O poeta sórdido: na prática

Coletânea de contos mostra a opção de Fausto Wolff, morto recentemente, pelo lirismo dos loucos
Fausto Wolff, autor de “Melhores contos”
01/10/2008

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero…
(Nova poética, de Manuel Bandeira)

A coletânea Melhores contos, de Fausto Wolff, reúne noves textos selecionados por André Seffrim que nos apresenta, em síntese, a obra de um escritor plural e ao mesmo tempo unificado pela sua irreverente postura crítica frente à sociedade, ao mundo e à vida. Wolff, jornalista, cronista, romancista, contista, tradutor, poeta, é um legítimo representante, na prática da literatura e do jornalismo brasileiros, do que Manuel Bandeira lançara no início do século passado como a “teoria do poeta sórdido”. Falamos aqui do poeta em seu sentido mais amplo, sentido este que transcende o do simples fabricante de versos: trata-se daquele cuja escrita traz um conteúdo estético que atravessa os textos, utilizando diferentes formas de expressões artísticas.

Ainda nos referindo às teorias poéticas do velho Bandeira, Wolff se posiciona através das vozes de narradores, de personagens, de sujeitos líricos, ou de repórteres e cidadãos do mundo: “Estou farto do lirismo bem comportado/ do lirismo funcionário público, com livro de ponto expediente protocolo e manifestação de apreço ao Senhor Diretor”. Desse desabafo, ou melhor, manifesto, é que derivam seus afetos, seus desafetos e sua produção escrita. Como Bandeira, proclama: “Quero antes o lirismo dos loucos/ o lirismo dos bêbados/ o lirismo difícil e pungente dos bêbados…” Neste sentido, como constata André Seffrin no prefácio do livro: “Seus melhores personagens são aqueles com os quais ele, autor, se identifica. Os excluídos, os humilhados e ofendidos, os que não aceitam a hipocrisia e a mentira, os que se revoltam”.

Contradições
A opção pelo lirismo dos loucos ou pelo difícil e pungente lirismo dos bêbados implica um mar de contradições. Entre elas, vê-se em sua ficção uma gama bem variada de textos com matizes que se estendem desde o romântico carinho pelas crianças e pelos inocentes desvarios dos alienados até a mais desencantada e sarcástica crítica ao sistema. Nesta última abordagem, predominam o derrotismo em relação ao presente e as previsões catastróficas em relação ao futuro. Assim, sua escrita funciona, ainda, como metralhadora giratória, poucos no âmbito político e social encontram-se livres de sua mira certeira.

Em O jardineiro, o narrador é um repórter que logo no primeiro parágrafo parece abrir uma crônica jornalística. “Como todo país neoliberal do Terceiro Mundo, o Brasil é uma democracia. Tanto o Executivo, como o Judiciário, o Legislativo e a Mídia estão de acordo.” A ação é entrecortada com freqüência pela voz narrativa que tece comentários analíticos e críticos sobre a sua visão de conjuntura e de desgoverno que a sociedade neoliberal, em especial a brasileira, vem tomando. Tudo conduziria à leitura de uma crônica, se não fossem as surpresas e invenções ficcionais que vão recheando o texto e desviando essa rota. Aqui, os quatro poderes institucionais articulados são cúmplices de um sistema que condena ao silêncio os demais: “como a maioria não se faz ouvir, ou seja, não tem como reclamar, não há atrito na máquina social”. O conto em questão reporta-se a um tempo no qual a morte, que “no final, …vence sempre”, é anunciada, previamente. Como jornalista, o narrador parte para entrevistar um ex-colega medíocre e “importante” com data marcada para morrer. Apresenta Arrabão como alguém que já nasceu ex-croto, sem ter sido jamais croto (gente boa, honrada). “Nem a paixão pela jardinagem, seu único hobby, além daquele de roubar os pobres para dar aos ricos, poderia livrá-lo do inferno, quando morresse.” O hobby anunciado no título do conto, de simplicidade pueril num primeiro momento, é tão estranho quanto o personagem e a ação que se desencadeia.

