O poder do idioma

A infância é o centro da poesia de Alberto da Costa e Silva
Alberto da Costa e Silva, autor de “Melhores poemas”
01/03/2008

Embora só passe a contar para o público de literatura brasileira a partir de 1997, com a publicação de Ao lado de Vera (Prêmio Jabuti), Alberto da Costa e Silva (1931) mantinha-se com um patrimônio praticamente secreto da língua portuguesa. Seu primeiro livro — O parque e outros poemas — é de 1953 e já trazia o poeta formado, cuja trajetória pode ser vista no volume Melhores poemas de Alberto da Costa e Silva, organizado por André Seffrin, um dos maiores conhecedores da poesia brasileira contemporânea.

Durante essas quatro décadas sua produção encontrou eco num círculo pessoal de leitores, em consonância com sua mundividência focada nas relações familiares. Este ambiente íntimo de leitura é mais um elemento de coerência de um verbo próximo das coisas, próximo da vida, um verbo com medidas humanas. Mas é também um produto histórico, em boa parte determinado pelos mecanismos de recepção da poesia brasileira na segunda metade do século 20. E ainda uma circunstância autobiográfica.

A objetividade, muita vez extremada, deu a tônica desse período, centralizando a poesia em conceitos encarnados por João Cabral de Melo Neto e pelos concretistas, o que acabou criando focos de resistência marginais e outros mais herméticos. Enquanto isso, Alberto da Costa e Silva dedicava-se a um lirismo sereno e preciso, sem romper com o idioma e sim buscando as fontes mais matinais e os temas ancestrais.

O centro de sua poesia, que Seffrin soube muito bem identificar na seleção, é a infância. A sua própria infância, passada ao lado do pai doente, o poeta Da Costa e Silva, mas também as infâncias de seus filhos e netos, que lhe inspiraram poemas belíssimos. A perda do pai vai criar em Alberto um sentimento profundo de orfandade, que ele busca superar pelo verbo. Valendo-se da poesia, ele se deixa ficar menino, à sombra de um tempo em que o pai era vivo, instaurando um convívio perene com aquele mundo que ele expande rumo aos filhos e netos. A sua é, portanto, uma poesia soldadora de tempo, que funda um presente eterno, onde o pai e seu amor pelos pássaros e insetos, o pai fora do mundo adulto, o pai-criança, portanto, vive em sintonia com o filho, mas também com os netos e bisnetos, tudo neste universo paralelo da poesia.

Em Escrito a lápis, sob um epitáfio romano, o poeta revela suas coordenadas:

(Quintus Artulus.
Tinha quatro anos de idade,
e puseram sobre ele
esta pedra.)

Ao libertar a criança (nele e nos outros) do peso da história e da morte, o poeta lhe devolve ao mundo em que essas fronteiras foram abolidas, criando um tempo inteiriço. Ele declara em outro poema: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino”. A infância alicerça essa temporalidade total que pode ser encontrada em suas posturas estéticas. Alberto busca descender de outros tempos como uma forma de ficar ao lado do pai, opondo-se ao culto da ruptura, que deformou muito da cultura no século 20, e se afirmando como poeta da comunhão.

Outro fator que retardou o conhecimento de seu trabalho foi sua trajetória profissional. Entregue à vida diplomática (serviu em vários países), publicou mais para consumo dos amigos os seus livros. Tal ausência também interferiu em sua visão das coisas, pois, ao habitar pela distância o país que ele tanto ama, cultivou o frescor do idioma matinal, tão forte em sua memória.

Todos esses elementos contribuíram para o surgimento de uma poética que nos devolve a crença numa língua portuguesa que tem suas raízes nas experiências mínimas do menino, num ato de solidariedade ao mundo contido no quintal extinto, onde se davam as descobertas fundadoras. Com grande acerto, André Seffrin inclui entre os melhores poemas trechos de O espelho de príncipe (1994), o volume de memórias de Alberto, um verdadeiro mapeamento lírico da infância, revelando que o poeta nasce da ausência/presença do pai e das mitologias daquela quadra.

Poeta da infância conquistada pelo idioma sereno e comovido da criança, Alberto da Costa e Silva se fez um dos maiores nomes contemporâneos da lírica de língua portuguesa por seu profundo sentimento de pertencimento a um país, a uma tradição — antídoto contra o exílio e a orfandade.

Alberto da Costa e Silva e Josué Montello no rio de janeiro, em 1956

POEMAS

Murmúrio

Meu pai,
a tua essência
superou
o tempo
e a sorte:

deixaste
atrás de ti
alguém
que ficou
a morrer.

5 de Setembro

Quando nos criaram,
as mãos do deus já estavam
casadas.

Por isso,
somos frágeis e mortais. E amamos,
para resgatar o que no deus
foi sonho.

Soneto a Vera

Estavas sempre aqui, nesta paisagem.
E nela permaneces, neste assombro
do tempo que só é o que já fomos,
um céu parado sobre o mar do instante.

Vives subitamente em despedida,
calma de sonhos, simples visitante
daquilo que te cerca e do que fica
imóvel no que é breve, pouco e humano.

As regatas ao sol vêm da penumbra
onda abria as janelas. E de então,
vou ao campo de trevo, à tua espera.

O que passa persiste no que tenho:
a roupa no estendal, o muro, os pombos,
tudo é eterno quando nós o vemos.

LEIA ENTREVISTA COM ALBERTO DA COSTA E SILVA

Melhores poemas
Alberto da Costa e Silva
Sel.: André Seffrin
Global
217 págs
Alberto da Costa e Silva
Nasceu em São Paulo (SP), em 1931. No início dos anos 50, integrou o grupo da Revista Branca, de Saldanha Coelho, ao lado de Samuel Rawet, Fausto Cunha, Renar Perez, Bráulio do Nascimento. Diplomou-se pelo Instituto Rio Branco em 1957. Na carreira diplomática, esteve em Lisboa, Caracas, Washington, Madri, Roma, Lagos, Bogotá e Assunção. Estreou na poesia em 1953, com O parque e outros poemas. Dentre outros, publicou O tecelão, Alberto da Costa e Silva carda, fia, doba e tece, As linhas da mão, Ao lado de Vera. Entre 2002-2003, foi presidente da Academia Brasileira de Letras. Considerado um grande africanista, é autor de O vício da África e outros vícios, A enxada e a lança, As relações entre o Brasil e a África negra, Um rio chamado Atlântico, entre outros.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho