O não sentido da vida

Em "O porquê de todas as coisas", Quim Monzó subverte a ordem estabelecida do cotidiano com sutileza e elegância
Quim Monzó sinceramente acredita que a vida não tem muito sentido
01/12/2004

Muitos procuram o sentido da vida. Muitos passam a vida procurando o seu sentido, e perto do fim da vida, descobrem que essa busca não teve sentido. Seja sincero: mesmo aqueles que acreditam em vida após a morte, reencarnação e outros que tais, em alguns momentos não crêem que a vida tenha sentido. O suceder-se de fatos comezinhos, de banalidades e futilidades, os grandes lances reservados aos filmes de cinema ou aos livros de ação e romances, no fundo, no fundo, a vida parece ser uma grande chatice. Parece, pois há opiniões contrárias.

Qualificar Quim Monzó dentro desse cenário é complicado. Não se pode extrair de seu livro O porquê de todas as coisas, primeiro livro do catalão lançado no Brasil (o original, El perquè de tot plegat, foi publicado em 1993), qual é a sua opinião sobre a vida, se é séria ou não, se tem sentido ou não. A uma conclusão se pode chegar, porém. Ele sinceramente acredita que ela não faz muito sentido. Ah, isso não!

Essa conclusão se pode extrair da maneira como Monzó encara a vida. Suas personagens são todas pessoas que você pode encontrar na rua, em um bar, no restaurante, na fila do banco ou do cinema. Gente comum, que vive vidas comuns, tem apetites, vontades e desejos comuns, e mesmo que sonhe em realizá-los de maneiras cinematográficas, acabam realizando-os (quando isso é possível), de maneira comum. Gente normal, enfim.

Mas a normalidade é subvertida graças à ironia, à sutileza e, por que não dizer, ao sarcasmo de Monzó. Veja por exemplo o caso da personagem de A euforia dos troianos. Ele é um cara normal que devido a uma série de acontecimentos em sua vida acaba tendo um final diferente. Mas todos os acontecimentos são normais, a excepcionalidade é que todos acontecem com o mesmo azarado.

Nos contos em que Monzó subverte a realidade para criticá-la e expô-la ao ridículo (e conseqüentemente expor-nos ao ridículo), o autor procura o detalhe escondido, procura o texto subliminar, a perversão oculta, o excêntrico por baixo da normalidade, para poder dar a sua opinião. E assim, temos um bloco de 21 contos em que a vida cotidiana é esmiuçada e ridicularizada. São várias as situações, algumas hilárias, outras trágicas. Mas todas deixam na boca um sorriso, doce ou amargo, vai depender de quem lê. O desfile de personagens inclui os amantes, os namorados, os trabalhadores, os estudantes, os apaixonados, uma arquivista, um jogador de futebol, retratados em situações identificáveis por qualquer pessoa.

Um segundo bloco cuida de subverter nosso imaginário infantil, e reverter as expectativas dos contos de fadas. O conto da Gata Borralheira é muito bom, e revela a novamente a descrença do autor em um final feliz, seja na ficção seja na vida real. E realmente, não há como não achar graça e melancolia das situações retratadas por Monzó para a Gata, para o Sapo Encantado, a Pedra que Fala, o Duende do Cogumelo. São prisioneiros de um imaginário coletivo que os colocou na lista de gente que teve um final feliz. Teve, pois agora não tem mais.

Por fim, há o bloco que fala do escritor intelectual e da inutilidade da escrita. (Não, eu não considero a escrita inútil. Se o considerasse, não estaria aqui). É um olhar severo sobre o ofício de pensar e escrever, de ser intelectual em um mundo em que isso não vale nada, praticamente. As obras são efêmeras, e Monzó utiliza uma imagem poderosa para mostrar que mesmo a Grande Obra, fruto do trabalho de uma vida, tem como destino final o lixo e as traças.

Com frases curtas e bem colocadas, textos na medida exata, Monzó tem nessa coletânea de contos uma ótima estréia brasileira. Se o resto da obra seguir a mesma qualidade, não resta que aguardar com ansiedade pelo que virá.

