noutros periódicos. Seus textos circularam por diversos veículos de comunicação. Segundo os organizadores, ele estreou no universo do jornalismo em 1941, escrevendo no caderno literário e fazendo crítica de cinema no jornal carioca A manhã. O fato de não ser condescendente com alguns filmes, levou-o a ser “desligado de A manhã no começo de 1944, depois que suas críticas desagradaram a distribuidoras e anunciantes”, pontuam os prefaciadores.

Ainda na década de 1940, Vinicius escreveu crônicas para O jornal, que pertencia ao grupo empresarial de Assis Chateaubriand, colaborou com poemas e crônicas, até 1952, na revista Sombra. Escreveu de forma esparsa, entre 1943 a 1960, na revista Leitura. No jornal Diretrizes, “a maior parte da produção do Vinicius cronista concentrou-se nas décadas de 1940 e 1950”. Nesta publicação, ele assinou uma seção intitulada Crônica da cidade, tratando sobre os problemas cotidianos e urbanos do Rio de Janeiro. Entre 1946 e 1947, o cronista atuou no Diário carioca. Em 1951, ele voltou à sua atividade de “crítico-cronista de cinema” no jornal Última hora. Dois anos depois, Vinicius estava escrevendo crônicas no Flan, “tabloide dominical de notícias e variedades editado pela empresa Última hora”. Na década seguinte, o cronista tornou-se colaborador da revista Fatos e fotos. Vinicius teve uma coluna fixa, entre 1970 e 1971, no semanário carioca O pasquim e também publicou esparsamente na revista Cláudia entre as décadas de 1960 e 1970.

Crônicas inéditas traz 174 crônicas de Vinicius que circularam nestas revistas e jornais ao longo de três décadas. Estes textos servem como uma boa amostragem das impressões que ele tem do cinema, mostram um cidadão preocupado com os vários problemas com os quais os cariocas tinham que lidar e revelam, nos perfis de vários amigos e artistas, a vontade do poeta de irmanar-se com as pessoas, endossando o famoso verso “a vida é arte do encontro”, que escreveu no Samba da bênção, parceria com Baden Powell.

De acordo com os prefaciadores, o Vinicius cronista que trata sobre cinema se caracteriza pela franqueza como “um traço singular da sua produção crítica em torno do cinema”. Tanto se ocupa de diretores, produtores, atores e atrizes quanto de roteiristas, fotógrafos. Ou seja, aborda tudo que compõe o universo do cinema. Além disso, neste papel de “crítico engajado”, ele procura ser pedagógico, procurando fazer seus leitores perceberem “o espírito mercantil das produções”, “o gosto convencional do público” e, assim, sua expectativa é de que compreendam o cinema como entretenimento e arte.

Eis dois exemplos, em momentos diferentes, do cronista na pele de crítico de cinema que não tem papas na língua. Em Ouro do céu — James Stewart metido em complicações pelos amores de Paulette Goddard, crônica publicada em A manhã, em 20 de agosto de 1941, Vinicius abre o primeiro parágrafo observando que “As comédias musicadas são, noventa por cento das vezes, intoleráveis”. Mais adiante, o cronista observa que “Para quem gosta de música americana, como é o meu caso, um filme assim, com um mínimo de enredo e um máximo de música, torna-se um espetáculo reprovável”. Demais, frisa que o filme é “bem pobrezinho” e fecha o texto dizendo que “Nada disso é cinema, naturalmente”. Como já mencionado, tais comentários francos levaram-no a ser afastado do jornal. No Última hora, escreveu ele, em 26 de outubro de 1951, sobre o filme Orgulho e ódio: “abacaxi em exibição”, “idiotia elevada ao quadrado” e, apesar da beleza de Ava Gardner, não poupa a atriz que, na sua opinião, “trabalha mal” e é “perfeitamente vazia de tudo”. Sua crítica se estende ao próprio elenco que contracenou “com tão pouca boa vontade” e restam farpas para Astória, cinema onde viu a película, por conta da “projeção desfocada”.

