Em seu ensaio A câmara clara, Roland Barthes afirma que “o que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. Em seu novo romance, Piscinas russas, Renata Belmonte parece distender o sentido dessa afirmação de duas formas: a protagonista, a famosa fotógrafa Malena Matrice, busca na fotografia exorcizar o passado, reconstituindo mecanicamente o que assombra seus pensamentos, em especial o suicídio de sua mãe, quando ela ainda era criança; e, paradoxalmente, a autora demonstra que a literatura é o meio não estático em que a experiência do outro é revivida quase em sua plenitude, ao ser recriada mentalmente pelo leitor. Se a fotografia aprisiona e congela (a imagem, o personagem, o instante), a literatura movimenta e expande — e aqui a escritora percorre toda a expansão que o meio proporciona.
Assim como Mundos de uma noite só, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos de 2021, Piscinas russas, o segundo livro de uma trilogia, é um verdadeiro tour de force narrativo, em que múltiplos personagens se cruzam, se repelem, avançam e recuam no tempo, para depois recuarem ainda mais, e de novo avançarem, montando um imenso painel que cobre gerações e em que, de forma instigante, o fictício e o real se misturam. A escritora Renata Belmonte é também personagem do romance, mas não se deve buscar aqui nenhum eco da onda autoficcional; a estratégia possui o mesmo efeito que Milan Kundera alcança ao digressionar em primeira pessoa, como autor, em meio a uma narrativa convencional: em ambos os casos somos lembrados de que a literatura, assim como a fotografia, é um simulacro.
Em Mundos de uma noite só, somos apresentados à poderosa família Grimaldi e a vários personagens que a rodeiam, num período que vai dos anos 1940, numa cidade pequena e indeterminada do Brasil, aos anos 2000, numa metrópole, onde encontramos os herdeiros e vítimas da opressão do patriarca, Luiz Antonio Grimaldi, figura emblemática do nepotismo na política brasileira. Em Piscinas russas, a narrativa se movimenta no tempo e no espaço, e somos apresentados à protagonista vivendo o auge de sua carreira artística na Nova York dos anos 1980, onde convive com celebridades. O que a norte-americana Malena Matrice tem a ver com a família Grimaldi, durante boa parte do romance não sabemos, e esse é um nó que o leitor precisará desfazer com paciência e atenção, para não perder o fio narrativo. Mas tal empreitada é recompensadora: os diversos personagens do romance não são meros acessórios, mas possuem vida própria e têm seu íntimo sondado com profundidade, enquanto se movimentam em contextos históricos bem delineados.
Múltiplo
Dessa forma, Piscinas russas é vários romances em um só, e seus personagens não apenas são apresentados, como ganham voz: depoimentos em primeira pessoa são entremeados à narrativa em terceira, numa imensa tapeçaria que, embora esquemática por vezes, impressiona pela sofisticação. De Malena, passamos a acompanhar a vida de sua mãe, Vivian, uma dona de casa frustrada que acalenta sonhos irrealizáveis, ao lado do marido, o bon-vivant francês Jean Vincent, cuja mãe, a atriz decadente Lourdes Matrice, decidiu ir morar no Mississippi. Acompanhamos também o casamento de Malena com um jovem rico, Thomas Weber, cuja mãe, Aida, é uma mulher amarga e possessiva, que torna a vida da nora um inferno. Ao mesmo tempo em que o livro retrocede décadas, narrando episódios cruciais da história, personagens diversos rondam a fotógrafa a partir dos anos 1990 até os tempos atuais — e é nesse momento que começamos a entender de fato as engrenagens do romance, e os rostos que nele habitam começam a surgir aos poucos, tal qual o processo de revelação de um filme fotográfico num quarto escuro. Os fantasmas da família Grimaldi, então, lentamente voltam a assombrar.
Piscinas russas é um romance que reiteradamente confronta o público e o privado, e as relações de poder que permeiam todas as interações humanas. Do coronelismo na política brasileira aos escândalos da Lava Jato, do surgimento do nazismo às lutas raciais e feministas, os personagens do romance são sempre vítimas da História e/ou das circunstâncias. Seja o filho de um político poderoso obrigado a reprimir sua homossexualidade, seja um jovem irlandês, tímido e sonhador, que não consegue escapar da violência e da miséria de seus pares. Ninguém está a salvo. Outro tema recorrente do livro é a inabilidade de muitas mulheres para a maternidade, ou o entrave que um filho pode representar para seus planos de vida e, em última instância, para sua própria individualidade. Esse é o fio que une as personagens, entre elas Malena, Vivian, Aida e Lourdes. A certa altura lemos:
Vivian, enquanto paria a sua filha, ignorava: outra pessoa, naquele mesmo instante, morria. Sim, porque ela jamais seria a mesma de antes: irrevogavelmente, havia sido cindida. Tornar-se mãe é sempre suportar sua própria divisão.
O idílio do amor encontrado, da mesma forma, é demolido pelo desgaste da convivência e pela inevitável decepção advinda do machismo e da infidelidade masculina. Todas as histórias dessas mulheres apenas confirmam que, de fato, cada família é infeliz à sua maneira:
Há quem insista que a felicidade, de fato, jamais tornou alguém feliz. Porque, no minuto em que se pensa que ela foi alcançada, a queda avassaladora faz seu primeiro aceno, passa a assombrar, no segundo contíguo, mesmo que de modo discreto, aquele que se acreditava a salvo, invencível.
As múltiplas histórias de Piscinas russas não são contadas, mas antes reveladas, num intrincado jogo de espelhos em que muito do que se apresenta é falso, para mais adiante ser esclarecido. Todo esse movimento é igualmente captado pela fotógrafa Malena, cuja grande exposição, que dá título ao livro, disseca os personagens, vivos ou mortos, como uma forma de expurgação. O tom final, contudo, é melancólico: tanto os vivos quanto os mortos são inatingíveis, e o que resta é uma insuperável solidão. Barthes, ainda em A câmara clara:
A fotografia sempre traz consigo seu referente, ambos atingidos pela imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colados um ao outro, membro por membro, como um condenado acorrentado a um cadáver.
Numa época em que o romance quase sempre é curto e econômico, quase uma novela, muitas vezes confessional, as narrativas mais longas, com muitos personagens, diversas vozes e longos saltos temporais são a exceção. A obra de Renata Belmonte, e em especial este Piscinas russas, mostra que a arte romanesca ainda pode nos levar a voos mais altos da imaginação e a mergulhos mais profundos na psique humana.