O autor El perquè de tot plegat já foi transformado em filme por Ventura Pons, um ano após seu lançamento na Espanha, ops!, na Catalunha. A estréia de Monzó, nascido em 1952, deu-se em 1976, com o romance L’udol del griso al claire de les clavegueres, livro que recebeu o prêmio Prudenci Bertrana. Depois vieram Self service, escrito em parceria com Biel Mesquita, Uf, va dir ell e Olivetti, Moulinex, Chaffoteux et Maury. Benzina foi escrito em 1981, com forte influência de sua estadIa nos Estados Unidos. Monzó é também tradutor, compositor musical e roteirista para rádio e televisão.

Muitos procuram o sentido da vida. Muitos passam a vida procurando o seu sentido, e perto do fim da vida, descobrem que essa busca não teve sentido. Seja sincero: mesmo aqueles que acreditam em vida após a morte, reencarnação e outros que tais, em alguns momentos não crêem que a vida tenha sentido. O suceder-se de fatos comezinhos, de banalidades e futilidades, os grandes lances reservados aos filmes de cinema ou aos livros de ação e romances, no fundo, no fundo, a vida parece ser uma grande chatice. Parece, pois há opiniões contrárias.

Qualificar Quim Monzó dentro desse cenário é complicado. Não se pode extrair de seu livro O porquê de todas as coisas, primeiro livro do catalão lançado no Brasil (o original, El perquè de tot plegat, foi publicado em 1993), qual é a sua opinião sobre a vida, se é séria ou não, se tem sentido ou não. A uma conclusão se pode chegar, porém. Ele sinceramente acredita que ela não faz muito sentido. Ah, isso não!

Essa conclusão se pode extrair da maneira como Monzó encara a vida. Suas personagens são todas pessoas que você pode encontrar na rua, em um bar, no restaurante, na fila do banco ou do cinema. Gente comum, que vive vidas comuns, tem apetites, vontades e desejos comuns, e mesmo que sonhe em realizá-los de maneiras cinematográficas, acabam realizando-os (quando isso é possível), de maneira comum. Gente normal, enfim.

Mas a normalidade é subvertida graças à ironia, à sutileza e, por que não dizer, ao sarcasmo de Monzó. Veja por exemplo o caso da personagem de A euforia dos troianos. Ele é um cara normal que devido a uma série de acontecimentos em sua vida acaba tendo um final diferente. Mas todos os acontecimentos são normais, a excepcionalidade é que todos acontecem com o mesmo azarado.

Nos contos em que Monzó subverte a realidade para criticá-la e expô-la ao ridículo (e conseqüentemente expor-nos ao ridículo), o autor procura o detalhe escondido, procura o texto subliminar, a perversão oculta, o excêntrico por baixo da normalidade, para poder dar a sua opinião. E assim, temos um bloco de 21 contos em que a vida cotidiana é esmiuçada e ridicularizada. São várias as situações, algumas hilárias, outras trágicas. Mas todas deixam na boca um sorriso, doce ou amargo, vai depender de quem lê. O desfile de personagens inclui os amantes, os namorados, os trabalhadores, os estudantes, os apaixonados, uma arquivista, um jogador de futebol, retratados em situações identificáveis por qualquer pessoa.

Um segundo bloco cuida de subverter nosso imaginário infantil, e reverter as expectativas dos contos de fadas. O conto da Gata Borralheira é muito bom, e revela a novamente a descrença do autor em um final feliz, seja na ficção seja na vida real. E realmente, não há como não achar graça e melancolia das situações retratadas por Monzó para a Gata, para o Sapo Encantado, a Pedra que Fala, o Duende do Cogumelo. São prisioneiros de um imaginário coletivo que os colocou na lista de gente que teve um final feliz. Teve, pois agora não tem mais.

Por fim, há o bloco que fala do escritor intelectual e da inutilidade da escrita. (Não, eu não considero a escrita inútil. Se o considerasse, não estaria aqui). É um olhar severo sobre o ofício de pensar e escrever, de ser intelectual em um mundo em que isso não vale nada, praticamente. As obras são efêmeras, e Monzó utiliza uma imagem poderosa para mostrar que mesmo a Grande Obra, fruto do trabalho de uma vida, tem como destino final o lixo e as traças.

Com frases curtas e bem colocadas, textos na medida exata, Monzó tem nessa coletânea de contos uma ótima estréia brasileira. Se o resto da obra seguir a mesma qualidade, não resta que aguardar com ansiedade pelo que virá.

