Homens enigmáticos e em crise. Mulheres misteriosas. Questões do presente e do passado em aberto. Realidades paralelas — muitas vezes uma espécie de saudosismo desenfreado. Jazz. Baseball. E literatura norte-americana. Haruki Murakami, assim como Woody Allen, Philip Roth, Pedro Almodóvar ou mesmo Morrissey, criou em torno de sua obra um itinerário bastante específico: são elementos comuns, que formam a identidade de seus personagens, o tom de suas narrativas e a construção do espaço ficcional singular. Acrescente também porções surrealistas e uma prosódia muito semelhante a uma conversa informal.
Sul da fronteira, oeste do sol — publicado no Japão em 1992 e que só agora chega ao Brasil — reúne todos os elementos clássicos de um livro de Murakami, sobretudo dos anos iniciais. O escritor japonês divide opiniões, principalmente no seu país. Enquanto a crítica o condena por ser ocidental demais, os leitores veem em seus livros ecos de suas próprias vidas. Esse jogo de cena, de ame-o ou deixe-o, vem à tona a cada lançamento ou a cada vez que o autor de Kafka à beira-mar é cotado para o Nobel — o que acontece todos os anos.
Em Sul da fronteira…, Murakami conta a história de Hajime, dono de um bar de jazz em Tóquio cuja vida pacata e bem-comportada é transformada pelo reencontro com Shimamoto, amiga de infância e primeira paixão do narrador. Hajime é um homem fragilizado, nulo, salvo de uma vida medíocre pelo sogro, mas afundado em um cotidiano que julga muito maior do que verdadeiramente merecia.
Tendo como pano de fundo o Japão sob os traumas silenciados do pós-guerra, Murakami personifica em seu protagonista a culpa e as obsessões que alimentaram a sociedade nipônica naquele período. Shimamoto representa a fuga desse labirinto de solidão. Como em Um corpo de que cai, de Hitchcock, ou Trágica obsessão, de Brian De Palma, ao sair da inércia Hajime mergulha de cabeça em uma espiral de estranheza e segredos.
Bonita, mas coxa
Hajime lembra da amiga como uma menina inteligente e sensível, com quem compartilha seu gosto por literatura e música. Os dois passavam as tardes escutando a coleção de discos do pai de Shimamoto, mas o que ainda permanece como mais forte traço da garota é a perna que arrasta. O andar peculiar de Shimamoto perseguiu Hajime até a meia-idade. As mulheres com condições semelhantes produzem nele um efeito devastador, porém silencioso.
No conto Samsa apaixonado, que integra o volume Homens sem mulheres e retoma o leitmotiv kafkiano, Murakami também explora a ideia de identidade e corpo. Essa fascinação de Hajime pelo detalhe que todos consideravam um defeito — e que colocava Shimamoto à margem na escola — é salvação e perdição, ao mesmo tempo em que coloca o personagem numa perpétua situação de tentativa e erro.
O autor de 1Q84 é habilidoso ao explorar a dualidade entre desejo e memória como cerne do romance. O não dito ganha ainda mais importância do que tudo o que está escrito. O silêncio, uma espécie de chave-mestra para desvendar os mundos de Murakami, é também um fator essencial em Sul da fronteira, oeste do sol. Todas as perguntas de Hajime são respondidas somente quando ele também se cala.
Em um momento, o personagem diz:
Não tenho muito para contar sobre os quatro anos que passei na faculdade.
E afirma:
Encarei longamente meus olhos no espelho, como não fazia há muito. Mas eles não refletiam nada de quem eu era. Apoiei as mãos na pia e respirei fundo.
Esses são dois momentos em que o vazio é mais importante que todo o resto. É na ausência que Murakami ergue sua história e faz seu personagem se confrontar, antes de tudo, consigo mesmo. Mais uma herança muito clara de Franz Kafka.
Homens sem cor
Murakami não é um escritor de frases perfeitas, esculpidas, como Kawabata ou Mishima. Sua literatura é mais bruta, cotidiana. Os tons ocidentais que o afastam da literatura clássica japonesa reverberam em Sul da fronteira, oeste do sol. Seja por sempre escrever fora do Japão ou por não ter um conterrâneo como modelo, como explica em Romancista como vocação, Murakami se transformou em um autor universal. É difícil imaginar que essas mesmas queixas recaiam sobre o também universalizado Kazuo Ishiguro. Murakami, talvez, tenha um caráter popular demais.
Sul da fronteira, oeste do sol se assemelha a O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação — uma das melhores obras de Murakami — ao propor um personagem adulto mitigado pelas feridas da juventude. Tsukuru, como Hajime, é um homem estabelecido, obcecado por trens e metrôs, e por entender o motivo pelo qual seus quatro melhores amigos passaram a ignorá-lo. Para além do passado em suspenso, uma ferida aberta, os dois protagonistas são sujeitos sem cores, perdidos no cinza da cidade. Toru Okada, de Crônica do pássaro de corda, e o protagonista de O assassinato do comendador também.
Se à primeira vista esse parece ser uma narrativa realista como Norwegian wood — obra que colocou o autor no mapa —, a história de Hajime é muito mais noir, psicanalítica e profunda do que parece. Flutuando entre realidade e memória, Hajime está completamente subjugado pela incompreensão e desentendimento humano. Ainda que Murakami rejeite qualquer influência direta dos estudos de Freud, é impossível não enxergar relações mesmo involuntárias. Quando o conflito não se dá na perspectiva do sonho, acontece fora do que podemos entender como real.
Tradição
O que une todas as narrativas ficcionais de Murakami parece ser seu ardor por O apanhador no campo de centeio. O clássico de Salinger ressoa em boa parte da literatura do japonês. Seus anti-heróis são como Holden, mas a rebeldia não costuma se dar no plano visível: está sempre escondida pela tradição e organização do seu país.
Hajime, que não era tão mau aluno quanto Caulfield e nem tão inteligente, guarda para si a insatisfação e a vontade de poder — para usar um termo nietzschiano —, mas engata, igualmente, a literatura de formação. Como dito antes, é no silêncio que as coisas realmente acontecem para Haruki Murakami.
Sul da fronteira, oeste do sol, apesar do lapso de três décadas chega ao país em boa hora, e é uma das obras mais bem acabadas de seu autor, e é também aquela que dosa com exatidão os elementos que integram seu cardápio.