O poder da escrita

Com A raposa já era o caçador, Herta Müller continua a escancarar os pavores causados pelo regime comunista romeno
Herta Müller, autora de “A raposa já era o caçador”
22/09/2015

“Se soltamos a esperança e o medo, morremos”, diz Herta Müller em seu livro de ensaios autobiográficos Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio. Ainda que breve, a frase consegue mostrar a condição da vida das pessoas sob regimes totalitários, principalmente o sentimento que teve durante a infância na Romênia.

O regime totalitário de Nicolae Ceaucescu, que implementou o estado comunista entre 1965 e 1989 na Romênia, é retomado por Müller no romance A raposa já era o caçador. Ambientado no final dos anos 1980, últimos anos do regime, o romance aborda as dificuldades e a fragilidade da segurança na vida de pessoas das classes trabalhadoras.

A autora constrói personagens que acabaram de se tornar adultos, procurando suas formas de viver e amar ainda que sem liberdade. O resultado é um livro poderoso tanto em sua linguagem quanto em seu enredo.

A trama gira em torno de Adina, uma jovem professora, e sua amiga Clara, operária de fábrica que mantém um relacionamento amoroso com Pavel, um homem casado.

Adina é uma jovem simples. Usa há vários verões um mesmo vestido estampado com árvores de ponta cabeça — feito de maneira errada pela costureira, as copas das árvores estão para baixo enquanto o tronco está para cima. Um de seus objetos mais preciosos é possivelmente um tapete de pele de raposa que deixa em seu quarto, diante do guarda-roupa. O objeto está na sua vida desde a infância — é com ele que Adina descobre que junto da felicidade de se ter um objeto precioso vem o medo de perdê-lo.

O tapete é usado pela autora como uma grande metáfora para o que acontece na vida de Adina. Aos poucos, a casa da personagem começa a dar voz para uma ameaça invisível, mas real para pessoas sob um regime totalitário. Quando volta para casa, Adina vê pequenos objetos boiando em sem vaso sanitário: bitucas de cigarro, sementes de girassol. Além disso, pedaços do tão amado tapete são esporadicamente cortados — patas e rabo deixam de fazer parte do peça.

Aos poucos Adina sente o peso de saber que não é apenas ela que frequenta seu quarto — existem outros passos em seu chão e outros olhos em suas coisas. Além disso, Adina é também surpreendida quando ela e seu grupo de música passam a ser vigiados.

O conflito se intensifica quando Adina e Clara descobrem que Pavel é na realidade um agente da polícia secreta comunista. Assim, enquanto o tapete se desfaz, se desfaz também a relação de amizade entre as personagens.

Uma crueldade aparentemente pouco árida, mas terrível para as personagens, é instaurada como clima na narrativa: existe uma forte mudança na percepção da realidade. Relações tidas como certas sofrem uma inversão e se tornam instáveis — a raposa, que já foi o caçador, se torna um inofensivo e desfeito adorno no chão de um apartamento.

Escrita
O enredo já forte é trabalho por Herta com uma linguagem poderosa. A narrativa é construída de fragmentos. Cada um dos trechos parece criar uma cena e o leitor se depara com diversas imagens de como era a vida na Romênia naquele momento e como os personagens lidam com essa realidade.

Muitos trechos, por exemplo, pretendem fazer um retrato da sociedade e sua miséria, humilhação, exploração e desesperança:

A criança riu para dentro da frase e do silêncio que veio depois. E seus dentes eram como cascalho, os escuros quebrados e os brancos, lisos. No rosto da criança havia uma idade que a voz infantil não suportava. O rosto da criança cheirava a fruta podre.

Por vezes a autora opta por mostrar um pouco mais sobre o governo. Por vezes, mostra a ineficiência das estruturas públicas e a corrupção dos líderes. Ao mesmo tempo, apresenta a fria influência do regime na vida das pessoas:

Durante um ano, mês a mês, Ilije tece de ir a trabalho a Bucareste, saiu da cidade todas as vezes nessa direção, passando ao lado do presídio. As celas ficam atrás, no pátio. Quem não tem ninguém lá não as vê, Ilije disse naquela época, mas quem tem alguém lá sente na cabeça para onde tem de olhar. Por algumas centenas de metros nesse trecho, ele disse, os rostos se confrontam no vagão. Nessa hora é possível sentir, debaixo de todos os outros olhos, aqueles que sabem para onde têm de olhar.

Herta Müller parece sempre mostrar, nunca contar, como é a vida naquele momento. O cenário é assim construído aos poucos, como se ela fosse na realidade a diretora capaz de dizer para onde a câmera deve ser apontada. Ao fragmentar sua narrativa, ela dá voz para que os acontecimentos falem por si só.

Esse formato de narrativa demanda muita atenção do leitor, mas torna a leitura uma experiência quase real e visível. Essa opção cria vários resultados e efeitos para a leitura.

Um deles é a aparente ausência de vida própria dos personagens, que parecem em muitos momentos apenas orbitar algo sem que tenham consciência completa de suas vidas ou escolhas. São trens a serem pegos, dias a serem trabalhados, pensamentos a serem esquecidos. Os acontecimentos parecem depender muito pouco de si próprios, são apenas coisas que surgem enquanto se vive.

Outro efeito da narrativa é a sensação de que a realidade dos personagens é sempre vivida em fragmentos, nunca de forma plena. A autora constrói assim uma aura sufocante de vida, como se os personagens nunca pudessem ser eles mesmos e fazer o que quiserem. A opressão de um regime como o de Ceaucescu em vidas individuais fica muito evidente na escrita.

Além disso, o leitor fica com a sensação de que os personagens estão completamente envoltos por essa realidade árida e não têm nenhuma esperança de escapatória. A narrativa permeia dramas pessoais com cenas de miséria e desespero de tantos outros personagens. A realidade triste de um deles é apenas um retalho de uma colcha que se vai construindo ao longo da narrativa.

Outro aspecto que Müller deixa evidente em sua obra é a forte capacidade destrutiva do governo. Pavel, o agente secreto, parece destruir as relações de todas as pessoas com a qual se envolve – desde sua mulher, traída em seu casamento, quando Clara, que tem suas amizades desfeitas quando Pavel passa a investigar seus amigos. Além disso, vários dos outros dramas apresentados mostram como o sistema era capaz de destruir até os sonhos das pessoas.

Todas esses efeitos da escrita só reforçam o que o enredo já dizia. A crítica de Herta Müller ao totalitarismo fica evidente em vários momentos, desde um âmbito individual ao âmbito coletivo. O resultado é um livro forte e perturbador.

A raposa já era o caçador
Herta Müller
Trad.: Claudia Abeling
Biblioteca Azul
242 págs.
Herta Müller
É romena. Nasceu em 1953 e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2009. Além de romances, escreve também poesia e ensaios. Por se recusar a colaborar com o regime secreto romeno, mudou-se para Alemanha, onde vive até hoje.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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