Entre marchas e contramarchas, vivemos numa época onde muitas conquistas feministas — como igualdade de gênero, direito ao prazer que o próprio corpo proporciona, escolha ao tipo de vida ou de família que se deseja, ou mesmo o direito a legislar sobre o próprio corpo, como a escolha pela interrupção da gravidez — são torpedeadas por forças reacionárias, que tentam aniquilar conquistas muito caras, obtidas a ferro e fogo em muitos países depois de luta intensa, que fez várias vítimas, desenvolvida nas últimas décadas do século 20.
O novo livro de Sheyla Smanioto, Meu corpo ainda quente, vem tocar nesta importante questão: o papel da mulher em sociedades como a nossa, sob regimes políticos autoritários, patriarcais, que relutam em permanecer, sobretudo, interferindo no direito de a mulher ter um corpo e de não se sentir culpada por causa dele.
O romance, desde o início, desenvolve a relação conturbada entre mãe e filha, fazendo transparecer o desejo da mãe de legar a esta filha uma herança até certo ponto masculina. O segundo nome da menina, João, é revelador. Em alguns momentos, como disfarce ela é chamada de Jô. Num diálogo, a mãe chega mesmo a chamar a filha de João: “Esse é o seu pai, João”.
A narrativa tem lugar num lugarejo chamado Vermelha, onde as mulheres precisam esconder-se, ocultar os desejos ou tentar metamorfoseá-los em algum animal que, como metáfora, existiria fora delas: “Você fica por aí como se esse bicho fosse seu, depois não vem com choro pro meu lado”. E logo adiante, “Esse Corpo não é meu?”, pergunta a menina.
Não se trata de um livro para principiantes. Com muitas frases entrecortadas, ou mesmo interrompidas, como a vida da mulher frequentemente ceifada por mãos masculinas, a história avança a duras penas, proporcionando ao leitor a visão de que a literatura, caso queira revoltar-se formal e em conteúdo, torna-se difícil de ser digerida, chegando muitas vezes a ser desagradável.
Smanioto abusa no uso de imagens onde predomina a cor vermelha, refletindo notadamente o sangue das mulheres, muitas cobertas por um rio onde muita gente está morta, provocando na narradora a necessidade de lidar com tantos assassinatos e sobreviver em meio à catástrofe.
Como ter um corpo dado ao prazer e não carregar nenhuma culpa, como libertar-se do destino de ser mulher num lugar onde são os homens que ditam as regras e mantêm o poder, inclusive de espancá-las? Ao mesmo tempo, o livro trava outro embate: ser mulher não é uma sina, mas algo maior, onde é possível mudar o destino e escrever uma nova história.
Observemos esta passagem: “Mãe, mulher quando morre de vez vai pra onde? Eu pergunto por que na noite anterior o Pai me disse o que acontece com um Corpo de mulher sem dono e eu descobri que eu não presto, Mãe, que eu nunca prestei”. A narradora trava uma batalha conta si mesma, a ponto de se achar que não presta para, logo a seguir, glorificar o próprio corpo: “Alguém sabe como desovar o próprio corpo?”. Pode-se compreender este desovar como uma ressurreição, um renascimento, já que o vocábulo desovar tem como raiz o motivo ovo, origem da própria vida.
A narradora acaba por fugir, deixar sua cidade, um modo não de esquecer o passado ou de escapar do pai, mas de procurar um lugar onde possa resolver a questão, encontrar terra mais leve para enterrar a mãe, ou mesmo para conseguir tirar o peso desta de seu próprio corpo de mulher. A operação, no entanto, não é fácil, a cidade parece acompanhá-la, Vermelha está por toda a parte. E a solução que Jô encontra está nas cartas de amor herdadas da mãe.
Há escritoras que discutem a questão feminina fazendo um tipo de dialética negativa. Não se aborda diretamente o que está pulsando, mostrando sua face ensanguentada; disfarça-se dando a outra face, ou privilegiando o mundo masculino, com todas as suas contradições e fraquezas, para, com isso, chegar ao efeito contrário. Provoca-se o flanco menor para atingir o maior. Nota-se tal investida em Virginia Woolf, Clarice Lispector e ainda em Alice Munro. Tal empreitada pode-se dar também através de escritores do universo masculino, mas, com intenção de evitar polêmicas, deixo aqui como exemplo apenas as escritoras.
Pura poesia
A poesia é outro tópico presente no romance de Smanioto. Há várias passagens onde o texto é arrumado (ou desarrumado!) na forma de um poema:
Eu estava aos pedaços, embaixo do dobro da Mãe, eu nem lembro direito o que aconteceu,
Só lembro do peso e de ter encontrado
A gaveta aberta, as cartas rasteiras, primeiro
A alegria de ter suas Palavras
Nas minhas mãos (…)
Sabemos que não é a forma que vai definir se um texto é poético ou não, mas a originalidade, a exploração da musicalidade da língua utilizada, a criação de imagens inusitadas, novas e inesperadas questões. A autora tenta dar vida a este tipo de construção, usando e abusando de recursos como interrupções, silêncios, marcados, sobretudo, pela descontinuidade proposital do texto.
Para completar a questão, o livro foi elaborado com a tinta vermelha, como o nome da cidade. Todos os meios de páginas são atravessados como por um rio de sangue, trazendo para a literatura recurso das artes plásticas e gráficas. Vermelha é a cidade, vermelho é o sangue das mulheres mortas, vermelho é o sangue das regras, o sinal fechado, a interdição, a impossibilidade.
Meu corpo ainda quente apresenta a vida que pulsa, ato corroborado pela literatura, onde a narradora luta para transformar o peso do seu corpo (aqui no sentido de corpo interditado ao prazer), o peso do corpo da mãe e, enfim, o peso do corpo de todas as mulheres. É como se dissesse: as mulheres devem entender que a liberdade não pesa, mas para alcançar esta leveza é preciso vencer uma guerra.
É importante reafirmar, Sheyla Smanioto não escreve um livro de leitura fluida ou fácil. Não é um livro para se ler de uma vez. Mas para ser apreciado pouco a pouco. O bom livro é aquele que, com o passar do tempo, nos faz nele pensar mais intensamente, impondo-nos mais dúvidas ou outras questões. Como em Desesterro, primeiro livro da mesma autora, o problema do sofrimento imposto às mulheres retorna e é levado às ultimas consequências. O resultado já é sabido, basta lermos as páginas dos jornais diários ou assistir aos noticiários de TV. Quantas mulheres são assassinadas durante um dia, no Brasil? Fato que envergonha não apenas a quem tem a incumbência de pensar política, cultura e sociedade, mas a toda uma sociedade paralisada pela inação. Apesar disto, o livro não é um panfleto, mas pura poesia.