O autor El perquè de tot plegat já foi transformado em filme por Ventura Pons, um ano após seu lançamento na Espanha, ops!, na Catalunha. A estréia de Monzó, nascido em 1952, deu-se em 1976, com o romance L’udol del griso al claire de les clavegueres, livro que recebeu o prêmio Prudenci Bertrana. Depois vieram Self service, escrito em parceria com Biel Mesquita, Uf, va dir ell e Olivetti, Moulinex, Chaffoteux et Maury. Benzina foi escrito em 1981, com forte influência de sua estadIa nos Estados Unidos. Monzó é também tradutor, compositor musical e roteirista para rádio e televisão.

A determinação
À noite, a mulher fatal e o homem irresistível se encontram em um café com as paredes de cor ocre. Olham-se nos olhos; sabem que esta vez será a última. Tanto para um como para o outro, há semanas se foi fazendo evidente a fragilidade do fio que os havia unido desde três anos e que os fazia telefonarem-se toda hora, viver um para o outro; um tal mal-estar que nem as tardes de domingo eram entediantes. Agora o fio está a ponto de partir-se. Chegou o momento de pôr em dúvida o amor que têm um pelo outro e, então, terminar.

Antes se viam quase todos os dias, e o dia que não se viam se telefonavam, ainda que fosse no meio de um congresso na Nova Escócia. Nas últimas semanas mal se viram três vezes, e não foram encontros alegres. Sem terem se dito, os dois sabem que o encontro de hoje é para se despedirem inevitavelmente. Chegaram a um ponto tal de entendimento que a cada um dos dois não cabe explicar que se entediam porque todos os dois se dão conta disso simultaneamente. Seguram-se pelas mãos e recordam (cada um por si, em silêncio) a perfeição fornicadora a que chegaram ultimamente: eles próprios se maravilhavam. Não é nada estranho que, al lado de acrobacias assim, o resto de suas vidas lhes pareça maçante. Fazem café, se dizem adeus e vão cada um para o seu lado. Ela ficou de jantar com um homem; ele ficou de jantar com uma mulher.

Depois da sobremesa, a mulher fatal demora hora e meia metendo-se na cama com o homem com quem ficou. O homem irresistível demora três metendo-se na cama com a sua acompanhante. Os dois se acham fazendo-o de modo tão desajeitado que se emocionam. Quanta passividade! Quanta impaciência! Resta-lhes percorrer um caminho bem longo até chegarem com os novos amantes à perfeição a que acabam de dizer adeus esta noite, com um café.

À noite, a mulher fatal e o homem irresistível se encontram em um café com as paredes de cor ocre. Olham-se nos olhos; sabem que esta vez será a última. Tanto para um como para o outro, há semanas se foi fazendo evidente a fragilidade do fio que os havia unido desde três anos e que os fazia telefonarem-se toda hora, viver um para o outro; um tal mal-estar que nem as tardes de domingo eram entediantes. Agora o fio está a ponto de partir-se. Chegou o momento de pôr em dúvida o amor que têm um pelo outro e, então, terminar.

Antes se viam quase todos os dias, e o dia que não se viam se telefonavam, ainda que fosse no meio de um congresso na Nova Escócia. Nas últimas semanas mal se viram três vezes, e não foram encontros alegres. Sem terem se dito, os dois sabem que o encontro de hoje é para se despedirem inevitavelmente. Chegaram a um ponto tal de entendimento que a cada um dos dois não cabe explicar que se entediam porque todos os dois se dão conta disso simultaneamente. Seguram-se pelas mãos e recordam (cada um por si, em silêncio) a perfeição fornicadora a que chegaram ultimamente: eles próprios se maravilhavam. Não é nada estranho que, al lado de acrobacias assim, o resto de suas vidas lhes pareça maçante. Fazem café, se dizem adeus e vão cada um para o seu lado. Ela ficou de jantar com um homem; ele ficou de jantar com uma mulher.

Depois da sobremesa, a mulher fatal demora hora e meia metendo-se na cama com o homem com quem ficou. O homem irresistível demora três metendo-se na cama com a sua acompanhante. Os dois se acham fazendo-o de modo tão desajeitado que se emocionam. Quanta passividade! Quanta impaciência! Resta-lhes percorrer um caminho bem longo até chegarem com os novos amantes à perfeição a que acabam de dizer adeus esta noite, com um café.

O porquê de todas as coisas
Quim Monzó
Globo
164 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho