O nada e a juventude senil

Em "O dia Mastroianni", João Paulo Cuenca apresenta um retrato sarcástico de uma geração que caminha do nada para lugar nenhum
João Paulo Cuenca: narrativa mantém intenso diálogo com o cinema.
01/01/2008

Do lugar nenhum rumo ao nada. Eis o que se passa com os personagens do romance O dia Mastroianni, de João Paulo Cuenca. Os seres ficcionais se movem. E nada acontece. Conversam, consomem álcool e drogas, flertam, praticam sexo volátil e nada acontece. Antes da narrativa iniciar, um verbete reza e esclarece que o dia Mastroianni é “aquele gasto em pândegas excursões a flanar na companhia de belas raparigas, à brisa das circunstâncias e alheio a qualquer casuística”. O dia Mastroianni é uma viagem rumo ao nada.

Pedro Cassavas, o protagonista, e o personagem amigo Tomás Anselmo são jovens. Se recusam a trabalhar. Preferem ser trabalhados. Circulam em câmera lenta, sob riffs molhados e galopantes de guitarra. Se recusam a trabalhar pois se acreditam bons demais, tão excelentes que poderiam fazer tudo o que desejassem, mas nada ambicionam. Desconhecem o prazer de um plano realizado. Conversam apesar de professar que todas as conversas são inúteis. E bebem. Tudo que for alcoólico. Bebem como se não houvesse amanhã. Querem drinques gratuitos e prazeres interditos. Para eles, o hoje é uma ilusão que se parece com anteontem. A dupla se recusa a agir porque “nada nunca acontece ou acontecerá, independente do que façamos no mundo”. Eles têm saudades do que nunca aconteceu.

O protagonista se entrega ao nada que é fruir o dia Mastroianni. Despreza todo e qualquer compromisso com a realidade. Pouco se importa, por exemplo, com o registro disso que chamam realidade:

Não imagino há quanto tempo não leio um jornal. Sei que, na última vez que o fiz, o pano caiu ante meus olhos: descobri que nada acontece. É o maior de todos os segredos. Depois, nunca consegui entender por que eles lêem o diário, discutem sobre as últimas (des)notícias, o que chamam de “realidade”, de “mundo”. Isso não me faz sentido algum.

Bem-vindo ao Monga Bar
Pedro Cassavas e Tomás Anselmo encontram outras duas personagens, a doce Maria e a Verônica. Juntos, caminham, entram e saem de bares e outros estabelecimentos. Entram no bar Divã do Mundo. Mas poderiam entrar num esperto e modernoso reduto noturno curitibano, o Monga Bar. Pedro, Tomás, doce Maria e Verônica lembram, representam, encarnam e traduzem uns tipos que se perpetuam e insistem em metrópoles brasileiras contemporâneas: os dândis precoces, escritores sem livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes — os que verbalizam citações de romances inexistentes, flanando sob pontes e mesas de botecos como pândegos muito sólidos, lordes sem um tostão nos bolsos, trocando os dias pela noite e as noites por coisa alguma.

Verônica vive nas páginas de O dia Mastroianni: é dançarina moderna, iogue com pretensões de arte, estuda cinema e é da turma que está sempre produzindo algum projeto. Ao invés de realizar, vai aos bares e, nas mesas, diante de gênios inéditos como ela, sublima o fazer por meio de palavras. Existe enquanto personagem de O dia Mastroianni. Mas poderia estar em Curitiba, na real, e ser uma das habitués do Monga Bar ou do Café Almofada. Ou de qualquer outro bar, moderno, freqüentado por artistas sem arte, músicos sem música, escritores sem literatura e publiciOtários. Talvez ela esteja agora em um outro reduto curitibano de jovens antenados e loquazes — vítimas de logorréia: o Café do Retrato. Não. Ela está nas páginas de O dia Mastroianni. Não, neste momento, Verônica e alguns freqüentadores do Monga Bar e do Café Almofada e inúmeros outros jovens curitibanos declamam, em alta voz, de repente num porão qualquer, uma canção que é hino e profissão de fé dos eternos adulteens:

Eu quero o conceito perfeito,
o mundo cor-de-rosa num sonho infantil,
a pura ignorância pequeno burguesa,
eu quero o olhar perdido de um cão

Eu quero o slogan maior,
farta mesa da família nórdica,
breakfast, fastfood, junkfood,
eu quero uma vida feliz e rasteira

Eu quero o timming perfeito,
a fórmula do seu sucesso,
jogo de cintura, espirituosidade
eu quero ser um alfa-beta

Eu quero o clímax perfeito,
o traveling final, majestoso,
o diálogo perspicaz, elegante,
eu quero o charme ambíguo do galã.