O canibal talvez seja o conto que mais enfatiza o caráter apocalíptico de um futuro próximo para as grandes cidades governadas pelo neoliberalismo selvagem. Os fatos desenrolam-se por volta de 2012, aproximadamente, depois de se oficializar “por debaixo dos panos” o que o narrador define, inicialmente, com o tom de suspense como a coisa. Sem prolongar muito a curiosidade do leitor, logo esta é definida como a prática generalizada de canibalismo no sentido mais comum da palavra. O fato de a carne humana ser servida no cardápio cotidiano não antevê qualquer referência aos fins simbólicos, ritualísticos, ou religiosos dos nossos homens primitivos. Percebe-se apenas a carnificina de uma violência movida pela fome dos miseráveis ou pelo prazer dos poderosos de desfrutar privilégios, entre os quais se destaca a degustação de iguarias. Afinal, com sinceridade incômoda o narrador se pronuncia: “vou confessar uma coisa: carne humana vicia mais que cigarro ou álcool”.

Impotência
Com A menina, o motivo infanto-juvenil se manifesta, retirando do desamparo de uma criança lições de vida para o público adulto, muitas vezes sem memória da própria infância. Lisa é a menina não desejada nascida de uma família de classe média alta cujos avós “eram patriarcas” e, como os pais, “freqüentavam o Jockey, o Fluminense e o Iate”. Era uma gauche na vida, abandonada num internato para filhas de pais ricos, desajustada, ridicularizada pelas companheiras. É nesse sentido que o narrador avalia que “poucas colegas naquele internato haviam sentido na pele a máxima de La Fontaine de que a criança não conhece compaixão”. Tanto a mãe quanto o pai, tão absortos em suas vidas, não pareciam se importar com a de Lisa. Entender o que acontecia, ela não entendia… Continuava em sua tristeza de Patinho Feio, esperando virar Cisne ou, simplesmente, ser acolhida com o amor de um pai herói que só existia em seus sonhos. A linguagem desse conto destoa do que o antecede (O canibal) e de tantos outros. O narrador assume o ponto de vista e, portanto, o partido da personagem, o que o faz incorporar ao discurso a sua inocência e as suas aspirações quase românticas, se assim se pudesse denominar a carga afetiva e passional que transborda em alguns momentos. Ele admite, ainda, a impotência frente à impossibilidade de dar conta de representar a complexidade da personagem em palavras, papel e tinta: “Seria necessário o talento de um escritor maior para descrever a humanidade temerosa da própria beleza”.

A mesma postura narrativa de compaixão e ternura se processa na construção de O homem e O passarinho. Neste último, o narrador compota-se, para começar, como um cronista. Depois de tecer considerações sobre o autismo, passa a falar de uma discussão que ouviu entre dois médicos sobre assuntos profissionais e filosóficos, como os sentidos da vida, da morte e a existência de Deus. Fecha o relato com um espaço na página e três asteriscos para dar continuidade à história de Jesus, “em verdade, tratava-se de uma criança-passarinho, um autista de 18 anos que tentava, embora não o soubesse sair de dentro da escuridão que existia dentro dele”. As formas que Jesus Justo encontra para sair dessa escuridão vão sendo delineadas no texto em vários sentidos: o passarinho foge de Juiz de Fora, bate a cabeça nas pilastras do hospício quando está com raiva, engole tesouras, alicates, parafusos sob o comando da mãe Vingança, poetisa sobre a vida e sobre “o lindo amor”, apaixona-se e desapaixona-se seguidamente, apega-se a amigos como Rafael e um rato. Entre as referências de uma realidade concreta, marcadas por espaços conhecidos e geograficamente definidos, como o Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro e o Rio de Janeiro, o absurdo se instala com naturalidade através de ações aparentemente incongruentes como elementos do sonho ou da loucura. Com relação ao personagem, um fato era indiscutível: “o que ele queria dar e não sabia, o que ele queria receber e não sabia, era amor”.

A puta é uma história de amor entre o gringo Ulf e a prostituta Brasília. Ao mesmo tempo em que os dois se aproximam e se unem, ela vai deixando para trás sua língua, sua cultura e sua identidade. Brasília amava Ulf, como Iracema amava Martim, como Peri amava Ceci: uma sutil referência intertextual à temática amorosa como elo entre colonizador e colonizado. “Brasília amava Ulf, que lhe dava tudo, menos sua identidade de volta.” O narrador participa da trama como personagem secundário ligado ao estrangeiro por vínculos profissionais, já que participavam juntos de uma equipe de filmagem. Contextualiza o enredo referindo-se brevemente ao panorama cultural de 1975, na Cidade do Rio de Janeiro. Aproveita também para declarar seu amor pela cidade, na qual o encontro amoroso dos personagens tornou-se possível. Por outro lado, pára para refletir sobre o processo de escrita, é assim o texto é perpassado pela metaficção como marca contemporânea de construção textual: “Escrever um conto e tentar descrever Copacabana, principalmente a Avenida Atlântica num glorioso dia de verão, não é coisa para o meu bico, é coisa para escritor mais íntimo de Deus e dos mistérios do porquê ele decidiu concentrar tanta beleza num só lugar”.

Crítica social
Em O homem, Cabelinho também percorre toda uma saga de rebeldia e aparente loucura. Através dele e do caminho acidentado percorrido por esse revoltado atirador de pedras, ou Anjo Apedrejador como se autodenomina, há uma contundente crítica social. Ele revolta-se contra a família, vira-lhe as costas no exato momento em que o prédio onde morava desabara. “Descobri que as estruturas familiares estavam podres…”. Indigna-se contra a mentira propagada pela televisão, contra a agressão do mais forte sobre o mais fraco, contra o sistema financeiro, contra os cobradores de imposto, contra os políticos demagogos. Sua reação mais comum era o apedrejamento e para isso encontrava sempre cúmplices fiéis. “A sinceridade de Cabelinho, a honestidade da sua ira jamais deixaram de impressionar os passantes que logo se juntaram a ele no apedrejamento.” O destino derradeiro de Cabelinho é anunciado logo no primeiro parágrafo e é fácil supor que não pode ter tido um final feliz, depois de ser preso como demolidor, retido no hospício, e perseguido de muitas formas. Simbologias, metáforas, incoerências são elementos integrados à ação e à construção da trama de maneira coesa e convincente, de modo que, apesar de todos esses elementos conspirarem para intensificar a denúncia, o texto nega a condição funcional de mero panfleto. Ou seja, apesar de ser protesto, não pára por aí, é bem mais que isto.

Todos os esforços na articulação dessa linguagem reúnem múltiplos e conflitantes elementos, entre os quais a fundamental “marca suja da vida”, quer seja em prosa, em versos, em fragmentos, em reportagens, em desabafos ou em crítica militante. Esse poeta soube fazer “o leitor satisfeito de si dar o desespero…”, porque, como “a nódoa de lama na roupa de brim branco muito bem engomada”, lá está a vida, impregnada de suas contradições e desesperos, lutas e utopias. Este livro de contos revela o escritor em suas variadas faces: paixão, indignação, empenho, competência, compulsão em vários níveis, um radical amor pelas formas simples do cotidiano e pela urgência dos seus registros. Foram estas as marcas que nortearam a trajetória de Fausto Woff, recentemente interrompida pela morte. Lê-lo e partilhar de suas buscas pode ser uma singela homenagem ao irmão que partiu e deixou através de sua criação e obra, em meio a tantos desencantos, a esperança numa humanidade sofrida, que como sobrevivente do caos contemporâneo, ainda sabe revelar seus amores, suas dores e sua força.

Melhores contos
Fausto Wolff
Global
184 págs.
Fausto Wolff
Nasceu em Santo Ângelo (RS), em 1940. Iniciou a carreira de jornalista aos 14 anos como repórter policial em Porto Alegre. Em 1958, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou para vários jornais, revistas e redes de televisão. Residiu dez anos na Europa, período em que escreveu para cinema, dirigiu teatro, foi correspondente de jornais brasileiros e ensinou literatura nas universidades de Nápoles (1968 a 1972) e Copenhague (1972 a 1978). Foi um dos editores de O Pasquim e escreveu milhares de artigos para a imprensa. Alguns de seus livros foram sucessivamente reeditados, a exemplo de Sandra na terra do antes, com mais de 50 mil exemplares vendidos, traduzidos para várias línguas e cuja primeira edição saiu em folhetim na Dinamarca. Traduziu para o português autores norte-americanos e europeus. Romancista, contista e poeta, conquistou os prêmios Revelação de Romance JB, Academia Mineira de Letras, União Brasileira de Escritores, Feira do Livro de Porto Alegre, Nestlé e Jabuti, entre outros. Morreu em 5 de setembro, aos 68 anos.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho