O perfume das rosas de Deus

Nada mais sério, para um agnóstico, do que admitir a presença de Deus em alguma coisa
01/04/2000

Nada mais sério, para um agnóstico, do que admitir a presença de Deus em alguma coisa. Pois é exatamente isso que eu — pagão juramentado, materialista convicto — venho, contrito, fazer agora. É duro, mas há que se tirar o chapéu para o escritor persa Farid Ud-Din Abu Hamad Mohâmmad, mais conhecido como Farid Ud-Din Attar (“Farid, o mercador de essência de rosas”), mestre sufi da cidade de Nischappur que, no século XII, desenhou A Linguagem dos Pássaros (Mantic Uttair), uma história de fundo místico que se utiliza da procura de um grupo de pássaros por seu rei — o Simorg — para indicar um caminho a Deus.

Em persa, o termo “sufi” significa algo como “louco de Deus” ou “louco por amor a Deus” (1) e serve como palavra-chave para designar um dos mais espantosos segmentos do islamismo (2). Ao mesmo tempo em que, pela veracidade de seus sentimentos, os dervixes (dariux, “pobres”) eram considerados santos, desafiavam cânones políticos e religiosos, criando uma “revolução permanente” de enorme impacto sobre a massa dos crentes.

(uma dentre as muitas historietas que seguem em paralelo à trama principal do Uttair é um belo exemplo disso: certa manhã, os habitantes de uma vila encontram um homem santo na rua, com um cachorro comido por chagas deitado placidamente sobre seu peito nu. Horrorizados, chamam a autoridade local, que pergunta ao dervixe como ele, um santo conhecido por sua sabedoria, poderia agir assim. Abrindo os olhos, mas sem atrapalhar o animal, o outro responde: “Você, infeliz, só tem olhos para o cão deitado sobre o meu peito; e sobre o outro, que come meu peito por dentro, o que dizer?”)

Attar, um verdadeiro sábio, chegou ao ponto almejado por muitos catequizadores: fazer da descrição de seus sentimentos em relação ao divino um convite à experiência mística sem se tornar um cacete afugentador. De que forma? Descrevendo com intensidade incomum seu amor a Deus e admitindo como dádiva o aniquilamento frente a alguma coisa que está muito além da compreensão. Em suma, revelando uma verdade que só é encontrada quando o indivíduo transforma o diálogo com Deus em monólogo.

Mas, chega de elucubrações — afinal, a diferença entre sufismo e sofisma está em duas vogais — e vamos ao texto (selecionei um trecho que, na minha opinião, resume o pensamento de Attar; sua obra, evidentemente, é muito maior — há quem lhe atribua 2 mil versos, além de tratados astronômicos, musicais e outras perquirições artísticas e científico-filosóficas):

“Ó tu que estás no interior e no exterior da alma! Tu não és e és tudo o que digo. Em teu reino a razão tem vertigens, perde o fio que deve dirigi-la em tua via. Vejo claramente todo o universo em Ti e, no entanto, não Te percebo em absoluto no mundo. Todos os seres estão marcados com Teu selo, porém visivelmente não há selo Teu. Reservaste a Ti o segredo da Tua existência. Por mais olhos que tivesse, o firmamento não poderia perceber nem um átomo da poeira da trilha que conduz a Ti. Ainda que, de dor, a Terra tenha coberto a cabeça de poeira, tampouco ela viu essa poeira. O sol perdeu a razão por Ti, e a cada noite esfrega a cabeça na terra. Por sua vez, a lua se funde; a cada mês (lua), ela se desvanece de admiração. (…)

Para cada átomo há uma porta diferente, e de cada átomo abre-se um caminho diferente que conduz ao Ser misterioso de que falo. Que sabes, para ir por tal via e para chegar a esta porta por um tal caminho? Quando queres ver manifestamente este ser, Ele está escondido; quando O desejas escondido, Ele está manifesto. Enfim, se queres encontrar, visível ou invisível, este ser sem par, sabe que Ele não é nem um nem outro. Se não podes fazer nada, não busques, pois, nada; tudo o que dizes não faz falta; não digas, pois, nada. O que dizes e o que sabes, eis o que és. Conhecer a si mesmo é existir cem vezes. Porém, deves conhecer Deus por Ele mesmo e não por ti.”(3)

Notas:

(1) – a etimologia da palavra não é pacífica: “sufis” eram, também, os “habitantes da varanda”, crentes que, no tempo de Maomé, abandonavam tudo para morar nos jardins e sob as marquises próximas à casa do profeta.

(2) – outra polêmica: orientalistas como Idries Shah defendem que o Islã funciona apenas como uma “casca” ao sufismo, tendo abrigado uma tradição muito mais antiga e de alcance muito maior, abrangendo, por exemplo, taoístas e cristãos primitivos.

(3) – “A Linguagem dos Pássaros”, Farid Ud-Din Attar, versão integral, tradução do persa para o francês por Garcin de Tassy (1863), tradução para o português por Álvaro de Souza Machado e Sérgio Rizek; Editora Attar, 1991, coleção “Clássicos do Sufismo”.

Rodrigo Wolff Apolloni
Rascunho