Existe uma postura crítica em relação ao Rio de Janeiro nas crônicas que Vinicius escreveu na seção Crônica da cidade, do semanário Diretrizes. Nos textos, a Cidade Maravilhosa não faz jus a este título. Entra na composição destas crônicas um Vinicius mais consciente da sociedade em que vive. Formado num ambiente de direita, nutrindo simpatias pelo integralismo e, como disse numa entrevista, simpático ao nazismo, houve uma guinada na mentalidade do poeta pelos idos de 1940. Alguns fatos o fizeram rever a visão política. Uma delas foi o casamento com Beatriz Azevedo de Mello, a Tati. A primeira esposa foi uma das primeiras pessoas que modificou sua visão política. Foi, todavia, a experiência de ciceronear o escritor norte-americano Waldo Frank pelo Rio de Janeiro e pelas regiões Norte e Nordeste brasileiros, vendo, entre outras mazelas nacionais, miséria, prostituição, fome, que transformou Vinicius num antifascista. Como ele observou em entrevista dada a Narceu de Almeida Filho, em 1979, “essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada. Saí um homem de direita e voltei um homem de esquerda”.

Problemas cotidianos da cidade tornam-se uma preocupação nas crônicas de Vinicius. Passageiros e choferes, publicado em 2 de julho de 1945 no semanário Diretrizes, começa assim: “Os maus ordenados e as difíceis condições de trabalho criam, como vimos ontem, o espírito de revolta nos choferes e trocadores de ônibus”. Luta de classe?, De quem é a culpa, De maneira que…, De como viajar em ônibus (I) são outros textos que também dão sequência à sua preocupação com o transporte público. Em Ainda Leblon, o cronista queixa-se que “um bairro como o Leblon, um bairro perfeitamente urbanizado, tenha uma praia de banho onde se faz despejo de fezes”. A observação da desigualdade social pode ser vista nas duas crônicas intituladas Menores abandonados e em De crianças e de lixo.

Na mesma seção Crônica da cidade, há textos de teor político (que serve como alerta nos tempos atuais). Uma delas é No tabuleiro da baiana, na qual Vinicius conclama as pessoas a irem ver a “exposição anti-integralista” que funciona como “Uma mostra discreta e sem demagogia da aventura verde do sr. Plínio Salgado, que desviou metade da incauta juventude brasileira com seu falso dionisismo e seu ridículo aparato de camisas, discursos, paradas anuais, pingue-pongues, hierarquias, para dolorosa, perigosa burrice das atitudes fascistófilas”. Posição antifascista também está na crônica Vestiu uma camisa listada e saiu por aí…, publicada na seção Cavaquinho e saxofone, do Diário carioca. Pérolas como “Verde-amarelismo rima com integralismo” e “pátria adamantina e papagaiada que Bilac e seus escoteiros inauguraram e à qual o infamérrimo no DIP devia dar plena força, ao tempo do passado ditador” servem para Vinicius cutucar a extrema direita enquanto discorre sobre a popularidade de Carmen Miranda nos Estados Unidos.

A construção de perfis de amigos é outro vertente do Vinicius cronista apontada pelos organizadores de Crônicas inéditas. Ele escreveu, nos diversos periódicos nos quais atuou, textos “ligados à vida e à obra de velhos e novos amigos, como Bruno Giorgi, Jayme Ovalle, Candido Portinari, Rosina Pagã, Graciliano Ramos, Aracy de Almeida, Doris Monteiro, Bené Nunes e Carlos Leão”, conforme explicam no prefácio Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho.

Sobre o poeta chileno Pablo Neruda, de passagem pelo Rio de Janeiro, em julho de 1945, Vinicius assim se expressou em crônica publicada em Diretrizes:

Neruda é bem a sua imagem poética. Há nele um excesso de substância, qualquer coisa de submarino, de pictórico, de guloso, de rico, de dormente, de próximo aos elementos naturais que lhe facilitam a intimidade.

Numa bela homenagem ao aniversário de Graciliano Ramos, Vinicius escreveu, já como colaborador do Última hora, A bênção, Velho. O cronista destaca os “Sessenta anos vividos que representariam o dobro se contassem o tempo em sofrimento e experiência”, aludindo decerto à prisão do autor de Angústia entre 1936 e 1937, cujos relatos se encontram em Memórias do cárcere. Menciona também o texto que Graciliano andava doente, reclamando que tinha “um tijolo no peito”. No ano seguinte, Vinicius escreveria o soneto Máscara mortuária de Graciliano Ramos, homenageando o escritor falecido em 20 de março de 1953 de câncer no pulmão.

Como se procurou mostrar rapidamente aqui, Vinicius escreveu crônicas entre 1941 até a década de 1970 em onze veículos de publicação diferentes. São cerca de 30 anos dedicados a um tipo de texto que Antonio Candido, em A vida ao rés do chão, chamou de “gênero menor”. A edição destas Crônicas inéditas tem o mérito de oferecer aos leitores uma boa amostragem do poeta convertido em prosador, trazendo nos textos leveza e verve.

