Em 1963, o poeta piauiense Hindemburgo Dobal Teixeira, cujo nom de plume é H. Dobal, morava no Rio de Janeiro. Certo dia, dirigindo pelo bairro das Laranjeiras, ao lado da esposa, viu Manuel Bandeira num ponto de ônibus. Ofereceu-lhe carona. No caminho, dona Creusa comentou que eram amigos de Odylo Costa, filho, e que o marido escrevia versos. Bandeira então solicitou alguns poemas para tomar ciência. Não demorou para que se arrebatasse com a qualidade do material. Os dois se encontraram outra vez, no mesmo ano, em um jantar no apartamento do poeta pernambucano. Os contatos foram suficientes para a inclusão de Dobal na segunda edição da Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Organização Simões, 1965), organizada por Manuel Bandeira em 1965.
Na introdução aos poemas, Bandeira o apresenta assim:
H. Dobal é como Hindenburgo Dobal Teixeira assina os seus poemas. Esse bissexto, que só vim conhecer em 63, nasceu em Teresina a 17 de outubro de 1927.
Formado em direito, mora há alguns anos no Rio, onde trabalha no Ministério da Fazenda. Publicou versos na revista Meridiano, que circulou em Teresina por volta de 50 e foi no Rio lançado por Odylo Costa, filho na revista Senhor. Com periodicidade incerta escreve e traduz poemas. Os poucos aqui insertos bastam para atestar a força poética de seu autor.
Bandeira destacou Réquiem, Bucólica, Campo maior, Porta-aviões visto do Ministério da Fazenda e este Bestiário:
O homem e os outros bichos que passeiam
neste campo de cinza te perseguem,
e após tantos verões sua presença
ainda se guarda em ti como na infância
E em ti se faz antiga esta lembrança
do descuidado andar nestas veredas
de gado. Mas outra vez nos tabuleiros
de abril teu cavalim de carnaúba
estradando no ar campeia ovelhas.
Vence os campos de outrora e as miunças
soltas do seu passado te restauram
em teu tempo. Teu tempo consequente
neste imenso curral em que te amansas
triste e só campeador de lembranças.
Mesmo com o repentino reconhecimento, Dobal preferiu permanecer ensimesmado. Segundo o escritor e ensaísta Halan Silva, em As formas incompletas – Apontamentos para uma biografia, o distanciamento da vida literária teria pelo menos dois motivos: o temperamento introvertido e a falta de uma grande casa editorial que distribuísse suas obras, de forma eficiente, pelo país. O isolamento chegou ao ponto de ele se recusar a assinar uma coluna no Jornal do Brasil. Preferiu, à época, seguir sua carreira de funcionário no Ministério da Fazenda.
Ainda assim, inúmeros autores e críticos literários deliberaram sobre seu trabalho, em jornais, revistas, cartas e livros: Ivan Junqueira, Wilson Martins, Fausto Cunha, Fábio Lucas, Cineas Santos, Olga Savary, Ferreira Gullar e tantos outros.
Em Teresina, na década de 1950, foi visitado por Mário Faustino. Em 1994, recebeu o professor Benedito Nunes, que esteve no Piauí. Logo, não foram poucas as chances de atuação nas rodas literárias. Porém, nem mesmo enviava suas publicações aos colegas de ofício. Permaneceu anônimo, sem fazer concessões a si mesmo, e só publicava quando estava absolutamente seguro.
Com certeza, não é tão memorável como deveria ser, até mesmo em seu próprio estado natal, justamente por essas características.
Uma outra singularidade dobalina era seu gosto pelo metro iâmbico anglo-saxão, fato curioso para um autor natural do Meio-Norte brasileiro. Dobal tinha paixão por Eliot, Yeats, Cummings e Auden. Foi o primeiro poeta brasileiro a traduzir um poema de Cummings.
A matéria de seus poemas é a geografia física e humana do Piauí, mas a forma e o ritmo são ingleses. E essa tentativa de reproduzir o ritmo em língua portuguesa o obrigou a escolher palavras curtas, monossílabos e dissílabos, o que causou em muitos leitores a impressão equivocada de estarem diante de uma poesia de vocabulário pobre. A suposta pobreza, no entanto, é isomórfica à penúria das paisagens que o poeta retrata. Então, a reprodução do ritmo iâmbico foi, certamente, algo muito pensado, ainda que ele jamais revelasse o segredo.
