O outro diante do espelho

Nos ensaios de “Dentro da floresta”, David Remnick trata de literatura, política boxe, Rússia e Israel
David Remnick: capacidade de desnudar os entrevistados.
01/01/2007

David Remnick é um jornalista típico e extraordinário.

Típico porque escreve sobre o que o mandam escrever. Não importa o quê. Existe uma máxima da profissão: o bom jornalista é capaz de produzir um texto informativo decente sobre qualquer coisa, mesmo que saiba quase nada sobre o assunto.

Justamente, Remnick é extraordinário porque parece capaz de escrever sobre o que for, indo além do meramente informativo. Dentro da floresta, a prova das qualidades do autor, reúne perfis e textos publicados ao longo de mais de dez anos pela revista The New Yorker, antes e depois de se tornar editor da mesma.

Seus temas oscilam entre política, literatura, boxe, Rússia e Israel. Há casos em que um resvala no outro. Quando fala sobre as preferências literárias e cinematográficas de Mike Tyson, por exemplo (aliás, o mordedor-de-orelhas é um fanático por James Cagney, ator que encarnou, nos anos 30 e 40, um tipo de herói. Hoje, as crianças têm Super-Homens e Homens-Aranhas; antes, elas tinham James Cagney).

À primeira vista, desconfia-se que boxe, literatura e política funcionem como água, óleo e… Enfim, se os três tópicos têm semelhanças, elas não estão evidentes. Esse é um dos talentos de Remnick, pois os textos dão uma idéia de unidade. Você acha muito natural ler sobre Don Delillo, autor do romance Submundo, e, páginas depois, topar um perfil do presidente russo Vladimir Vladimirovich Putin, descrito como um homem sem imaginação nem brilho.

David Remnick completa 50 anos em 2008. É casado com uma jornalista que, em 1991, trabalhava no The New York Times enquanto ele, embora tivesse anos de casa, ainda descascava os abacaxis que o The Washington Post colocava na sua frente.

Quando começou sua carreira, fazia a temida ronda policial: ligar, de hora em hora, para todas as delegacias a fim de descobrir se algo importante havia acontecido (em dias calmos demais, apela-se até para pronto-socorros e hospitais, qualquer coisa pode virar notícia). Era, por assim dizer, um trabalho sujo, mas, no Post, quem o fazia era Remnick. Inclusive porque ninguém mais se sujeitava.

Estar no The Washington Post em meados dos anos 80 era o desejo de dez entre dez jornalistas. Comandado com mão-de-ferro pela publisher Katherine Graham (também perfilada em Dentro da floresta), o jornal havia acabado de detonar o escândalo Watergate, cuja conseqüência foi “só” a renúncia do então presidente Richard Nixon. (Lembra daquele filme com aqueles dois atores, um loiro galã e outro baixinho feio? O nome é Todos os homens do presidente, estrelado por Robert Redford e Dustin Hoffman. A produção descreve o trabalho dos dois jornalistas que derrubaram o governo a partir de informações reveladas por um informante conhecido apenas como Garganta Profunda. Um dos protagonistas, Bob Woodward — interpretado por Redford no filme — desfruta hoje do status de ser um dos poucos, para não dizer o único, jornalista com passe livre na Casa Branca. Seu último livro, State of denial, literalmente Estado de negação, desmoraliza o presidente George W. Bush e toda sua equipe. Obra é vista como uma “errata” dos dois livros anteriores em que Woodward, grosso modo, vendia a imagem de um presidente desbravador e heróico.)

Remnick mostra deferência e até carinho por sua ex-chefe. No texto, intitulado apenas Sra. Graham, ele procura dar conta da história da vida da editora usando como referência o livro de memórias escrito por ela, Uma história pessoal, vencedor do Prêmio Pulitzer em 1998. Katherine é uma mulher de traços masculinos e lábios finos. As rugas no seu rosto marcam a expressão de alguém que não ri com freqüência. A narração de Remnick descreve uma figura impenetrável, quase caricata. O patrão capaz de demitir um funcionário porque o café que ele trouxe — mesmo não sendo sua função — estava forte demais ou doce de menos.

Depois de descrever um tipo de monstro fêmea, o autor se dispõe a humanizá-la, analisando o modo como a relação familiar — principalmente com o pai, que dirigiu o Post antes dela — acabou moldando uma personalidade insegura e despótica.

Como um pugilista
Quando descreve Al Gore, o ex-vice do presidente Bill Clinton e candidato campeão do voto popular em 2000 (as eleições americanas são peculiares e, apesar de ter sido o mais votado, Gore perdeu nos colégios eleitorais — o episódio é longo e trágico demais para caber entre parênteses), Remnick abandona a reverência e a compaixão que marcam o texto sobre Katherine Graham. Dialogando com Gore, ele age tal qual um pugilista. Dança em torno de Gore, distribuindo perguntas inofensivas (jabs), tentando cansá-lo.

Há seis anos, Remnick publicou na The New Yorker um perfil de Bill Clinton. Os EUA ainda sambavam ao som do caso Monica Lewinsky, a estagiária que protagonizou o provável ato de felação mais famoso da História. O texto era aguardado de tal forma que o repórter deu entrevistas sobre o modo como o produziu. Incluindo uma para a própria New Yorker, em que Remnick diz como é difícil pegar um político com a guarda baixa. O homem cria para si uma figura pública e é com ela que sai de casa e passa o dia. Al Gore — e os políticos em geral, quanto mais experientes, pior — tem respostas prontas para inúmeras situações. É muito, muito difícil intimidar um político com perguntas.