Amor e morte
Desde jovem, Vinicius é uma pessoa que se impressiona com o medo e o mistério. Resultado provável da forte impregnação católica de sua formação. A despeito disso, é um jovem feliz embora, nos versos que então escreve, a impressão seja a de um ser angustiado. Ele se desdobra em um ser diurno e um noturno, mantendo “a imagem do rapaz luminoso, que pratica esportes, namora com ousadia e não perde a chance de dedilhar um violão. Mas, como se a vida se desdobrasse em seu avesso, cultiva um outro Vinicius obscuro, que se sente continuamente vigiado por forças superiores e para quem a vida, apesar de toda a exuberância, está erguida sobre um abismo de estranhamento e morbidez”, conforme observa José Castello em O poeta da paixão: uma biografia.

Os primeiros livros de Vinicius revelam um poeta aparentemente dilacerado por conflitos interiores e o peso da religião. Em Místico, primeiro poema de O caminho para a distância, obra com que estreia em 1933, os dois versos iniciais endossam a preocupação com a interioridade e o espírito: “O ar está cheio de murmúrios misteriosos/ E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…” Assim como o título do primeiro poema, outros apontam para “o sentimento do sublime” que impregna a poesia viniciana: Introspecção, Purificação, Sacrifício, Quietação, Senhor, eu não sou digno, O bom-pastor. Nos poemas, palavras como “Senhor”, “Deus”, “alma”, “espírito”, “horror”, “dor”, “angústia”, “morte” são frequentes.

O próprio Vinicius, na Advertência que escreveu na sua Antologia poética, reconhece que há duas fases na sua poesia: “A primeira, transcendental, frequentemente mística, resultante de sua fase cristã”, a segunda contendo “os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. As palavras expressam a luta que o poeta travou consigo mesmo para escapar a uma poesia metafísica que se caracterizava na captação do mistério, do insondável até chegar a uma poesia comunicativa, sensual, sem abandonar de todo a erudição, que ocorre a partir de Poemas, sonetos e baladas (1946).

Todavia este universo místico, fantástico, povoado de visões apavorantes, não abandona totalmente a poesia de Vinicius. Mesmo que ele tenha deixado as coisas do alto pelas coisas do chão, cristalizou-se nele o gosto pelo pavoroso, pelo mórbido, pelo grotesco, que continuou a povoar sua produção poética ao longo de toda a vida. A preferência por temas relativos à morte é, a propósito, o conteúdo dos 50 poemas macabros, livro organizado por Daniel Gil, doutor em Letras, poeta e ensaísta que tem se debruçado sobre a obra de Vinicius.

Em Não tenhas medo, posfácio de Gil para o volume de poemas, o estudioso da obra de Vinicius salienta que “É comum encontrarmos um tipo de automatismo na interpretação desses poemas — com base na biografia do poeta — que reduz as imagens hórridas a um sentimento religioso de culpa, especialmente as que incluem a mulher e o erotismo”. De acordo com Gil, Vinicius ultrapassa este tipo de leitura, visto que é um poeta que tanto escreve versos sobre o amor quanto sobre a morte. E ao tematizar o fúnebre, o grotesco, o macabro, o fantasmagórico, ele se alinha a dois poetas que o antecederam: Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa.

O posfácio contém informações e comentários bastante relevantes sobre a poesia de Vinicius que tem a morte como mote principal. Mais do que isso, a apresentação de Gil lança luzes sobre poemas de Vinicius em que o feio, o monstruoso, o escatológico servem como metáforas do fúnebre. A explicação para um posfácio que permite leitura mais aprofundada e abrangente da obra de Vinicius deriva do fato de o organizador ter se dedicado a investigar a persistência do “fenômeno estético do grotesco” na poesia viniciana em sua tese de doutoramento em literatura brasileira.

O volume apresenta ilustrações de Alex Cerveny e o projeto gráfico foi feito por Claudia Warrak, e é evidente que ambos estão afinados com o espírito lúgubre dos poemas escolhidos. Como a disposição dos poemas não seguem uma sequência cronológica, no fim do livro há uma seção intitulada Edições de origem que informa de que obras foram retirados. Metade dos poemas veio de Forma e exegese (1935), Novos poemas (1938), Poemas, sonetos e baladas (1946) e Antologia poética (1954). Salvo Novos poemas (1959), que contribuiu com seis títulos, a outra parte vem de publicações menos conhecidas do poeta, que é o caso de História natural de Pablo Neruda: a elegia que vem de longe (1974), e obras póstumas, tais como Poemas esparsos (2008) e Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes (2018), os já mencionados poemas inéditos e o afro-samba Bocoché, parceria de Vinicius com Baden Powell.

