O país do passado

Quatro relançamentos de Diogo Mainardi revelam um escritor ainda mais ferino do que o crítico da Veja
Diogo Mainardi: “A gente não vale nada”.
01/08/2006

Acabei de empacotar um presente para o presidente Lula. Liguei para o Palácio do Planalto e perguntei sobre a possibilidade de enviar-lhe a caixa. Garantiram-me que é só despachar para o endereço do Palácio, que Lula faz questão de receber tudo que lhe enviam. Não creio que realmente a encomenda chegue às mãos do presidente, nem acredito que ele vá usar o presente, mas que vai levar um susto, isso vai.

Fiz uma caixa com quatro livros de Diogo Mainardi. São livros que foram ressuscitados graças à fama que Mainardi ganhou com sua coluna na Veja. Caso contrário, estariam fora de catálogo para sempre. Mas a editora Record visualizou o negócio e comprou o passe do ex-escritor da Companhia das Letras. Já estão nas livrarias Malthus, Arquipélago, Polígono das Secas e Contra o Brasil.

O relançamento é oportunista, mas não deixa de ser oportuno, pois Mainardi é um bom ex-escritor. Pelos livros, percebe-se que a ironia marcante de seus textos não é uma novidade, pois ela está presente desde 1989, quando Malthus foi lançado. A maior novidade é que Mainardi consegue sustentar sua ironia em textos muito mais longos que os da sua coluna na revista semanal.

Malthus é uma novela maluca em que o protagonista Loyola y Loyola perambula fugindo das pessoas de seu convívio, residindo em ambientes inverossímeis como uma biblioteca, um navio, um carro, uma casa de praia desocupada, um quarto-e-sala no fundo de uma mercearia e um hotel.

A relação com a teoria de Malthus se dá quando o amigo Ovas Negrão tenta fazer a multiplicação milagrosa de alimentos e, sem querer, quadruplica Loyola y Loyola. Ele tenta consertar a magia e acaba gerando quarenta Loyola y Loyolas, transformando a novela numa balbúrdia de vozes dissonantes do mesmo personagem: “Um dos aspectos mais inquietantes da multiplicação que nos gerou é o fato de que Loyola y Loyola é um primoroso jogador de damas enquanto nós não sabemos nem mesmo movimentar as peças”.

A diversão continua em Arquipélago, de 1992, pequeno romance alegórico que conta a transformação de um vilarejo alagado por um dilúvio. Os sobreviventes passam a morar na abóbada da igreja, o único local que ficou acima da linha da água.

A nova condição de vida impera uma nova sociedade, e a história mostra como o desespero leva as pessoas a acreditar na mais rala retórica para retomar suas esperanças. Assim acreditam na fé no narrador, que vira o legislador da pequena comunidade, mas que usa os desabrigados como instrumento de reflexão filosófica: “De acordo com o meu raciocínio, cada ser humano encerrava em seu interior todo o resto da coletividade, sob a forma de frases feitas e idéias preconcebidas. A única maneira possível de um limitado progresso individual era negar essa coletividade, expurgando os outros de dentro de si”.

Da ironia sobre a sociedade universal, Mainardi desembarca em uma sátira escatológica da literatura regionalista brasileira em Polígono das Secas, de 1995. Dos quatro lançamentos, este é o mais estruturado como romance, com tintas fantásticas, humor negro e muita frieza.

Um untor viaja pelo Polígono para contamina, com seu unto infectante, todas as sertanejas chamadas Catarina Rosa. Ele se transforma num guia da miséria que circunda o sertão, catalisando os demais personagens em sua trilha de morte e sofrimento.

De todos os artigos que o colunista Mainardi escreveu em sua cruzada contra o presidente Lula, nenhum teria o efeito moral próximo do causado pelas situações de Polígono…, em que o sertanejo tem o seu caráter posto à prova e sucumbe sem qualquer tentativa de altruísmo. Manoel Vitorino, por exemplo, segue os passos do untor para saquear e violentar suas vítimas; o jagunço Januário Cicco já matou 40, a sangue-frio, a mando dos maiores latifundiários; as sertanejas são todas adúlteras e incestuosas:

De todos os sacrilégios, o mais freqüente na literatura de cordel é o incesto. Não há herói negativo que não o cometa. Por esse motivo, Piquet Carneiro acaba de atordoar a irmã com um soco na cabeça, arrastando-a até o jardim e violentando-a reiteradamente diante do resto da família, reunida em torno da fogueira para a festa de São João.

E, se em Polígono das Secas Mainardi arranca as vísceras do sertão, Contra o Brasil, de 1998, faz jus ao título. Para um escritor que cresceu ouvindo o discurso de que o Brasil é o país do futuro, Diogo Mainardi nos conduz a uma viagem pelo país do passado.

O livro é centrado num relato de viagem pela trilha aberta pelo Marechal Rondom ao instalar uma linha telegráfica entre Cuiabá e Porto Velho. O narrador e protagonista Pimenta Bueno refaz o percurso, numa expedição movida por diálogos recheados de críticas feitas ao Brasil por intelectuais estrangeiros que por aqui passaram, de Charles Darwin a Lévi-Strauss, passando por Albert Camus.

PIMENTA BUENO: Ser um molusco é a maior aspiração possível para o Brasil inteiro!
JOSÉ MARIA: Viva!
PIMENTA BUENO: Somos os moluscos da humanidade!
JOSÉ MARIA: Viva!
PIMENTA BUENO: Assim como o primarismo dos moluscos ajuda a revelar o funcionamento do aparelho digestivo de organismos mais sofisticados, o primarismo dos brasileiros ajuda a revelar a base inalterável da sordidez humana!
JOSÉ MARIA: Viva!

Em entrevista recente ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, Diogo Mainardi disse que literatura é para desocupados, que um dia ele teve que arrumar trabalho e largar os livros. Pois foi justamente após abandonar a literatura que Mainardi começou a ser lido, ao assinar uma coluna na maior revista do país. Foi ali que passou a ser conhecido como um crítico ferino de tudo e de todos, conquistando milhares de admiradores e outros milhares de detratores.

Para aqueles que odeiam Mainardi, que adorariam vê-lo fora da revista Veja, um conselho: é muito melhor mantê-lo empregado. Se como colunista Mainardi é ousado e irônico, como escritor é implacável e diabólico. Na mesma entrevista à Gazeta, ele disse que a mensagem de sua literatura é que “a gente não vale nada”.

Pena que Lula não deva receber meu presente.

Malthus
Diogo Mainardi
Record
96 págs.
Arquipélago
Diogo Mainardi
Record
128 págs.
Polígono das Secas
Diogo Mainardi
Record
144 págs.
Contra o Brasil
Diogo Mainardi
Record
256 págs.
Diogo Mainardi
Nasceu em 1962. Viveu durante alguns anos na Europa (Inglaterra e Itália), é colunista semanal da Veja e participa no programa Manhattan Connection, do canal a cabo GNT. É autor também de A tapas e pontapés.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho