Pela janela do ônibus que passa por uma realidade distante e diversa, na lava de leite fervente incontida na solidão da cozinha, pelas retinas da filha a observar a mãe, ou da sobrinha a extrair das retinas da tia lições do tempo, “das coisas e das causas”. No cuidado místico tradutor do conceito de “conforto e afago”, no amor lento e ensolarado da ausência, no lugar sacralizado e compartilhado onde “a palavra cria coragem para ser” e cruza o silencioso portal do hábito. Onde é desnecessário o dizer do desamparo, e o acolhimento repentino rompe a represa da emoção, no movimento sem qualquer pretensão de rompimento. Na descoberta de que “o tempo ainda não está no ponto”, à espera de ajustes para que haja permanências. Mas o que fica numa personagem em ruínas, ou de modo inverso, naquelas em que o tempo se demora enquanto o que está em volta vira trapos? Então a greve das grávidas, a decisão de solitária partida para uma ilha, o encontro entre a distância e o limite, o voo coletivo de crianças numa manhã comum, a jornada sem fim da mãe insone. A repetição do meio-dia, o vento familiar na varanda, um nome sem sobrenome indagando aos mortos que horas são.
O ser-mulher de múltiplas personagens condensa experiências singulares e o vislumbre da universalidade, confrontando a pressão da existência sob as vestes da cultura opressora, no perfil poético-filosófico traçado com minúcias por Priscila Pasko em Como se mata uma ilha. O peso do cotidiano para “criaturas que já chegam com cicatrizes”, no entanto, desdobra-se em porções leves, reunidas em contos breves, pincelados de lirismo. A emoção desponta intacta e intensa no texto burilado sem exageros, atravessado pela reflexão que a arte literária pode proporcionar. Nos lampejos de razão que provoca sem abdicar da abordagem sensível, os contos de Priscila Pasko assumem posição de defesa do papel da literatura como fonte de esclarecimento, ao modo da tradição iluminista.
E é revigorante ouvir o eco inspirador da prosa poética. “Lemos, mesmo se ler não é indispensável para viver, porque a vida é mais cômoda, mais clara, mais ampla para aqueles que leem que para aqueles que não leem”, anotou Antoine Compagnon em Literatura para quê?. Para Compagnon, a tradição sinaliza que o poder moral da literatura corresponde à capacidade das obras literárias de “instruir deleitando”. O tipo de instrução que abre o apetite do conhecimento sobre o que é diverso, estranho, distante, permitindo ampliação de horizontes e interesses da vida. E o tipo de deleite que não se esgota no prazer imediatizado que busca ansiosamente a repetição — porque perdura a sensação de conquista, na compreensão adquirida que se atrela a uma perspectiva criada ou restaurada pela arte da palavra.
A obra literária seduz o intelecto, sem aprisioná-lo. “A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes”, afirma Compagnon. Em seu primeiro livro de contos, a gaúcha Priscila Pasko monta e interliga enredos detalhistas, na tessitura de paisagens externas e íntimas. “Estes contos são um antídoto contra a imparidade das nossas estranhezas, aquelas que achamos que os outros ‘normais’ não têm”, define a psicanalista e escritora Diana Corso no prefácio de Como se mata uma ilha.
A leitura simultânea de si e do mundo é geradora de impactos que atiram o leitor para dentro e para fora das fronteiras do indivíduo. A estranheza dá lugar ao reconhecimento tanto quanto o pensamento rotineiro pode abrir passagem para novas sinapses, que levam a outras identificações, outros reconhecimentos. Todo livro é um espelho de reflexos cambiantes. Um conjunto de contos, nesta moldura, é capaz de conceder imagens complementares que conferem à leitura coesão, sem significar apenas a representação do mesmo reflexo.
Contos e minicontos podem parecer talhados para uma época de veloz consumo existencial, em que nem o sufocante ar de uma pandemia impede a voracidade consumista. Se as mudanças tecnológicas trazem consequências culturais quase instantâneas, é legítimo supor que a troca incessante de mensagens curtas no dia a dia estimule tanto a produção criativa quanto a curiosidade dos leitores de obras literárias embaladas pela brevidade. O que não retira o mérito dessas obras, pelo contrário, faz buscar o que mais agrade no meio da profusão da oferta.
Na imagem da poesia em prosa de Priscila Pasko, “uma ilha nada mais é do que um mistério do oceano”. Cada conto emerge no mar literário como a revelação de um segredo — ou uma ilha que estava submersa e vem à tona. O leitor sente o gosto da confidência, do desabafo das palavras que saem do papel como se guardadas há séculos nas profundezas. Cercadas por memórias por todos os lados, as ilhas do Arquipélago Pasko compõem um tributo ao que é narrado, ao mesmo tempo em que combatem a realidade por detrás da narrativa. É o paradoxo do registro literário: deixar marcado aquilo que, muitas vezes, seria preferível esquecer. Mas quando o esquecimento não é opção, sua elaboração poética “desinsula” a memória, tornando-a parte da história coletiva.
Ler o outro
No “mosaico de lembranças sobre estacas” da memória coletiva feminina, cada mulher é uma ilha com enredos semelhantes para contar. “A marca maior do livro reside mesmo no tom francamente intimista e feminino que perpassa cada página”, atesta Constância Lima Duarte, professora da UFMG, que assina a orelha de Como se mata uma ilha. Antes de publicar seus contos, Priscila Pasko manteve o blog Veredas, de divulgação e discussão da literatura produzida por mulheres. Espaço de encontro para experiências e testemunhos que podem ter fortalecido a ligação da escritora e pesquisadora com a busca expressa em seu livro.
A jornada intimista da leitura não restringe o alcance da obra, mesmo que ler seja uma das melhores formas de se enxergar na imagem delineada pela escrita do outro. A potência criativa transforma a ilha que se descobre em continente conhecido, repleto de cenas, situações e dramas que povoam o hábito. E ganham novo sentido na floração literária — para usar a expressão de Rachel de Queiroz, para quem a literatura é algo que “rebenta espontaneamente”. A primeira mulher na Academia Brasileira de Letras (ABL) também afirmou que “um romance é como gravidez, aquilo fica dentro de você, crescendo, incomodando, até sair”. Podemos extrapolar a definição para os contos que também perturbam o autor até chegarem ao papel. Daí para frente, os leitores cuidam do rebento. A literatura é parteira de filhos necessários que são entregues, desde o nascimento, ao mundo. Livros são necessidades íntimas, antes de extrapolarem seu significado individual, através da leitura da identificação que gera sentido para além de uma época.
“Procuram o começo de tudo, o início da Terra, o canto do galo numa caverna. O que precede o leite, o sangue, os fetos que carregam no ventre, o que veio antes delas”, Pasko escreve no conto Nem que caia o céu, manifesto de um destronamento tão impossível quanto indispensável. Assim também é a sina dos leitores que se lançam no naufrágio literário, ilha por ilha, revirando o passado próximo e distante, perscrutando o horizonte discernível e além. A curiosidade acerca da origem paralela à do mistério do fim.
“A mulher do futuro teve tanta pressa de outro tempo que deixou para minha mãe a tarefa de me parir”, é uma frase da passagem que abre o livro de Priscila Pasko. A escritora traz na bagagem criativa gerações de silêncios, anseios e dores, gritos, libertações e alegrias. E faz dessa herança um jeito de contar próprio, feito olhar transversal parido para ser lido na hora certa.