O que é uma biografia? Sergio Vilas-Boas, um dos principais teóricos do assunto no país, diz que é a vida do biografado segundo o olhar de seu biógrafo. A partir dessa definição, temos já claro que é uma obra de cunho autoral, em que o escritor imprime sua visão de mundo sobre a vida do personagem que resolve investigar; uma obra de quem a escreve, não de quem nela é retratado.
Porém, a resposta está longe de esgotar o assunto. Qual a profundidade que a obra deve ter? Como o biógrafo deve se portar em relação ao biografado? Ela deve ser uma grande reunião de acontecimentos, números e datas, independentemente de sua relevância para contar a história do personagem, ou pode se deter nos principais elementos da vida do biografado, aqueles que realmente tocam e revelam sua personalidade? É melhor um Ruy Castro e sua paixão por fatos e mais fatos e mais fatos ou um Fernando Morais, com sua clara preferência pela história como um todo?
Sendo um gênero da literatura de não-ficção que flerta e se mistura em diversos momentos com o jornalismo, o que podemos realmente afirmar é que em uma biografia não há espaço algum para invenções por parte do escritor com relação ao conteúdo. Não é permitido pegar um apanhado de fatos esparsos e colocá-los em uma única cena. Não é possível juntar três ou quatro personagens em um só. Não é válido criar diálogos com base naquilo que pessoas poderiam ter dito, mas jamais disseram. Burlar uma dessas regras ou qualquer outra semelhante é quebrar o pacto implícito que há entre biógrafo e leitor.
Desconfiança
Edgar Allan Poe: O mago do terror — Romance biográfico, escrito pela contista e romancista Jeanette Rozsas, é uma boa oportunidade para discutirmos alguns desses pontos. O fato de ele ser destinado a adolescentes, com capítulos breves, textos explicativos, esmiuçada cronologia, aperitivos de trabalhos de Poe e tom bastante didático não é um impeditivo para tratarmos de certos pontos que podem ser aplicados a qualquer exemplar do gênero.
Logo no título já nos deparamos com um grande problema: romance biográfico. Como deveríamos entender um romance biográfico? É uma biografia escrita na forma de romance, que utiliza recursos literários tradicionalmente ligados à ficção? Se for isso, perfeito. É realmente com esse apoio, com essas ferramentas que a literatura de não-ficção se aprimora e consolida seu espaço. Mas e se romance biográfico significar a romantização do que lemos, ou seja, um livro em algum grau inventado, livremente adaptado ou ficcionalizado?
Apesar de a autora dizer que é uma obra “na forma de romance, mas com absoluta fidelidade aos fatos tirados do vasto material bibliográfico consultado”, em certos momentos há sim a impressão de que passagens foram apenas inspiradas na realidade. Eis uma amostra:
Naquela noite, Eddie não conseguiu dormir. Cada vez que fechava os olhos, era atormentado por cenas que o deixavam apavorado. Lá pelas tantas, perguntou ao primo James:
— Jimmy, você já entrou num cemitério?
O primo, que começava a pegar no sono, murmurou alguma coisa e virou para o outro lado. Edgar insistiu:
— Você já entrou ou não?
Dessa vez, James acordou. Conhecia bem o garoto para saber, se não respondesse logo, não teria sossego.
— O que você quer, Eddie? Eu já estava quase dormindo.
— Quero saber se você já entrou num cemitério.
— Claro que sim.
— Quando?
— Sei lá… Quando meu avô morreu. E às vezes a gente andava por lá, na saída da escola.
— Você ficou com medo?
James hesitou um segundo antes de responder:
— Quem, eu? Medo? Medo de quê?
— Bom, não sei… Aqueles túmulos… Saber que debaixo da terra tem gente morta, um monte de esqueletos enterrados.
— Se estão enterrados, não tem do que ter medo.
— Mas e se algum escapar?
— Como vai escapar se está morto, bobinho? Você não sabe que depois que botam o caixão lá embaixo, jogam um monte de terra até encher a cova e ainda uma camada de cimento?
— Quer dizer que ninguém escapa?
— Claro que não. Mesmo porque, para ficar lá embaixo, tem de estar morto, e mortos não costumam andar por aí.
Posso estar sendo cético demais e cometendo uma injustiça com a autora: o trecho acima me parece verossimilhante, contudo bastante improvável de ter sido de alguma forma lembrado ou registrado com tamanha precisão e riqueza. Claro que é possível que o jovem Poe tenha falado de seus temores ao primo antes de dormir, mas há um detalhamento muito grande no diálogo, muitas trocas entre os interlocutores, o que leva à desconfiança de que parte da conversa — ou toda ela — tenha sido imaginada por Jeanette, que em determinadas oportunidades parece usar o recurso de forma utilitarista, para mostrar elementos da história que poderiam estar na narrativa.
Não custa lembrar que Jeanette baseou suas pesquisas principalmente em outros livros sobre o autor e, obviamente, não teve acesso a nenhum dos personagens que tenha vivido a história contada, o que dificulta sobremaneira seu trabalho, principalmente quando a precisão e o apego ao real são imprescindíveis.
A obra e sua proposta
Apesar de passar por diversos momentos da vida do escritor, Edgar Allan Poe: O mago do terror se aprofunda muito pouco em tudo o que aborda. Retomemos uma das indagações do texto: não é preciso um mundo de dados e números, mas sim grande aprofundamento — que não está necessariamente no excesso de informações — na vida e na personalidade do biografado. Jeanette peca nesse sentido: o que escreve é quase que uma grande sinopse de toda a existência do autor de O corvo.
Nos capítulos finais, quando a autora conta como Poe passou a fazer sucesso depois de sua morte e mostra a importância de Baudelaire nesse processo, aproveita também para apresentar mais algumas relevantes informações biográficas. Refuta, por exemplo, o boato de que o escritor teria morrido virgem, dizendo que sua vida amorosa contou com inúmeros relacionamentos públicos e escandalosos. Esses relacionamentos que contradizem uma suposição feita com relação ao biografado não mereciam um espaço melhor? Por que não aparecem enquanto a vida do escritor é narrada?
Também Jeanette busca mais defender do que entender Poe, mais idealizá-lo do que humanizá-lo. Não que o biógrafo não possa admirar seu personagem. Aliás, na maioria das vezes é essa admiração que leva alguém a se aventurar pelo gênero. Porém, se a total imparcialidade na hora de realizar o trabalho é algo utópico, o oposto faz com que o texto fique capenga, o que não é bom para o biógrafo, nem para o biografado.
Mas há uma ressalva a se fazer, retomando outro ponto da resenha: se falta fidelidade, profundidade e alguma imparcialidade para que a biografia seja absolutamente boa, a superficialidade e a paixão podem torná-la um atraente meio de introdução ao escritor para os jovens, seu público-alvo, e despertar neles algum interesse pela obra de Poe. O que torna o livro ao menos relativamente bom e bem sucedido em seu intento.