A Objetiva está lançando mais um volume da série Fora dos eixos. Após publicar os livros do gaúcho Paulo Scott (Voláteis) e “descobrir” a excelente escritora Valéria Resende (O vôo da guará vermelha), ex-freira que surpreende pela qualidade de sua prosa, a editora carioca edita agora o livro Memória do fogo, de Ronaldo Monte, 59, alagoano radicado na cidade de João Pessoa, Paraíba. Professor de psicologia, psicanalista, poeta e colunista do jornal Correio da Paraíba, Monte já publicou os títulos Pelo canto dos olhos (1983), Memória curta (1996), Tecelagem noturna (2000), Pequeno caos (2003) e World Trade Center (2004).
A idéia da série Fora dos eixos é bastante válida (tanto que nos perguntamos por que só agora estaria acontecendo) e merece todos os louros, sobretudo, por colocar no mercado brasileiro vozes que dificilmente ultrapassariam as cercanias de suas regiões, uma vez que, lamentavelmente, quase não há editoras com boa distribuição fora do eixo Rio — São Paulo. O que não quer dizer que os autores que residem nesse (tal) eixo gozem da glória e que seus livros se transformem instantaneamente em best-sellers. Ainda há uma infinidade de nomes que não chegaram às escolas, à academia, às indicações de vestibulares, adaptações, traduções, etc. Assim, o mais interessante é pensarmos sempre em como pulverizar mais e mais a produção de bens literários, fazendo-os chegar a um contingente cada vez maior de pessoas. Felizmente já existem muitos exemplos. Alguns autores como Rinaldo de Fernandes (que vem revelando muita gente de talento como na recente coletânea Contos cruéis, Geração Editorial), Ruy Espinheira Filho e tantos outros, além de periódicos como Et cetera (Curitiba), Continente multicultural (Recife), Correio das artes (João Pessoa) e o próprio Rascunho vêm fazendo isso, todos com alcance nacional. Isso para não falarmos na febre do momento, que são os blogs e sites literários.
Em Memória do fogo temos, entre outros, um canavieiro, um lanceiro de maracatu, um padeiro, jovem vidente, um órfão e um mecânico, distribuídos em sete episódios (Cara preta, Caboclo de lança, Boca de forno, Massapê, Meia luz, Darque e Cinzas), personagens imersos numa espécie de névoa, de sonho, isso num universo claustrofóbico, de almas e contextos áridos e que nos remete vagamente à armadura de Vidas secas, o célebre romance de seu conterrâneo Graciliano Ramos. Não que Memória do fogo tenha forte conteúdo regionalista (a despeito de se passar numa região que lembra o sertão, a caatinga, um canavial), mas porque é possível ler suas histórias independentemente, apesar de serem interligadas. Aos poucos, o leitor perceberá que são blocos intermediários que se montam, mosaicos que ganham muito se lidos em conjunto. Cada “episódio” conta um pouco da vida de cada personagem. Aos poucos, eles se aproximam. E se encaixam.
O entrechoque entre a urbis e o rural, a idéia de desenvolvimento em paralelo ao sujo, à pobreza, à miséria e ao pitoresco são elementos que convivem fortemente numa linguagem que busca certa eufonia musical (“Menino feio me proteja, que mesmo eu não sendo negro — que eu não sei que cor eu tenho — preciso de proteção nessa hora tão escura. Menino feio, que eu não sei quem é você, me livre dessa agonia, que eu não queria ficar aqui”, pág. 34), uma poeticidade para além do simples desenrolar de fatos. Esforços do autor em alcançar uma linguagem tersa, pois não há diluição nem fragmentação e, embora em alguns momentos o texto possa parecer rebuscado, isso não acontece porque o livro está amparado em linguagem e expressões populares, reforçando o conhecimento do autor nas guiadas, chapeados (carregadores), jiraus e demais vocábulos típicos dos sujeitos, objetos e ambientes retratados. Pode-se dizer que o falar popular está representado com intensa força dramática. Talvez por isso, o livro não tenha gordura nem excessos. Ao contrário, Memória do fogo vai do pungente gracilianismo à densidade e dicção cabralinas.
Leitura da alma
A noção de memória é colocada em prática por Ronaldo Monte no sentido de herança, verdade. No capítulo inicial/primeira história, por exemplo, enquanto aguarda um trem, um menino começa a “descobrir” alguns segredos dos outros. Ele lê/vê a alma das pessoas, o que elas realmente sentem, muito além das idéias de passado e futuro elencados pelos ciganos e sensitivos. Uma leitura da alma e de aura, da verdade escondida do outro.
Memória aqui é alegoria que luta contra o apagamento das coisas, a morte, o esquecimento. Em Teogonia, de Hesíodo, Jaa Torrano relata que a memória é a quinta união de Zeus. Depois de suas uniões com Mêtis, Thémis, Eurynóme e Deméter, Zeus se junta à Memória. Na lista de suas esposas, Memória está entre Deméter e Lete. Alétheia, explica Adélia Bezerra de Meneses, “é o não esquecimento: alétheia (a, ou alfa privativo + letheia, de lethe = esquecimento)”. Para os gregos, memória é uma deusa, Mnemosyne, que, em sua união com Zeus, gerou nove musas em nove noites passadas. Elas lembram aos homens a recordação dos heróis e seus feitos e, sobretudo, inspiram os poetas.
Em Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant destaca a noção de “força infernal” do esquecimento, que surge num contexto carregado de negatividade, destruição, desterro, abismo. A idéia de esquecimento associada à morte ocorre a partir da união entre Mnemosyne (memória) e Lethe (esquecimento):
Léthe, Esquecimento, associada a Mnemosyne e formando com ela um par de forças religiosas complementares. Antes de penetrar na boca do inferno, o consultante, já submetido aos ritos purificatórios, era conduzido para perto das duas fontes chamadas Léthe e Mnemosyne. Ao beber na primeira, ele esquecia tudo da sua vida humana e, semelhante a um morto, entrava no domínio da Noite. Pela água da segunda, ele devia guardar a memória de tudo o que havia visto e ouvido no outro mundo… Como a mãe das Musas, ela tem a função de “revelar o que foi e o que será”. Mas, associada a Léthe, ela se reveste do aspecto de uma força infernal, agindo no limiar do além-túmulo.
Ressaltando que a evocação do passado não faz reviver o que não existe mais, ou seja, a simples rememoração, a volta ao tempo não faz “esquecer” nem apaga a realidade, Vernant lança (e procura responder) uma questão que, aliás, persegue boa parte dos estudos sobre memória: “Qual é então a função da memória? Não reconstrói o tempo: não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e do além ao qual retorna tudo o que deixou a luz do sol”.
Vendo o esquecimento como cativeiro (“o cativeiro e o esquecimento de Matyendranâth constituem um motivo pan-indiano. Os dois infortúnios exprimem, plasticamente, a queda do espírito… no circuito das existências e, conseqüentemente, a perda de consciência de Si”), Mircea Eliade afirma no ensaio Mitologia da memória e do esquecimento (no livro Aspectos do mito) que
na medida em que é “esquecido”, o “passado” é identificado com a morte; ressaltando que a literatura indiana utiliza imagens de prisão, ignorância e esquecimento para representar a condição humana; e, ao contrário, imagens de liberdade, memória e recordação para exprimir a abolição (ou a transcendência) da condição humana, a liberdade, a libertação.
E é exatamente isso o que buscam os personagens de Ronaldo Monte. Todos trazem essa crença de não esquecer a memória do fogo para não serem vencidos, não se rebaixar, apesar das agruras de suas existências.
O fogo é a marca principal que os faz agir — é a memória de nossos antepassados diante da aparente surpresa da combustão emanada pelo bater de pedras (“o que tem para lembrar um homem que entregou sua memória ao fogo? A memória do fogo. O que o fogo deixou de si nos buracos da memória que ele mesmo roeu”, pág. 15). Eles passam essa força (que nunca seca), a fim de enfrentar os medos primitivos da morte, do frio, da fome e da solidão que acompanham o homem: “Não, eu não vou morrer!”. É o que parecem nos dizer seus personagens. Eles carregam essa memória de luta, refletindo a condição humana de pobres seres desamparados e fadados à destruição.
No lamento do aspirante a caboclo de lança (“Queria ser caboco de lança e o feitiço da cachaça e da mulher não deixou. Queria amar uma mulher e seu Zé não deixou. Agora estou aqui, debaixo desse sol, cercado por essas canas, indo não sei pra onde, com um camarada que sabe quem eu sou, mas não me diz”, pág. 44), culpado e só, não há derrota, mas constatação — é preciso fazer algo urgentemente; é preciso lutar para não se apagar. Assim também é o lamento da protagonista de Darque: “Só me caso quando puder ter um fogão a gás” (pág. 96). Tudo conflui para esta memória de dor, de exploração, de tristezas e misérias abismais, mas ainda assim não irreversíveis.
Romance quase todo composto por imagens, o elo maior que une os fios e teias dessa gente sofrida, para além da memória, é esta lembrança do fogo, lembrança que não se apaga, não se esquece, esta memória do fogo, mesmo que no fim (vale destacar que não há começo nem fim nessa(s) história(s) de Ronaldo Monte) restem apenas o pó, as brasas, ou melhor, as Cinzas, como nos lembra o autor em seu último texto.