O peregrino do absoluto

Obra de Lúcio Cardoso provoca juízos e sentimentos os mais radicais, nunca deixando indiferentes seus leitores
Lúcio Cardoso por Fabio Abreu
01/03/2024

Quem já frequentou a obra do mineiro Lúcio Cardoso dificilmente escolherá, para dizer do peso dessa leitura, um qualificativo que seja sem paixão. Como alguém já disse uma vez: “ou somos a favor ou contra”. Pois aí está um autor capaz de provocar juízos e sentimentos os mais radicais, nunca provocando indiferença, de maneira que retorna, como o que não se digere em análises, e seu impacto de escândalo e controvérsia reincide em novos leitores. Isso parece constatável, prospectivamente, pelos anos que se seguiram à sua morte, em 1968: em mais de cinco décadas, poucos anos houve que não surgissem notícias de Lúcio Cardoso, em livros póstumos, reedições, filmes baseados em sua vida e obra, estudos acadêmicos, biografias, homenagens. Se o tenebroso de sua ficção, sua poesia e seus diários, continua a causar mal-estar em muita gente, também continua a vigorar aí a ambição maior do próprio autor, que de fato desejava, com seus livros, “violentar até a saturação” e “destruir o equilíbrio” dos seus leitores.

Novíssimas edições dos diários (em Todos os diários) vêm atualizar a violência de suas páginas sob o primoroso trabalho de mais de uma década de organização de Ésio Macedo Ribeiro (também organizador da edição crítica da poesia completa de Lúcio, de 2011, e das edições anteriores dos Diários, de 2012 e 2013) a partir de todo o espólio do autor. Numa das partes do primeiro e segundo volumes, estão reunidos os escritos de algum modo já conhecidos do público, de 1949 a 1962, publicados pela José Olympio nos idos de 1970. A esse material, então cuidadosamente ampliado, corrigido e revisado, acrescentam-se diários inéditos, de 1942 a 1947, outros textos inéditos em livro, também dispersos já publicados pelo autor, como o célebre Lúcio Cardoso (patético): Ergo meu livro como um punhal contra Minas, e textos publicados postumamente, como o Diário do terror. Junta-se ainda mais uma parte, no segundo volume: Diário não íntimo, a coluna que Lúcio assinou no jornal A Noite, de agosto de 1956 a fevereiro de 1957.

Da leitura desse raro conjunto de textos, que somam vinte anos de reflexões literárias e existenciais, memórias de infância e juventude, apontamentos de viagem, passagens poéticas, outras aforísticas, lutas profundas do espírito, metamorfoses no bojo de contradições, assoma-nos a imagem de um homem constantemente perturbado, de “coração transido”, entenebrecido, obcecado pela realidade do bem e do mal, interessado em tudo o que é matéria de salvação e danação, esperança e desespero (e “desesperada esperança”), destino e autodestruição (até as reticências da tentação do suicídio). O escritor ele mesmo desconfiava, e o diz em seus diários, que os outros podiam enxergar em seus olhos sua escuridão interior. Assoma-nos, também, por fome desse coração transido, um homem que lê constantemente, e criticamente, os escritores de sua época, e outros, filósofos e artistas em seus diários; um homem que, a certa altura da vida, se diz “um velho leopardo”, “o peregrino do absoluto”, alimentado por muitos fracassos e nostalgia, marcado pela inevitabilidade da tragédia, mas ferozmente lúcido, destemido para a controvérsia, em ativa interlocução com vários outros autores, colegas ou amigos próximos, como Clarice Lispector, Augusto Frederico Schmidt, Cornélio Penna, Murilo Mendes, Burle Marx e Octavio de Faria.

Mescla apaixonada
Em todos os diários, inclusive o “não íntimo”, comentários críticos de Lúcio sobre livros lidos (muitos russos e franceses) se intercalam a outros pensamentos, atmosferas de paisagens, imagens para poemas, preces, e essa mescla apaixonada, justamente, denota como a literatura participava de sua vida numa busca maior, nesse “itinerário do espírito” ao longo dos anos, que, propositalmente, pouco se preocupa em registrar fatos, ocupado que está, sobretudo, com as experiências que são “a alma desses fatos”.

O que importa para Lúcio, e ele o repete com frequência, é a sinceridade, ou a “bendita falta de vergonha”, por isso não o constrangem as contradições, nem mesmo a falta de novidade, sendo seu itinerário autêntico e seu gesto (voto) primeiro, ao escrever, o de “apresentar-se nu tal como diante de Deus”. Seu destemor, dentro mesmo do temor religioso, vem dessa nudez de amotinado contra a hipocrisia, o conformismo, a inércia do hábito e um “Cristo limpo”. Um destino humano que ele admira sem restrições é o de Rimbaud. E as polêmicas que provavelmente continuarão a despertar o paroxismo da violência das suas visões e a sua consciência impiedosa da miséria humana, é de se imaginar que hoje tampouco preocupariam Lúcio (ao contrário, ele até ansiava por isso, dizendo-se “um terreno cheio de dinamite”), se afinal, ele sabia, todo artista é levado numa carroça até o patíbulo (ou ainda: “não há perdão para os poetas”). Se uns “vão até o fim, enganados”, se “outros, mais espertos, saltam antes do fim”, “alguns, muito raros, vão conscientes até o fim”. É entre esses raros que Lúcio se coloca, no caminho para o patíbulo, “cantando e pisando em brasas, que este é o preço do que não tem preço”.

Nos textos de 1942 a 1947, que permaneciam inéditos até então, e que o organizador nomeou de Diário 0, é interessante notar sua diferença em relação aos outros diários a partir de 1949: não somente ali prepondera um olhar analítico para as leituras mais do que para experiências de vida, sendo as leituras críticas, a maior parte delas, exegeses bíblicas, também ocorre, nesse período, que Lúcio pretende filosofar, “estudar o homem”, e mais do que isso: acredita que “é preciso abandonar a tragédia”. Mas, ainda no ano de 1943 (lembrando que esse é o ano da publicação de sua extraordinária tradução do Livro de Jó), regado a muitas leituras da Bíblia, e de Nietzsche, Pascal e Léon Bloy, o escritor não consegue mais recusar o incontornável do drama e da tragédia, o que o leva mais a fundo e adentro no caminho de um cristianismo que é o contrário da ordem e da paz.

Também em 1943 se dá o encontro entre Lúcio e o escritor francês que ele tanto lia e admirava: Georges Bernanos, que nessa época morava na cidade mineira de Barbacena. Outras lembranças com Bernanos aparecem, nos diários que se seguem e na coluna de Lúcio no jornal A noite. Quando tem por encerrado seu “processo filosófico”, dando-se conta de que “a filosofia não desnuda o homem”, Lúcio se volta para a vida, “foge para o sentimento”, e brinca de inaugurar (pois também lhe agrada, aqui e ali, a blague) uma antidedicatória para os seus cadernos: “Merda aos intelectuais”.

As questões antes levadas à análise e a interpretações filosóficas agora importam encarnadas em enredo e acontecimento humanos, e as leituras mais comentadas por Lúcio são dos diários de outros escritores e artistas, como André Gide, Julien Green, Kafka, Delacroix. Esse enredo, que a vida em movimento desenvolve, e que ocupa a atenção de Lúcio em seus diários de 1949 a 1962, é também aquele ao qual as personagens de seus romances e de suas novelas têm sua carne e alma amarradas. Lúcio não compreendia o romance como uma pintura, como muitos podem se sentir tentados a fazer, associando o escritor ao pintor que ele também foi no final da vida. O romance, na compreensão de Lúcio, era “um estado de paixão”. Ele abraça a paixão na literatura e na vida, certo de que um livro se escreve não só com o cérebro, mas com o corpo todo, as vísceras, “a alma doente do seu autor” e as mãos sujas de sangue.

Na obra-prima de sua maturidade literária, Crônica da casa assassinada (1959), que também ganhou nova edição em 2021, as cenas e paisagens de sombras, cultivadas até o desabrochar demolidor da tragédia, são construídas de tal forma e com tal manejo de tensões e interdições no baralhar de cartas, diários e confissões de seus personagens, que o leitor não apenas se vê atingido, fascinado ou escandalizado enquanto leitor, mas ali implicado (possivelmente nauseado), de algum modo partícipe de crimes humanos semelhantes. O que brota do drama, num impulso de violência, para Lúcio, leva ao reconhecimento da fé. Décadas depois, vale lembrar, a poeta Hilda Hilst rebateria à repercussão escandalosa causada por sua “trilogia obscena” com uma chave parecida: que, sendo “consideravelmente repugnante”, você provocará no outro “a nostalgia da santidade”.

Jogo de fantasmagorias
Uma arquitetura de sombras se erige do portento de angústias e pecados que compõem Crônica da casa assassinada. Não há uma personagem, um jardim, uma flor, uma janela, aberta ou fechada, que não seja peça nesse jogo de fantasmagorias e interditos que vai preparando, sob uma atmosfera de terror, a derrocada de uma casa, uma família, uma era de falsas glórias. O cadáver enrolado em lençol sobre a mesa de jantar, empesteando o ar da casa dos Meneses, serve-se no fim de tudo numa ceia maldita a toda gente ali reunida, flor da tragédia que se abre, indissimulável, como uma verdade.

Pensando no teor e na ambientação densa de trevas desse romance de muitas vozes e sombras da verdade, vale a pena lembrar a noção de sombra que a linguagem incorpora, sobre a qual fala o escritor português Paulo José Miranda em seu livro Um prego no coração (publicado no Brasil pela Moinhos). A noção de sombra em seu triplo sentido: metafísico, moral e artístico. Lúcio prepara sua “blasfêmia” (pois assim vê seu romance: escrito “como quem lança à face dos homens uma blasfêmia”) fazendo excelente uso desse triplo sentido de sombra na arquitetura da destruição de uma já decadente família tradicional mineira. Aqui é marcante a relação (bem conhecida) entre Lúcio e Bernanos: o jogo fatal que suas personagens jogam, o embate entre fé e vazio, o bem e o mal, até um inevitável desfecho de morte. E tal como as personagens femininas de Bernanos, também as mulheres de Crônica da casa assassinada têm “influência corruptora”, operam sortilégios, mentem, conspiram, pervertem, até o cúmulo da possessão. “Há um diálogo subterrâneo, que se manifesta sem cessar, e que nos transforma neste mundo em tentos de uma partida jogada no invisível”: essa é uma das anotações de Lúcio, em seus diários, de janeiro de 1951. Esses “tentos de uma partida jogada no invisível”, o leitor os encontra nos romances de ambos os autores, e assiste a essa partida, na sombra da mentira, na sombra do mal e na sombra do que não está dito mas encarnado numa atmosfera, numa imagem ou numa troca de olhares entre personagens.

Próximo de Bernanos também em sua ferocidade crítica, e de Jean Genet na natureza de sua revolta, Lúcio, com o seu “punhal erguido”, também investe “contra todos os que nesta época de nivelamento e de ausência de mistério pretendem nos impor um Cristo limpo e distante, um Cristo adomingado e sem abjeção”, aí incluídos a igreja e certos escritores católicos. Seus diários contêm muitas passagens inflamadas em defesa de uma verdade fulminante, e são passagens tão inflamadas que deliram abertamente, por exemplo, ao desejar uma volta à Idade Média com suas fogueiras e seu terror à mostra. “A chacina é uma ânsia de minha alma” é uma das frases antológicas de seus diários. Que venha o caos, ele incita, que venha a catástrofe, haja sangue e violência, para que venha o homem novo, e que não subsista pedra sobre pedra, como diz o Evangelho, ou como se dá com a Chácara dos Meneses: é nessa toada revoltosa que o escritor vai se consumindo, conscientemente, em sua paixão e no itinerário de suas páginas.

Aforismos
Quem entrar nessa edição de Todos os diários em dois volumes, ainda poderá pescar dali uns quantos aforismos que lembram o espírito de O discípulo de Emaús (1945), de Murilo Mendes, como por exemplo: “Não há regra que decida, nem regulamento que regule, nem salvação pela moral”; “De nada vale um silogismo perto de um enredo”; “Só vale a pena perder enredo para se ganhar santidade”; “Tudo se pode corromper por excesso de compreensão e por inação”; “Com pudor não se consegue nada, nem com idolatria”; “Que valor pode ter o dogma diante de uma alma inconformada?”; “Creio em anjos mas não creio em ideias”; “O pensamento não substitui a vida”; “Qualquer estilo de paixão é vida”.

Além disso, o leitor tem as passagens mais poéticas no Livro de Bordo, que Lúcio dedica a seu amigo pintor Rodrigo de Haro. Quatro dos textos dispersos que fazem parte do segundo volume também podem ser encontrados na edição crítica de Crônica da casa assassinada (organizada por Mário Carelli para a Coleção Arquivos da Unesco, em 1991, com segunda edição ampliada de 1996): Lúcio Cardoso (patético): Ergo meu livro como um punhal contra Minas, Diário de terror, Pontuação e prece e Confissões de um homem fora do tempo. Na parte que reúne o Diário não íntimo, não são poucas as curiosidades, histórias envolvendo amigos e conhecidos de Lúcio, lançamentos de livros, filmes, peças de teatro, exposições de arte da época, além de algumas anedotas (e aqui ressurge, mais uma vez, Bernanos, num jantar, falando sobre Joana d’Arc durante horas). Sendo a última seção do segundo volume, essa é também a mais leve e arejada. O leitor fica a saber que Lúcio recebeu um livro de Alphonsus de Guimaraens das mãos do presidente Juscelino Kubitschek, que Jorge de Lima tinha um telescópio em seu consultório, que o livro A maçã no escuro de Clarice Lispector antes se chamava Sangue nas veias, que Burle Marx se queixava de que ninguém mais conhecesse uma rosa-chá, ou ainda, que o mais impressionante para Ernst Jünger, quando esteve no Brasil e visitou o Jardim Botânico, foi ver uma manga. Ficam também, da leitura desses textos de jornal, algumas lembranças afetivas e poéticas de Lúcio, pungentes sendo singelas, como a da primeira vez em que ele viu o mar com sua mãe, ou do velório da tia e das rosas vermelhas que pôs em suas mãos geladas, ou de quando, ainda menino em Minas, fugia da aula para se deitar entre pés de milho.

Depois dessa longa jornada, amiúde angustiosa e grave, pelos diários de um escritor que foi até o fim, “cantando e pisando em brasas”, ou pelas cartas, depoimentos e confissões das personagens de Crônica da casa assassinada, também será difícil um leitor que não saia marcado. Em seu Diário de terror, ele diz:

tudo o que plantei em mim, as sementes do bem e do mal, a terra que revolvi e adubei, que cumpra o seu destino e produza, ainda que a flor azul aos meus olhos não seja aos olhos alheios senão um fungo demente e monstruoso, uma rosa de fel e pestilência.

Essa rosa de fel, quem não a vê? E também a flor azul, que sempre há o poeta em Lúcio, e um “poeta imperdoável”.

Crônica da casa assassinada
Lúcio Cardoso
Companhia das Letras
560 págs.
Todos os diários
Lúcio Cardoso
Org. Ésio Macedo Ribeiro
Volumes 1 e 2
Companhia das Letras
448 págs. e 424 págs.
Lúcio Cardoso
Nasceu em Curvelo (MG), em agosto de 1912. Caçula de cinco irmãos, passou a infância em Belo Horizonte. Em 1929, mudou-se para o Rio de Janeiro e teve suas primeiras experiências no jornalismo e na dramaturgia. Em 1934, publicou o primeiro romance, Maleita, com recepção entusiasmada da crítica. Seguiram-se, em intervalos curtos, diversas publicações, como os romances Salgueiro, A luz no subsolo; Dias perdidos, novelas, poemas e peças teatrais. Em 1947, começou a colaborar como jornalista no periódico A Noite. No final da década de 1950, veio sua obra-prima, Crônica da casa assassinada (1959), que o consagrou definitivamente como ficcionista. Em 1962, teve dois acidentes vasculares cerebrais, e, impossibilitado de escrever, começou a pintar. Realizou quatro exposições individuais, a derradeira em 1968, ano em que faleceu após mais um AVC. Dois anos antes de sua morte, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.
Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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