O inesperado Prêmio Nobel de Literatura deste ano para a poeta americana Louise Glück trouxe à tona uma velha questão envolvendo as escolhas da Academia Sueca: a presença de mulheres entre os premiados. Neste começo de século, foram apenas seis escritoras agraciadas com a honraria. Menos da metade do número de homens.
Além do histórico de preconceito, nos últimos anos a Academia foi o centro de seguidos escândalos, que reavivaram problemas de sexismo e corrupção dentro da instituição, o que abalou a opinião pública sobre a autoridade de seus membros para decidir os rumos da história literária mundial. Uma crise moral que coloca em jogo o próprio futuro da instituição — que muitos consideram já falida.
Em 2018, ano em que o movimento feminista #metoo revelou casos de assédio sexual sofridos por mulheres em seus ambientes de trabalhos (Hollywood foi o epicentro), a jornalista Matilda Gustavsson iniciou, para o jornal suíço Dagens Nyheter, uma investigação sobre a cena cultural sueca, que a levou a diversas denúncias envolvendo o mesmo homem: Jean-Claude Arnault, marido da poeta Katarina Frostenson, integrante da Academia.
Os testemunhos, que mais tarde seriam compilados no best-seller Klubben (O clube), de Gustavsson, revelavam não só a gravidade dos crimes sexuais cometidos por Arnault, mas também o fato de que ocorriam com o conhecimento dos membros da Academia, inclusive de Frostenson.
Comparado a um “novo Weinstein”, em referência ao produtor Harvey Weinstein, condenado por crimes sexuais na indústria do cinema americano, o caso colocou a Academia em uma crise tão profunda que até o possível fim da instituição foi aventado. Afinal, com que autoridade um grupo de pessoas com tantas falhas morais poderia escolher, a cada ano, o escritor que tenha “dado à humanidade maior contribuição”, como requer o testamento deixado por Alfred Nobel? Mesmo porque, como ficou evidente com o escândalo, esses problemas acompanham a Academia desde a sua fundação.
Afinal, com que autoridade um grupo de pessoas com tantas falhas morais poderia escolher, a cada ano, o escritor que tenha “dado à humanidade maior contribuição”, como requer o testamento deixado por Alfred Nobel?
Preconceito histórico
Quando o rei Gustaf III fundou a Academia em 1786, as mulheres ainda não tinham adquirido direitos políticos e portanto não estavam autorizadas a entrar na instituição ― mesmo que já houvesse na época, ainda que poucas, mulheres envolvidas no meio literário.
A primeira mulher a se tornar oficialmente integrante da Academia ― não sem antes enfrentar muita resistência do secretário da época ― veio somente em 1914: Selma Lagerlöf, que já tinha provado o seu valor alguns anos antes sendo a primeira mulher a receber o Nobel de Literatura. Depois dela, se passariam mais 17 anos antes que uma outra mulher voltasse a receber o grande prêmio, e não menos de 30 anos até que uma nova mulher ocupasse uma das cadeiras da Academia.
Somente um século depois de Lagerlöf (ou seja, recentemente), a Academia teria em Sara Danius a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária permanente. Coincidentemente ou não, foi justamente durante o seu mandato que irrompeu o #metoo da cena cultural sueca ― o que se tornou um embate em si, culminando na renúncia de Danius de seu cargo por pressão da Academia, o que serviu para corroborar as críticas ao sexismo da instituição.
Guerra de poder
Quando o Dagens Nyheter publicou as denúncias de 18 mulheres contra Jean-Claude Arnault, a secretária permanente Sara Danius agiu imediatamente. Ainda no mesmo dia, entrou em contato com a firma de advogados da Academia, a Hammarskiöld & Co., para se aconselhar e iniciar uma investigação particular do caso. Antes mesmo de se reunir com o restante do grupo ― o que aconteceria em dois dias, na quinta-feira, dia oficial das reuniões da Academia ― como havia sido proposto pelo membro da entidade e amigo pessoal de Arnault, Horace Engdahl, a secretária deu o seu parecer resoluto ao jornal: “O kulturprofilen (algo como “nome da cultura”) comprometeu a Academia Sueca com suas atitudes, o que em si basta para que a Academia corte as relações com essa pessoa”, disse.
As “relações” a que Danius se referia mostraram ao público uma outra faceta problemática da instituição: a corrupção e cultura de favorecimento. A parceria entre a Academia e Arnault ia além das esferas social e cultural: por quase 30 anos a Academia bancou o clube Forum, onde aconteceu grande parte dos crimes sexuais cometidos pelo kulturprofilen.
Tratava-se de um clube “exclusivo” ao qual só pessoas “seletas” teriam acesso ― uma espécie de metáfora do próprio mundo literário, o que Arnault usava contra suas vítimas, como relata uma das testemunhas do livro-reportagem Klubben: “Às pessoas que chegam à cena cultural, Arnauld se apresenta como um ‘gatekeeper’. Ele já fez escritores jovens serem recusados pelas maiores editoras. Ele está envolvido em quem é aprovado nos editais da Academia Sueca. Ele repete como um mantra que tem o poder de criar e destruir carreiras, e como alguém que ainda não tem influência vai reagir a esse tipo de declarações?”[1]
Não só o clube Forum era usado por Arnault, mas também o apartamento da Academia Sueca em Paris, para onde levou várias de suas vítimas. Apesar de as investigações terem levado ao julgamento e acusação de Arnault, ele recebeu o apoio incondicional de alguns membros da Academia, principalmente do escritor (e também ex-secretário) Horace Engdahl, que entrou em guerra pessoal contra Sara Danius.
Tanto dentro da instituição quanto em público, Engdahl afirma que “não se pode chegar a outra conclusão além de que Sara Danius é, de todos os secretários desde 1786, a que pior realizou sua tarefa”.[2]
A ironia no fato de que o escritor considera a pior secretária da história da Academia justamente a primeira mulher nesse cargo, enquanto tenta proteger a reputação de um homem acusado e condenado por crimes sexuais, resumem bem a imagem que a Academia Sueca começou a ter na opinião pública.
A guerra de poderes entre Danius e Engdahl, que era também uma guerra de sexos, culminou na saída da secretária ― e também de vários membros que renunciaram ao cargo, seja em solidariedade a Danius, seja por causa do clima de indecoro que tomou a instituição. Enquanto isso, milhares de pessoas foram às ruas em todo o país na “Manifestação da Blusa de Gola Laço” (Knytblusmanifestationen), em referência ao estilo de se vestir de Sara Danius, demonstrando apoio à ex-secretária.
A cereja no bolo do ano conturbado da Academia viria com a não realização da premiação pela primeira vez em 75 anos ― as únicas vezes em que isso tinha acontecido foram durante os anos de guerra.
O prêmio de 2018 foi concedido à polonesa Olga Tokarczuk somente no ano seguinte, junto ao prêmio de 2019, o que trouxe novas polêmicas com a escolha do austríaco Peter Handke, acusado de haver publicamente negado o massacre de Srebrenica. Contando com a escolha também um tanto polêmica de Bob Dylan para o prêmio de 2016, pode-se entender a necessidade da Academia iniciar uma nova era de escolhas acertadas.
Escândalos recentes à parte, um olhar para a história do prêmio Nobel de Literatura revela a sua necessidade de diversidade. Entre os 117 premiados, apenas 16 até hoje são mulheres. E o problema não se resume à questão de gênero: a língua inglesa tem a maioria absoluta em relação a outras línguas ― o português, por exemplo, até hoje só tem um premiado, José Saramago.
Escritores da Europa e Estados Unidos também dominam as estatísticas em comparação aos de outras partes do mundo. Por isso a escolha de Louise Glück é, sem dúvida, muito positiva para as mulheres e para a poesia, mas só um primeiro passo em um caminho que vai levar décadas para chegar à igualdade. Nesse sentido, levando em consideração a história da Academia Sueca, parece ser a instituição quem precisa desse prêmio muito mais do que a escritora.