O narrador das nossas histórias

Rubem Mauro Machado, escritor premiado, é um exemplo de como as letras são desprezadas no Brasil
Rubem Mauro Machado: história simples e bem contada.
01/10/2000

Como é maravilhoso viver no Brasil! Descontados os ufanismos típicos dessa época de Olimpíada (apesar de que o desempenho dos nossos atletas não chega a ser exatamente empolgante), em termos de literatura há um vasto terreno a ser garimpado. Vira e mexe, um novo diamante é descoberto, algumas vezes são veios inteiros que se mostram altamente produtivos ao longo dos anos. Infelizmente, em um país de iletrados, mesmo quem sabe ler poucas vezes se dá ao luxo (falta de vontade, de oportunidade ou de dinheiro?) de ter um livro em mãos. Por isso não é de se espantar que um autor como Rubem Mauro Machado seja desconhecido no Brasil, apesar de já estar na estrada das letras há quase 20 anos, sem contar o tempo de jornalista.

Gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, Machado é um grande escritor, principalmente por conta de sua habilidade em contar histórias muito semelhantes às vividas por qualquer pessoa a cada dia. E como a identificação é praticamente imediata entre as personagens de Machado e, por que não dizer?, de nós mesmos, ler qualquer um de seus livros é um grande prazer. Não há como não se ver retratado em cenas, momentos ou situações com as quais Machado vai desfiando suas tramas. Não há sobrenatural em seus enredos, não há mistérios esotéricos, nem interferências do além. Não há heróis com superpoderes ou “pessoas acima do bem ou do mal.” São todos protagonistas comuns, desse infinito romance maior que é a vida real.

O primeiro romance de Machado que lhe deu notoriedade como escritor foi A Idade da Paixão (José Olympio, 1985, 230 págs.). O livro venceu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance de 1986. Mas, fato que cada vez mais parece ser confirmado pela experiência, os autores se lêem muito mais do que são lidos pelas “pessoas comuns.” Pouca gente leu A Idade da Paixão, e o livro encontra-se esgotado há anos, sem uma nova edição.

No romance, Machado conta a história de um rapaz vindo do interior do Rio Grande do Sul, filho de advogado e dona de casa, que vai a Porto Alegre enfrentar o último ano do extinto colegial. A personagem, que não revela seu nome, acaba encontrando morada na Pensão do Barbante, onde fará e perderá grandes amigos ao longo do ano. A escola onde estuda também será cenário de ganhos e perdas de amizades, sonhos, ilusões, amores, enfim, tudo o que qualquer um teve pouco antes de fazer 18 anos.

Apesar de ter ao fundo a Porto Alegre de 1961, é fácil transpor os típicos cenários do local — como a chaminé do Gasômetro, o Guaíba, o Teatro São Pedro — para qualquer cidade do mundo. Esse é o grande mérito de Machado. “Canta tua aldeia, e cantarás o mundo”, já dizia Dostoiévski. Machado canta as dores e alegrias de seu personagem, que são as de todo mundo.

Tem-se esse mesmo sentimento ao ler Lobos (Record, 1997, 226 págs.). A história se passa em 1984, ano das Diretas Já, de fortes emoções para qualquer brasileiro que viveu e se lembra daquela época. O fim da ditadura, a perspectiva da abertura política, a agitação cultural eram de tal maneira fortes e presentes no dia-a-dia que acabavam por influenciar o comportamento das pessoas.

Lobos tem dois personagens principais e três histórias. O primeiro é Raul Martins, jornalista e escritor como Machado, que prepara um livro sobre um personagem da ditadura brasileira. O segundo é esse próprio personagem, o militar Dornier, e sua história na corporação durante os “anos de chumbo.” A terceira história é a de Martins hospedado no Médici Hotel, ou melhor, preso em algum cárcere da ditadura.

Machado imprime um ritmo ao livro que se torna difícil respirar. Dornier vai ganhando vida própria ao longo das páginas e acaba inclusive aparecendo em meio aos dramas pessoais de Raul. O corte entre as histórias é feito sem aviso prévio, confundindo o leitor que não estiver prestando atenção na trama. O mais importante do livro é ver que a história pessoal é maior que a história oficial. Isso quer dizer que, não importa que grandes movimentos possam afetar a humanidade, comunismo, capitalismo ou coisa que o valha, a vida humana acaba sendo maior.

Raul Martins não vive sozinho. Se em A Idade da Paixão a personagem principal se relaciona com outras pessoas, mas ainda não lhes dá o devido destaque (o que pode ser visto nas memórias de Leonor, que vez ou outra interrompem o discurso do protagonista principal), em Lobos Raul dá vida a todos os outros seres, humanos e de papel, que vivem ao seu redor. Essa nova dimensão acaba mostrando que a maior parte das pessoas, menos fanáticas como Dornier, está mais preocupada com o cotidiano e seus pequenos dramas que com a grande marcha da história.

Nesses dois livros de Machado, não há como escapar da impressão de que ele conta a sua própria história. Os personagens principais vieram do interior do Rio Grande do Sul, ambos queriam ser escritores (o mais velho consegue), viviam paixões que, se não eram grandes, eram intensas à sua maneira, e gostavam de estar vivos. Além disso, a escrita em primeira pessoa reforça o aspecto de autobiografia. Ou não. Novamente, o tom franco da prosa de Machado e os personagens sem estrelismos nos são familiares.

O último lançamento de Machado escapa do tom de confissões. O Executante (Record, 2000, 142 págs.) reúne três contos policiais de diferentes épocas do escritor. O livro faz parte da Coleção Negra da editora, dedicada a colocar no mercado autores desse gênero da literatura tão desprezado pelos assim ditos cultos e intelectuais.

As três histórias têm o Rio de Janeiro como cenário comum. No primeiro conto, O Carinho da Serpente, o jornalista policial Hipólito Moura (olha aí o tom autobiográfico mais uma vez) sai em busca da verdade sobre um suposto assalto cometido em Copacabana contra um figurão da sociedade. Movido mais por curiosidade do que por um senso de justiça, já que não havia nenhum morto ou ferido na história, Hipólito vai recompondo os fios de uma trama insólita, que realmente aconteceu, pois o conto é baseado em um fato verídico. Ah, é bom lembrar que Hipólito vai atrás da verdade também porque seu patrão deseja saber mais sobre o figurão, para em um futuro poder achacá-lo.

No segundo conto, Assassinato em Copacabana, Hipólito passa de narrador a personagem. A história agora é contada pelo detetive Rodolfo, policial civil honesto (sim, ainda existem!), que investiga o assassinato de Eleonora, uma jovem da classe média alta do Rio de Janeiro. O corpo tem como única marca visível de violência um tiro na têmpora. Pela casa, não há sinais de luta, nem de roubo, nem nada.

Rodolfo é um detetive intuitivo, que não se deixa levar pelas aparências. Apesar de todos os indícios encontrados apontarem para um culpado, ele desconfia da facilidade do caso, e sai atrás do que realmente aconteceu. O trabalho de Rodolfo mostra bem as relações da polícia (quando honesta) com a bandidagem, esse mundo paralelo de cafetões, prostitutas, pequenos traficantes, aviões e outros. Machado, na voz de Rodolfo, mostra a necessidade dessa convivência um tanto quanto ambígua entre o oficial e o ilícito.

O último conto leva o mesmo título do livro, O Executante. Felipe, um funcionário do Itamaraty, é responsável por receber um assassino profissional dos Estados Unidos, contratado para eliminar um “arquivo vivo” da época da ditadura. Novamente baseado em um fato real, Machado narra a possível solução encontrada para eliminar pessoas que tiveram papéis determinantes na ditadura, no caso um famoso torturador.

Como algum escritor, cujo o nome não me recordo, já disse, o mais difícil é fazer o simples. E Machado deve ter muito trabalho para escrever. O seu texto é muito parecido a uma conversa. Ele vai fluido, sem sobressaltos, deixando uma sensação de conforto para o leitor. A prosa é envolvente, sendo difícil largar o livro antes do final. Ah, se todos os jornalistas fossem também escritores…

Há alguns detalhes da obra de Machado que merecem ser citados. Em primeiro lugar, as histórias por ele contadas terminam sem terminar, ou seja, o ponto final parece ser também um ponto de partida, como na vida real. Sempre há uma tarefa nova a fazer. Outro ponto é um detalhe erótico, que não está em A Idade da Paixão porque o personagem ainda não descobriu todos os prazeres da cama. De alguma forma, Machado consegue colocar sempre uma bela mulher que sai do banheiro vestindo (?) apenas calcinhas e calçando sapatos de salto alto. Um fetiche talvez, mais do que perdoável.

Outro detalhe de sua obra, talvez pelo fato de viver o cotidiano das redações, é a estrema verossimilhança com a vida real. Machado mostra que a história pessoal é muito maior que a história oficial, e que na maior parte dos casos mais vale a pena ser contada. No caso de Lobos, por exemplo, sabemos da época em que se passa o romance por causa do comício das Diretas Já. Cuidadoso, Machado não entra em uma divagação política sobre o comício, ou sobre a ditadura e seus porões, mesmo com a história de Dornier correndo paralela. Pelo contrário, o comício serve apenas para emoldurar os sorrisos de cada pessoa naquela situação. E cada cara feliz traz uma história diferente, que valeria a pena ser contada.

Machado é jornalista e tradutor, além de escritor. Com 58 anos, mora no Rio de Janeiro desde 1974. Machado tem outros cinco livros publicados. Contos do Mundo Proletário, de 1967, Jacarés ao Sol (contos), de 1976, Jantar Envenenado (contos), de 1979, O Inimigo da Noite (novela), de 1982, A Carícia da Serpente (novela), de 1988, e Não Acreditem em Mim (Memórias dos Anos Dourados, de literatura juvenil), de 1993. Infelizmente para todos nós, alguns desses livros, incluindo o premiado A Idade da Paixão, estão esgotados. Machado teve a infelicidade de nascer em um país onde os escritores são tão poucos valorizados. Felizmente, ele não se deixa abater e segue contando histórias de todos nós.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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