Dobal e Faustino
Quando se fala em poetas do Piauí, logo vem à lembrança Mário Faustino. H. Dobal, seu contemporâneo, teria algum ponto em comum com o autor de O homem e sua hora?
Para Ranieri Ribas, doutor em Filosofia pela USP e estudioso da obra de H. Dobal, o único paralelo entre os dois é o fato de serem poetas leitores de Ezra Pound:
Mário Faustino, apesar de se autodeclarar um poundiano, o era apenas no modo como exercia publicamente sua “crítica de oficina”. Ele imitava o modo como Pound examinava os poemas e as obras. Porém, como poeta, Mário era um imitador exemplar do modo órfico e místico como Jorge de Lima escrevia sonetos. Não era um poeta poundiano. Desde que Jorge publicou o impactante e esquecido Livro de sonetos, em novembro de 1949, vários jovens poetas passaram a imitá-lo: Hilda Hilst, Jayro José Xavier, Octávio Mora, Henriqueta Lisboa, além de Faustino. No fim da década de 1950, depois de sua morte, Jorge era o poeta mais imitado da poesia brasileira.
H. Dobal não era nem um crítico de oficina poundiano, nem um imitador dos sonetos de Jorge de Lima, nem um poeta órfico. Se Mário era um autor desterrado, “cosmopolita” (sua poesia não retratava nem Belém do Pará, nem Teresina, nem o Rio de Janeiro), Dobal era telúrico e fenomênico. Retratava o ethos de sua aldeia de um modo muito particular e autoral.
Há quem afirme, porém, que o bardo teresinense teria ficado menos telúrico e ecumênico em seus últimos livros. Ribas concorda com o ponto de vista:
Ficou mais preso a certo “denuncismo” de questões de caráter social e cultural, como em A profanação do cemitério da praia do coqueiro ou o Memorial do jenipapo. Mas isso é de somenos importância. Devemos dar um desconto. Afinal, aliquando bonus dormitat homerus.
O poeta piauiense também possui uma fração elegíaca. Em A cidade substituída figura um de seus escritos favoritos: Lamentação de Pieter van der Ley no Outeiro da Cruz.
Nele, resgata o episódio do ataque holandês ao Maranhão, em 25 de novembro de 1641. São versos que imprimem no leitor a agonia de um soldado batavo, morto aos 20 anos, naquele combate.
Eu, Pieter van der Ley,
soldado da Holanda,
trazido até aqui
na luta santa contra os papistas,
mas também movido
pelo sonho da aventura e da riqueza,
fui morto aqui numa emboscada dos guerrilheiros do Brasil.
Fui morto aqui neste lugar
depois chamado Outeiro da Cruz
Em memória desta emboscada.
E aqui me tenho para sempre.
Os meus derrotados camaradas regressaram.
Eu sou o filho pródigo que os pais nunca reviram.
A violência do sol, o peso das chuvas,
o tempo tropical não me desgasta.
Mas perdi para sempre o claro-escuro da Holanda,
os canais onde a água refletia as tabernas,
perdi as planícies onde o gado frísio
Pastava na bruma,
Onde o gado malhado
transformava em leite a pastagem gorda.
Aqui neste Outeiro da Cruz,
hoje envolvido,
hoje engolido pela cidade,
passam os que procuram o aeroporto e me deixam
as suas lições de bem partir, de mal partir.
Aqui por perto manobram os caminhões de refrigerantes.
Eu não parto. O meu refrigério é apenas
esta brisa triste trazendo os adeuses do mar.
Eu, outrora chamado Pieter van der Ley,
espírito preso neste Outeiro da Cruz,
cumpro uma pena interminável,
expio um pecado de que não me lembro.
O meu corpo de vinte anos,
depositado neste chão,
composição que se decompôs rapidamente,
o meu corpo me abandonou.
A minha pele clara, os meus olhos claros,
os meus músculos, os meus cabelos ruivos
me abandonaram.
E aqui me tenho: menos do que sombra.
Corpo etéreo, fantasma, alma penada,
Que ninguém vê,
Que ninguém ouve,
Que ninguém conhece,
neste exílio post-mortem.
O poema narrativo de Dobal é um bom modo de encerrar esta narração que busca repetir o que Bandeira tentou em 1965: lançar luz sobre um artista “que ninguém vê, que ninguém ouve, que ninguém conhece”. Mas que precisa ser visto, ouvido e conhecido.