A maior diferença de Remnick para os jornalistas que se acotovelam em uma entrevista coletiva ou que lançam às pressas meia dúzia de perguntas por telefone ou e-mail é o tempo. O fato de ser quem é e de trabalhar para quem trabalha dá a Remnick a vantagem de passar dias, semanas e meses convivendo com seu entrevistado. (A The New Yorker é conhecida e admirada pelos prazos largos que dá aos seus escritores. Para citar um dos ídolos de Remnick, Joseph Mitchell chegou a passar anos em contato com o mendigo Joe Gould, personagem de seu texto mais famoso, O segredo de Joe Gould.)

Todos os perfilados por Remnick — e provavelmente todos os da New Yorker — passam um bom tempo convivendo com repórteres, que são acolhidos em suas casas, comem sua comida, andam em seus carros, acompanham-nos no trabalho e nas conversas familiares. Se não fosse indelicado, descreveriam até suas idas ao banheiro (porque, dada a intimidade que ganham com os personagens, é razoável imaginar que testemunham até suas necessidades básicas).

Na tentativa de furar a carapuça de Al Gore, o repórter descreve os detalhes mais sutis. O diálogo com o cozinheiro, um comentário sobre ovos mexidos, a barba crescida e depois aparada, os tênis, etc. No final do “embate”, Remnick perde por pontos por uma diferença mínima. Ele tenta, mas não consegue entrever o Gore por trás de sua figura pública. O político e ativista ambiental (essa qualidade se tornou popular depois do documentário Uma verdade inconveniente, em que Gore descreve as barbaridades que estão acontecendo ao planeta, perpetradas sobretudo pelos EUA) deixa transparecer somente aquilo que quer que outros vejam. Há um momento em que parece fraquejar, prestes a desabafar os erros que cometeu em sua campanha à presidência, mas logo se recupera e deixa Remnick com muito pouco. De qualquer forma, o fato de ter arrancado quase nada do entrevistado não é obstáculo para um bom perfil. (Basta lembrar do texto lendário que Gay Talese, outro senhor jornalista, escreveu a partir da entrevista que Frank Sinatra não concedeu. O título apropriado era “Como não entrevistar Frank Sinatra”, publicado no Brasil no volume Fama e anonimato, parte da coleção Jornalismo Literário da qual faz parte o Dentro da floresta, de Remnick. Dentro de um bar, sentado a uma certa distância do cantor, Talese ficou o que podem ter sido horas observando Sinatra para depois criar um retrato impressionante a partir de gestos, olhares e atitudes dele e dos outros em relação a ele.)

Remnick tem o trunfo de ter falado com pelo menos duas figuras “inentrevistáveis”: os escritores Philip Roth e Don Delillo. Esses dois nomes são suficientes para fazer brilhar os olhos de qualquer leitor chegado em notícias literárias.

Roth raramente dá entrevistas. Quando não consegue evitá-las, costuma ser lacônico. Diante de Remnick, o autor de Pastoral americana e Adeus, Columbus (recém-relançado pela Companhia de Bolso) desengasga. É como se Roth quisesse contar um monte de coisas sobre si — da separação da atriz Claire Bloom ao método de trabalho —, mas, antes, não tinha sentido empatia pelo interlocutor.

Todos os textos de Remnick têm, ao final, a data em que foram escritos e, quando necessário, trazem um adendo do autor atualizando informações — como a reeleição do primeiro-ministro britânico Tony Blair ou por onde anda o ativista judeu Natan Sharansky. O sobre Roth foi escrito em 2000, também tendo como cenário a América horrorizada com a carne fraca de Clinton (a indignação que Roth lança contra o presidente democrata, condenando as mentiras que ele repisou em rede mundial de tevê, é uma surpresa vinda de um homem com fama de imoral — graças às aventuras sexuais que descreveu em O complexo de Portnoy e em O animal agonizante, para ficar em dois exemplos).

Um dos melhores momentos do livro de Remnick vem quando Roth resolve destruir a literatura (todos os trechos citados daqui em diante têm tradução de Celso Nogueira). “Não temos muito tempo, nem muito espaço, e poucos hábitos mentais determinam o modo como as pessoas usam seu tempo livre. A literatura exige um hábito mental que desapareceu. Exige silêncio, algum tipo de isolamento e a concentração continuada na presença de um fator enigmático. É difícil apreender um romance maduro, inteligente, adulto. É difícil saber o que fazer da literatura. Por isso digo que dizem coisas estúpidas sobre ela, pois, a não ser que as pessoas sejam suficientemente educadas, elas não sabem o que fazer dela.”

O assunto reaparece no perfil sobre Don Delillo, escrito três anos antes. O autor de Libra “não acredita que a condição cada vez mais marginal do romancista sério seja necessariamente ruim. Sendo marginal ele pode se tornar mais importante, mais respeitado, mais agudo em suas observações”. Ele diz que a notícia é a narrativa de nosso tempo. “Ela praticamente substituiu o romance, substitui o diálogo entre as pessoas. Ela substituiu um modo uma forma de comunicação mais cuidadosamente construída, um modo mais pessoal de comunicação.”

Em carta ao amigo e também romancista Jonathan Franzen (As correções), Delillo resume a questão em uma frase: “Escrever é uma forma de liberdade pessoal”.

Dentro da floresta
David Remnick
Trad.: Álvaro Hattnher, Celso Nogueira e Ivo Korytowski
Companhia das Letras
576 págs.
David Remnick
Nasceu em 1958. Foi repórter do jornal The Washington Post de 1982 a 1991 e trabalha na revista The New Yorker desde 1992, onde é editor há oito anos. Em 1994, ganhou o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção com Lenin’s tomb: The last days of the Soviet empire. No Brasil, a Companhia das Letras também publicou O reio do mundo, sobre as principais lutas de Muhammad Ali.
Irinêo Netto
Rascunho