Além de ser um dos ficcionistas mais celebrados, hoje, nos Estados Unidos, Michael Cunningham também é, de certa forma, um dos mais pretensiosos. O que não é necessariamente ruim: seus romances tendem a contar histórias que se desenrolam em longos períodos de tempo, compondo um painel de transformações culturais e sociais na sociedade norte-americana. Em Laços de sangue (1995), por exemplo, narra a história de uma família em um intervalo de 100 anos, entre 1935 e o início do século 21. E mesmo em seu romance de estréia, Uma casa no fim do mundo (1990), a história de um triângulo amoroso bissexual e seu projeto de família alternativa tem como pano de fundo um período de 30 anos, dos anos 60 aos 80, período de profundas transformações de comportamento.
O mesmo acontece em As horas (1998), seu livro de maior sucesso (em parte devido ao sucesso da adaptação cinematográfica). Aqui, são contadas as histórias de três mulheres: uma bem-sucedida agente literária na Nova York de hoje, uma dona de casa de subúrbio no fim dos anos 40, e a escritora Virginia Woolf, às voltas com a redação de Mrs. Dalloway.
Em seu último romance, Dias exemplares, Michael Cunningham copia a estrutura de As horas e mantém sua vocação para o painel. São três novelas, passadas, respectivamente, no século 19, nos dias de hoje e em um futuro pós-catástrofe ambiental. Desta vez, é Walt Whitman o personagem literário cuja presença perpassa todas as histórias, e que funciona como ponto de ligação entre elas, conferindo unidade ao livro (o nome de um livro de ensaios de Whitman é precisamente Specimen days, título original de Dias exemplares). Além disso, o trio principal de personagens se repete, com alterações, nas três novelas. Vamos a elas.
A primeira história, Na máquina, conta como um pré-adolescente, Lucas, assume o emprego de seu irmão mais velho, Simon, após este ter morrido em um acidente de trabalho, na linha de produção de uma grande fábrica. Simon fora triturado pela máquina que operava diariamente, a mesma que Lucas passa a operar. Com os pais física e emocionalmente incapazes de proverem o sustento da família, cabe ao menino a responsabilidade de cuidar de todos. E como se já não bastasse tamanha miséria, Lucas sofre de uma deformação física, pouco detalhada pelo narrador, mas que é visível aos olhos de todos, e que reforça sua fragilidade e sua inadequação frente à esmagadora rotina de trabalho duro e alienante.
Tal enredo está a um passo do melodrama, mas Cunningham consegue evitá-lo quando dirige a atenção do leitor à onipresença da máquina na vida das personagens. E é verdade que não há nenhuma novidade no tema, o que não invalida a força de certas analogias, como o operário com “cabeça de ferro” ou a sala de máquinas que parecia um estábulo, “repleta de vida sólida, animal”. As máquinas são seres vivos, e os homens são reduzidos a autômatos, alimento para a engrenagem industrial.
Lucas observou os dentes morderem o ferro. Simon teria sido puxado para baixo da roda, primeiro seu braço e em seguida o resto. A máquina o teria triturado em seus dentes com a mesma serenidade com que mordia o ferro. Ela teria acreditado — se é que as máquinas podiam acreditar — que tinha simplesmente produzido outra chapa de ferro. Depois de ter esmagado Simon ela teria esperado pacientemente a chapa seguinte.
A reificação do trabalhador é o contraponto direto da animalização da máquina. Mas Lucas ainda possui pontos de resistência à alienação total: sua amizade com Catherine, ex-noiva do irmão, e a poesia de Walt Whitman, lida religiosamente todas as noites, e à qual recorre sempre que lhe fogem as palavras.
Mas a melhor novela do livro é a segunda, A cruzada das crianças. Cat é uma psicóloga da polícia responsável por dialogar, ao telefone, com pessoas transtornadas e terroristas em potencial. Ela possui um namorado, Simon, a típica representação do jovem empresário nova-iorquino bem-sucedido, que negocia “futuros”, e que possui uma visão absolutamente prática da vida. Para ele, o estereótipo exótico de Cat (psicóloga, negra e policial) é como uma pequena válvula de escape para a rotina de trabalho, um flerte calculado com a aventura.
Cat, por sua vez, pertence a uma outra esfera, o mundo dos desajustados, das ocorrências policiais, e da real e invisível ameaça terrorista. É um mundo em que os eventos fogem à lógica comum, e a relação entre causa e efeito, sempre “reconfortante”, nos escapa. Na Nova York pós-11 de setembro, o esgotamento emocional de Cat (que também possui seu drama pessoal) é também o esgotamento da cidade. É como se os atentados ao World Trade Center, em suas dimensões insólitas, tivessem conferido verossimilhança às histórias da grande massa de lunáticos com quem ela lida, diariamente: possíveis homens-bomba, conspiradores, fanáticos religiosos, criadores de crocodilos em pequenos apartamentos. O terror legitima a loucura. E às vezes, diz ela, os lunáticos têm razão.
Andróides e naves espaciais
Já a terceira novela, Como a beleza, é bastante inferior às outras. Talvez porque seja difícil criar uma história futurista séria, que não pareça uma sátira involuntária de nossa época. E depois dos temas densos das histórias anteriores, andróides, extraterrestres e naves espaciais de fato parecem uma paródia kitsch do que já foi dito. O enredo, desta vez, é protagonizado por Simon, um andróide com crise de identidade que parte em busca de seu criador. Se na primeira história do livro os homens se comportavam como robôs, aqui o autômato investiga os laivos de humanidade dispersos em sua programação. A estranheza da busca de Simon se reflete no aspecto bizarro de suas companhias: uma extraterrestre (Catareen) com aspecto de lagarto, e uma criança deformada (Lucas) que lidera uma quase seita de fanáticos religiosos.
A grande dificuldade que Michael Cunningham tem em mãos é manter a unidade entre três novelas de gêneros diferentes. O autor consegue, em parte, com a repetição do mesmo trio de personagens principais, o que sugere o retorno de conflitos semelhantes em situações diversas. Mas há, principalmente, a onipresença de Walt Whitman, que chega a aparecer como personagem na primeira história.
Mas por que Whitman? Celebrado como o poeta que melhor representou a formação da América, o livro mais importante de Walt Whitman é Folhas de relva, cuja primeira edição é de 1855, época em que a literatura norte-americana está ainda se formando. Para se consolidar, a nova tradição americana precisava encontrar seu lugar próprio, no sentido de assimilar a cultura européia sem se submeter às sombras dos grandes nomes da literatura, principalmente os ingleses (uma questão de identidade que, de resto, é também bastante familiar à literatura brasileira). Whitman, neste sentido, é mesmo um revolucionário. Sua forma livre era um novo e grande passo em direção à liberdade da linguagem, assim como seus temas, considerados “baixos” para a literatura: o homo-erotismo, a classe trabalhadora, a linguagem das ruas, o cotidiano das metrópoles, a vegetação rasteira. Trata-se de uma poesia que quer abarcar o verdadeiro mundo americano e conferir-lhe unidade, em todas suas contradições.
O tradutor Rodrigo Garcia Lopes, em um detalhado estudo que acompanha sua recente edição de Folhas de relva (Iluminuras, 2006), explica a respeito do livro que seu “otimismo democrático e libertário almejava fazer da poesia o grande instrumento unificador de sua nação, além do link ‘kósmico’ entre as pessoas consigo mesmas e o Universo”. Não é à toa, portanto, que Michael Cunningham já tenha declarado sua devoção a Walt Whitman. Sua vocação para o romance de costumes, para o painel social que abarca um longo período histórico, de certa forma respeita uma premissa totalizadora semelhante à do “poeta do kosmos”.
Mas a unidade do livro talvez não esteja na contínua afirmação de certos valores poéticos, e sim na demonstração de que a poesia é tratada de modo diferente em cada história. Na primeira, Lucas, menino do século 19, lê Whitman apaixonadamente, a ponto de recorrer continuamente a trechos de Folhas de relva. É como se o poema o ajudasse a organizar seu mundo, e seu encontro com o poeta em pessoa cumpre exatamente a função de orientá-lo, para o bem ou para o mal. A poesia, aqui, confere sentido à experiência tumultuada do pequeno Lucas.
Na segunda história, a poesia de Whitman é declamada com menos consciência pelos membros de uma pequena célula terrorista. Os versos são como um mantra macabro, no qual o termo “família” é realçado de modo bastante deturpado. Os versos que antes eram, de certo modo, confortadores, agora são, paradoxalmente, ameaçadores, e justificam o terror. Terror que torna possíveis expressões paradoxais como esta: “a criança continuou sorrindo seu sorriso homicida”, nas palavras do narrador. A poesia, aqui, é a expressão deste paradoxo, e se esvazia de seu sentido original.
Na última novela, é Simon, o andróide, que declama inconscientemente versos de Folhas de relva, e considera tal fenômeno uma chave para o segredo de sua “humanidade”. Aqui, a relação entre mundo e poesia é muito mais frágil, quase inexistente, e os versos não fazem sentido sequer para quem os recita, reduzidos que foram a “acessos involuntários”.
Uma leitura possível do romance (se podemos chamá-lo assim) é que suas três histórias assinalam momentos “exemplares” de como a arte ou mesmo a própria linguagem estariam caminhando para um total esvaziamento de sentido. Talvez como última etapa da alienação iniciada ainda no século 19, e testemunhada por Walt Whitman. Uma ótima premissa, infelizmente levada a cabo de maneira um tanto irregular.