Os 50 poemas macabros exprimem um lado escuro e trágico da condição humana, a angústia existencial que há em todos nós. No caso de Vinicius, esta sensação de impotência diante da morte foi convertida em versos nos quais ela adquire diversas faces: a de indagação de “Quem pagará o enterro e as flores/ Se eu me morrer de amores?”, presente em A hora íntima, a da meditação sobre a morte de Poema de natal (“Pois para isso fomos feitos:/ Para a esperança no milagre/ Para a participação da poesia/ Para ver a face da morte —/ De repente nunca mais esperaremos…/ Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/ Nascemos, imensamente.”, a do suicídio, que está tanto em O porte Hart Crane suicida-se no mar (“Temeste a morte, poeta?/ Temeste a escarpa sombria/ Que sob a tua agonia/ Descia sem rumo certo?) quanto na opção das moças prostituídas de Balada das duas mocinhas de Botafogo em dar cabo das próprias vidas (“Diante do cemitério/ Já nada mais se diziam./ Vinha um bonde a nove pontos…/ Marina puxou Marília/ E diante do semovente/ Crescendo em luzes aflitas/ Num desesperado abraço/ Postaram-se as menininhas.”), a de perplexidade e horror promovidos pela guerra presentes em Balada dos mortos dos campos de concentração (“Cadáveres necrosados/ Amontados no chão/ Esquálidos enlaçados/ Em beijos siderados/ Em presença da visão.”) e A rosa de Hiroshima (“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas/ Pensem nas meninas/ Cegas inexatas/ Pensem nas mulheres/ Rotas alteradas”), permitindo a reflexão atual sobre o genocídio em Gaza.

Noutros poemas, a morte se transfigura em entes sobrenaturais, figuras fantasmagóricas: A legião dos Úrias, Balada do morto-vivo, Tanguinho macabro, Exumação de Mário de Andrade. Noutras composições, como, por exemplo, em Balada feroz e Balada da moça do Miramar, o poeta retrata a putrefação dos corpos. Há versos também aos amigos mortos em Breve consideração, A última viagem de Jayme Ovalle, no inédito Desaparição de Tenório Júnior, poema que trata sobre o pianista que acompanhava Vinicius e Toquinho em shows, preso em Buenos Aires pela polícia argentina alguns dias antes do golpe militar e que depois acabou “encapuzado e morto com um tiro na cabeça, em sua cela”, segundo relata José Castello na biografia sobre Vinicius.

O feio, o pútrido, o escatológico coexistem com a beleza, a pujança da carne, o sublime nos 50 poemas macabros. Vida e morte, as duas únicas certezas humanas, são tematizadas de variados modos nos versos de Vinicius. Ao escolher este recorte em que o lúgubre se mescla ao amor e à morte, esta antologia lança luzes sobre novas vertentes para refletir sobre a poesia viniciana.

Crônicas inéditas
Vinicius de Moraes
Org.: Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho
Companhia das Letras
214 págs.
50 poemas macabros
Vinicius de Moraes
Org.: Daniel Gil
Companhia das Letras
168 págs.
Vinicius de Moraes
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1913, e morreu na mesma cidade em 1980. Foi poeta, crítico de cinema, dramaturgo, cronista, compositor e diplomata. Entre os livros de poemas, destacam-se O caminho para a distância (1933), Novos poemas (1938), Poemas, sonetos e baladas (1946), Antologia poética (1954), Livro de sonetos (1957), Obra poética (1968, org. Afrânio Coutinho), A arca de Noé (1970) Para teatro, escreveu as peças Orfeu da Conceição (1954), Procura-se uma rosa (1962, com Pedro Bloch e Gláucio Gil), Chacina em Barros Filho (1964) e Cordélia e o Peregrino (1965). Suas crônicas mais conhecidas figuram em Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966). Foi o criador da bossa nova juntamente com Tom Jobim e João Gilberto. Como compositor, fez cerca de 300 letras de música e tornou a atividade respeitável. A lista de parceiros musicais conta com Haroldo Tapajós, Pixinguinha, Ary Barroso, Tom Jobim, Alaíde Costa, Carlos Lyra, Baden Powell, Adoniran Barbosa, Francis Hime, Chico Buarque, Edu Lobo, Marília Medalha, Toquinho e muitos outros.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

Rascunho