Acabei de empacotar um presente para o presidente Lula. Liguei para o Palácio do Planalto e perguntei sobre a possibilidade de enviar-lhe a caixa. Garantiram-me que é só despachar para o endereço do Palácio, que Lula faz questão de receber tudo que lhe enviam. Não creio que realmente a encomenda chegue às mãos do presidente, nem acredito que ele vá usar o presente, mas que vai levar um susto, isso vai.
Fiz uma caixa com quatro livros de Diogo Mainardi. São livros que foram ressuscitados graças à fama que Mainardi ganhou com sua coluna na Veja. Caso contrário, estariam fora de catálogo para sempre. Mas a editora Record visualizou o negócio e comprou o passe do ex-escritor da Companhia das Letras. Já estão nas livrarias Malthus, Arquipélago, Polígono das Secas e Contra o Brasil.
O relançamento é oportunista, mas não deixa de ser oportuno, pois Mainardi é um bom ex-escritor. Pelos livros, percebe-se que a ironia marcante de seus textos não é uma novidade, pois ela está presente desde 1989, quando Malthus foi lançado. A maior novidade é que Mainardi consegue sustentar sua ironia em textos muito mais longos que os da sua coluna na revista semanal.
Malthus é uma novela maluca em que o protagonista Loyola y Loyola perambula fugindo das pessoas de seu convívio, residindo em ambientes inverossímeis como uma biblioteca, um navio, um carro, uma casa de praia desocupada, um quarto-e-sala no fundo de uma mercearia e um hotel.
A relação com a teoria de Malthus se dá quando o amigo Ovas Negrão tenta fazer a multiplicação milagrosa de alimentos e, sem querer, quadruplica Loyola y Loyola. Ele tenta consertar a magia e acaba gerando quarenta Loyola y Loyolas, transformando a novela numa balbúrdia de vozes dissonantes do mesmo personagem: “Um dos aspectos mais inquietantes da multiplicação que nos gerou é o fato de que Loyola y Loyola é um primoroso jogador de damas enquanto nós não sabemos nem mesmo movimentar as peças”.
A diversão continua em Arquipélago, de 1992, pequeno romance alegórico que conta a transformação de um vilarejo alagado por um dilúvio. Os sobreviventes passam a morar na abóbada da igreja, o único local que ficou acima da linha da água.
A nova condição de vida impera uma nova sociedade, e a história mostra como o desespero leva as pessoas a acreditar na mais rala retórica para retomar suas esperanças. Assim acreditam na fé no narrador, que vira o legislador da pequena comunidade, mas que usa os desabrigados como instrumento de reflexão filosófica: “De acordo com o meu raciocínio, cada ser humano encerrava em seu interior todo o resto da coletividade, sob a forma de frases feitas e idéias preconcebidas. A única maneira possível de um limitado progresso individual era negar essa coletividade, expurgando os outros de dentro de si”.
Da ironia sobre a sociedade universal, Mainardi desembarca em uma sátira escatológica da literatura regionalista brasileira em Polígono das Secas, de 1995. Dos quatro lançamentos, este é o mais estruturado como romance, com tintas fantásticas, humor negro e muita frieza.
Um untor viaja pelo Polígono para contamina, com seu unto infectante, todas as sertanejas chamadas Catarina Rosa. Ele se transforma num guia da miséria que circunda o sertão, catalisando os demais personagens em sua trilha de morte e sofrimento.
De todos os artigos que o colunista Mainardi escreveu em sua cruzada contra o presidente Lula, nenhum teria o efeito moral próximo do causado pelas situações de Polígono…, em que o sertanejo tem o seu caráter posto à prova e sucumbe sem qualquer tentativa de altruísmo. Manoel Vitorino, por exemplo, segue os passos do untor para saquear e violentar suas vítimas; o jagunço Januário Cicco já matou 40, a sangue-frio, a mando dos maiores latifundiários; as sertanejas são todas adúlteras e incestuosas:
De todos os sacrilégios, o mais freqüente na literatura de cordel é o incesto. Não há herói negativo que não o cometa. Por esse motivo, Piquet Carneiro acaba de atordoar a irmã com um soco na cabeça, arrastando-a até o jardim e violentando-a reiteradamente diante do resto da família, reunida em torno da fogueira para a festa de São João.
E, se em Polígono das Secas Mainardi arranca as vísceras do sertão, Contra o Brasil, de 1998, faz jus ao título. Para um escritor que cresceu ouvindo o discurso de que o Brasil é o país do futuro, Diogo Mainardi nos conduz a uma viagem pelo país do passado.
O livro é centrado num relato de viagem pela trilha aberta pelo Marechal Rondom ao instalar uma linha telegráfica entre Cuiabá e Porto Velho. O narrador e protagonista Pimenta Bueno refaz o percurso, numa expedição movida por diálogos recheados de críticas feitas ao Brasil por intelectuais estrangeiros que por aqui passaram, de Charles Darwin a Lévi-Strauss, passando por Albert Camus.
PIMENTA BUENO: Ser um molusco é a maior aspiração possível para o Brasil inteiro!
JOSÉ MARIA: Viva!
PIMENTA BUENO: Somos os moluscos da humanidade!
JOSÉ MARIA: Viva!
PIMENTA BUENO: Assim como o primarismo dos moluscos ajuda a revelar o funcionamento do aparelho digestivo de organismos mais sofisticados, o primarismo dos brasileiros ajuda a revelar a base inalterável da sordidez humana!
JOSÉ MARIA: Viva!
Em entrevista recente ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, Diogo Mainardi disse que literatura é para desocupados, que um dia ele teve que arrumar trabalho e largar os livros. Pois foi justamente após abandonar a literatura que Mainardi começou a ser lido, ao assinar uma coluna na maior revista do país. Foi ali que passou a ser conhecido como um crítico ferino de tudo e de todos, conquistando milhares de admiradores e outros milhares de detratores.
Para aqueles que odeiam Mainardi, que adorariam vê-lo fora da revista Veja, um conselho: é muito melhor mantê-lo empregado. Se como colunista Mainardi é ousado e irônico, como escritor é implacável e diabólico. Na mesma entrevista à Gazeta, ele disse que a mensagem de sua literatura é que “a gente não vale nada”.
Pena que Lula não deva receber meu presente.