Inovar é o anseio legítimo de todo criador, mas chove-se no molhado ao se lembrar aqui o quanto isso é difícil de ser alcançado. As estratégias não variam muito. A mais corriqueira e ingênua (e sem dúvida a mais perigosa) é pôr todas as fichas na busca daquilo nunca dantes feito e, ao julgar tê-lo enfim encontrado, acreditar piamente no santo milagreiro. Como os milagres estão cada vez mais escassos e novas idéias não andam caindo do céu, o perigo está em esbarrar ali adiante em outro que já tenha explorado antes a mesma, genial e exclusiva idéia, e ¾ pior dos piores ¾ que mais gente descubra que aquela grande sacada nem era assim tão original como a quiseram vender. Talvez a atitude mais inteligente para quem busca a novidade seja a de fazer justamente o caminho inverso: olhar para o que já foi testado e aprovado ao longo dos anos e tentar recriá-lo. Nem sempre funciona, mas as chances de acerto aí são bem maiores. Muitas vezes uma idéia anda tão esquecida que basta espaná-la para fazê-la rebrilhar como se fosse novinha em folha.
Estruturar narrativas como se fossem peças de teatro não é exatamente uma solução inovadora; ao contrário, há vários exemplos de contos e romances que se apresentam no todo ou em parte nesse formato. Por outro lado, há uma tendência hoje em se diluir cada vez mais os limites entre os diversos gêneros e de se praticar um hibridismo que teria tudo a ver com a nossa época, quando as mais diferentes concepções conseguem se harmonizar num universo cada vez mais plural e refratário às classificações canônicas. O pulo do gato de Carlos de Brito e Mello em seu segundo romance, A cidade, o inquisidor e os ordinários, foi revisitar um gênero teatral específico que, resgatado na longínqua Idade Média, mostra-se surpreendentemente adequado para traduzir o mundo contemporâneo em toda sua assustadora complexidade.
Trata-se da farsa, forma que se consolidou na tradição medieval de setorizar a arte em dois grandes grupos: a sacra, sua manifestação mais elevada e espiritual, e a profana, que prioriza as questões humanas e materiais. A farsa ou farsesco pertence ao segundo grupo e, segundo a definição extraída do blog Desvendando Teatro, “é um gênero dramático predominantemente baixo cômico, de ação trivial, com tendência ao burlesco (cômico, ridículo). Inspira-se no cotidiano e no cenário familiar e é o mais irresponsável de todos os tipos de drama. Caracteriza-se por seus personagens e situações caricatas. Distingue-se da comédia e da sátira por não se preocupar com a verossimilhança nem pretender o questionamento de valores” (ao contrário do auto, que teria um sentido moralizador e seria seu parente mais próximo no grupo dos gêneros sacros). A intenção da farsa é apenas o humor: “assuntos são introduzidos rapidamente”, com poucos elementos, visando a se evitar “qualquer interrupção no fio da ação ou análises psicológicas mais profundas, ações exageradas e situações inverossímeis”. Os personagens se comportam de maneira extravagante, ainda que mantenham “uma quota de credibilidade”.
Modelo
A cidade… encaixa-se tão perfeitamente bem nessa definição que parece lhe ter servido de modelo. A cidade do título é uma metrópole contemporânea indefinida, que tanto pode ser a Belo Horizonte natal do autor como qualquer uma outra, brasileira ou não. Os ordinários são seus habitantes, e dentre eles se destacam os tipos anacrônicos que formam o elenco relacionado na abertura do livro. O protagonista é o Decoroso, um autoproclamado inquisidor cuja missão é identificar “abnormes” entre seus conterrâneos, para em seguida julgá-los e sentenciá-los segundo leis que ninguém mais, além dele próprio, conhece. Aplica-lhes as respectivas penas, o que invariavelmente significa dependurar o pobre-diabo num lugar bem alto de onde possa ser visto por todos os demais ordinários durante seu cumprimento. A duração do castigo nunca é informada, mas não há notícia de nenhum condenado que não tenha resistido e despencado lá do alto. Os sentenciados são todos do sexo masculino, porque o Decoroso se recusa a julgar mulheres: “para a mulher não tenho lei nenhuma. Não aprendi quais seriam as palavras mais severas para qualificar o que elas fazem. Não possuo meios de antecipar nem prever seus atos.”
Os assim considerados “abnormes” ou “bobos” são homens que perderam a fé em si mesmos e no mundo, afastaram-se do convívio social e vivem agora enfurnados em casa numa apatia patológica onde o descuido com o asseio e com a aparência é apenas o sintoma mais visível de uma profunda degradação humana. Antes de serem sentenciados, o Decoroso faz sempre algumas tentativas de induzi-los ao suicídio, dando-lhes assim a chance de buscar eles próprios, e condignamente, a reparação de seus erros.
O inquisidor tem como ajudantes dois irmãos de tipo pitoresco que vivem equilibrados sobre uma corda esticada a muitos metros do chão: o Olheirento, cuja visão privilegiada da cidade lhe possibilita ser uma extensão dos olhos do patrão, e o Apregoador, mescla de arauto e cronista dos acontecimentos. De resto, todos os personagens são nomeados a partir de sua função na trama ¾ além dos já citados, há também uma Impostora, um Bem Composto, uma Quituteira, um Prestável, um Versificador, um Arrombador, e assim por diante ¾, reforçando a ideia de que a importância de cada um deles está circunscrita ao papel que desempenham. Atributos físicos e psicológicos são pouco explorados. A única e honrosa exceção é o Decoroso, que adora discorrer sobre si mesmo e suas virtudes e faz a autodescrição deliciosa escolhida para ilustrar esta resenha.
O que a peculiaríssima concepção do inquisidor chama de decoro é para ele a virtude primordial; levá-lo como adjetivo no próprio nome significa estar acima dos demais, o que lhe possibilita evocar para si o direito de julgá-los; em sentido contrário, faltar com o decoro significa praticar uma abnormidade a ser dura e exemplarmente punida. Ninguém questiona seu poder, e todos aceitam passivamente que ele o exerça contra os que decide punir. Nem mesmo os próprios condenados esboçam qualquer reação durante o processo sumário a que respondem e aceitam mansamente a punição que lhes é imposta. O Decoroso não detém, contudo, a função de divindade, tampouco se arvora a ser um representante de Deus na Terra. Na sociedade idealizada no romance, o Destinatário é essa figura apenas referida que, cansada dos homens e de suas recorrentes fraquezas, decide abandoná-los à própria sorte.
Sutileza estilística
Embora o texto teatral normalmente dispense narradores, eles estão presentes em A cidade… e de um modo nada usual. A principal voz narrativa é a do Decoroso, e a ele compete, além de suas alentadas falas, também as rubricas, a descrição das ações e dos próprios pensamentos. Se o propósito fosse de fato a encenação, a solução soaria um tanto esdrúxula. Como se trata de um romance travestido de peça, ao leitor não incomoda a discrepância; pelo contrário, ela acaba transformada em sutileza estilística.
A originalidade da história, dos personagens e do formato, somada ao bom humor e também à criação e manutenção dos vários conflitos menores, sustentam bem a narrativa até o momento em que um conflito principal começa a ser desenhado. Desse ponto em diante, o autor adota um outro caminho interessante ao deixar que mais de uma opção avance em paralelo à que será a definitiva e que levará ao final.
Carlos de Brito e Mello possui um discurso elegante que denota sua invejável intimidade com os preceitos da boa escrita. A exuberância do léxico e o estilo pomposo de algumas construções sintáticas emulam o anacronismo da história sem contudo representar qualquer dificuldade ao leitor médio que, de quando em quando, vê-se chacoalhado por uma expressão chula aqui, um palavrão acolá ou mesmo uma simples gíria da atualidade fugida de seu ambiente natural. Muito longe de parecer um recurso apelativo, esse é mais um saboroso tempero estilístico a serviço do humor.
A cidade, o inquisidor e os ordinários é um belo e divertido romance ¾ está entre os melhores publicados no ano que passou ¾ e tem potencial para ir além das conquistas de seu bem-sucedido antecessor.