Há um ditado que diz ser necessário comer pelo menos um quilo de sal com uma pessoa para que se passe a conhecê-la. Isso porque se leva tempo para conhecer de verdade alguém e, em alguns casos, nem uma vida inteira é suficiente. No caso dos pais, é difícil para os filhos saberem exatamente quem eles são. Se por um lado há a idolatria ao pai super-herói e à mãe superprotetora, por outro há uma juventude deles de que não tomamos conhecimento, ou por falta de interesse ou porque eles não querem que a gente a conheça. Eventualmente, só após a morte deles é que saberemos detalhes de fatos importantíssimos, que definiram a sua personalidade, contados por terceiros que agora não precisam mais respeitar o sigilo que lhes foi pedido por nossos pais. E quando isso acontece, as surpresas são grandes e os mitos desmoronam.
Até um certo ponto, a história de um filho que só conhece seu pai após a morte deste é a trama de Os informantes, do colombiano Juan Gabriel Vásquez. Vásquez ambienta seu romance na Colômbia dos anos 30 e 40, época em que o país recebeu milhares de imigrantes alemães e italianos que fugiam do fascismo europeu por serem judeus, e também na Colômbia dos anos 80 e 90, que é de onde parte a história. Há quatro protagonistas principais. Gabriel Santoro, jornalista, acaba de lançar um livro chamado Uma vida no exílio, sobre a vida da imigrante judia alemã Sara Guterman. O outro personagem é Gabriel Santoro, o pai, professor de retórica e personagem de prestígio na sociedade colombiana, que escreve uma crônica devastadora a respeito do livro do filho. O terceiro personagem é Konrad Deresser, amigo do Gabriel pai, que é preso em 1943 por ter sido incluído em uma lista negra do governo colombiano, lista essa que trazia os nomes de todos os que podiam ter negócios com pessoas ligadas aos inimigos dos Estados Unidos. Por fim, a quarta personagem é Sara Guterman, amiga muito próxima do Santoro pai e que faz a ligação entre os três anteriores e, até um certo ponto, é a guardiã dos segredos dos Santoro.
O livro é dividido em quatro partes, uma se sobrepondo à outra para que, a cada volta, novos fatos possam explicar com mais clareza a história do que aconteceu. É como se na primeira parte houvesse uma versão da história, na segunda uma mais completa, mas com significados totalmente diferentes do anterior, e assim por diante, até um ponto em que temos uma quase certeza do que realmente aconteceu com os Santoro, com Deresser e com Sara. Gabriel filho vai recriando a imagem do seu pai a cada fato novo que encontra, à medida que seu pai se recupera de uma cirurgia de emergência no coração. Para o Gabriel pai, ter saído vivo daquela operação de alto risco significou uma segunda vida, a chance de reparar os erros de uma vida anterior. Ainda que o filho não saiba quais foram esses erros, ele tem uma noção do que pode ser importante para seu pai.
Elo de ligação
Sara faz um elo de ligação muito importante, pois ela conhece a história do Gabriel pai por completo. E, mesmo não tendo dito nada a seu respeito quando das entrevistas para o livro Uma vida no exílio, o Gabriel pai acredita que seus segredos foram de certo modo revelados ali. O Gabriel filho não vê os segredos de seu pai ali, ou não os reconhece, e fica tentando reler o próprio trabalho em busca do sorriso do gato de Cheshire, o gato risonho invisível de Alice. Sara não diz tudo o que sabe, e deixa que o filho vá descobrindo por si só o que ela já sabe a respeito de Gabriel.
E por que de tanto segredo? É que Gabriel pai, figura de respeito em toda a Colômbia, homem de reputação ilibada, já foi capaz de trair um grande amigo. Vásquez não vai a fundo no porquê da traição, mas não precisa. Não é necessário descobrir porque se trai, mas que conseqüências essa traição provoca na vida da pessoa. Gabriel pai vive o resto de sua vida com esse peso nas costas e, quando tenta redimir seu erro, não tem essa chance.
A narrativa de Vásquez não é muito fácil; é necessário atenção para não se perder. Isso porque o autor coloca vários personagens para narrar o texto, em longas passagens. Distrair-se pode significar esquecer quem está falando e não entender direito o que o autor quer dizer. Ao mesmo tempo, ao incluir dentro de Os informantes o livro sobre Sara Guterman, temos uma pequena confusão intencional que mistura a história dos dois Gabriéis com a de Sara. O prólogo é para terminar de dar o nó. Lemos ali que foi Gabriel Santoro quem escreveu Os informantes, e não Vásquez. E um ano depois ele faz um prólogo que é publicado n’Os informantes de Vásquez. Parece confuso, mas é uma brincadeira com as palavras e os espaços que só acrescenta ao livro.
Vásquez também é bem hábil para construir os seus personagens. Tanto os quatro principais como alguns coadjuvantes de peso são verdadeiros, têm uma presença que é indispensável na construção de toda a história, e que aparecem bem dosados ao longo do texto. E, como se o que já foi dito não bastasse, há muito significado naquilo que não está escrito. O autor deixa de propósito vários pontos em aberto para que o leitor faça a sua leitura e complete as diferentes histórias com o seu pensamento. Por fim, ao conseguir usar os contextos históricos verdadeiros — a insegurança das listas contra os imigrantes nos anos da guerra e a insegurança da cidade nos anos da guerrilha — para dar um pano de fundo à história sem que esses contextos sejam mais importantes que a história dos personagens, pois é de pessoas que Vásquez quer nos falar, temos uma mistura muito boa, tanto que Os informantes foi eleito pela revista colombiana Semana como um dos romances mais importantes daquele país nos últimos 25 anos. Um belo livro para quem gosta de ler e pensar.