Eu quero sexo perfeito,
sem lençóis sujos ou movimentos bruscos,
inodoro, depilado, com as luzes acesas,
eu quero amor enlatado

Eu quero o conceito perfeito…

Escrever pra quê?
O dia Mastroianni é literatura e a literatura é discutida em meio a esse enredo que problematiza o nada de uma geração que fracassou antes de agir. Pedro e Tomás encontram em uma mesa de bar um sujeito chamado Esgar Mxyzptlk. É um escritor. A conversa será sobre a grande arte. Também tergiversam sobre amenidades, free jazz, teoria do caos e os lançamentos do mercado editorial. Falam sobre feiras literárias: picadeiro de vaidades, varejos de logros, congresso de vendas. Discutem a vida literária, mero fetiche. Mxyzptlk reclama estar tão ocupado em ser escritor que não tem mais tempo para escrever. E se perdem num blablablá a respeito da falta de sentido do nada em que estão enredados.

O enredo de O dia Mastroianni é interrompido, em meio às horas de um dia — a narrativa se passa em menos de 24 horas. Há diálogos entre o que seria o narrador e o personagem central, Pedro Cassavas. Após determinada ação, narrador e protagonista conversam. Discutem. Brigam. O narrador questiona as ações do protagonista. O protagonista debocha do narrador. As estratégias narrativas são discutidas. A literatura é questionada. As situações do próprio livro são colocadas em xeque:

— TINHA QUE TER UMA ESCATALOGIA, NÃO É? DE DIA MASTROIANNI ESSE LIVRO NÃO TEM NADA. TÁ MAIS PRA DIA BEM GAZZARA! E ESSA DO SONHO FOI DUREZA! POR QUE VOCÊ NÃO SE CONTENTA EM SIMPLESMENTE CONTAR A HISTÓRIA?
— Mas eu não quero contar história nenhuma. Não há história pra contar…
— É POR ISSO QUE A LITERATURA BRASILEIRA NÃO TEM FUTURO.
— Futuro? Mal tenho um passado…
— TALVEZ SEJA A PERSONIFICAÇÃO DO AUTOR MAIS JOVEM. SEU ALTER-EGO! ALGUÉM QUE ELE GOSTARIA DE TER SIDO. QUANDO JOVEM! ELE E SEUS AMIGOS CÍNICOS E INÚTEIS QUE SE ACHAM GÊNIOS DA RAÇA… SUA BOÊMIA FLAMBOYANT PERDIDA! VÊ-SE QUE SÃO UNS FRUSTRADOS! E NÃO DESPERTAM PENA EM NINGUÉM. QUEM GOSTARÁ DELES?
[…]
— Estou morto. E isso é uma espécie de julgamento!
— VOCÊ SE ENGANA. ESQUECE QUE TUDO É TEATRO. NÃO É ASSIM QUE VOCÊ GOSTA DE FALAR, PEDRO CASSAVAS?
— Vocês me confundem com outro.
— VOCÊ E SUAS FRASES FEITAS, BRAVATAS DE BÊBADO!
— Quando poderei sair daqui, afinal?
— QUANDO O SENHOR QUISER, MEU CARO. É SÓ ABRIR A PORTA.
— Mas não vejo nenhuma porta.
— INVENTE-A.

Cinemascope
Pedro Cassavas se move do lugar nenhum para o nada e tudo que ele encontra, até o que não presta atenção, estará diante dele antes da narrativa acabar. O protagonista não crê em nada e nada busca. Mas a narração construída meticulosamente sugere que tudo faz sentindo na trajetória de Pedro Cassava. Personagens, relevantes ou não — gente de sangue ruim, atrizes, literatos, cineastas e até uma mulher com quem Pedro se envolveu num distante passado, tudo converge para e até ele:

Eles só nasceram, foram educados, arrumaram empregos, saíram de casa hoje de manhã para trabalhar, sentiram fome e tiveram a idéia de jantar de madrugada aqui no Snàporatz para serem vistos por você.

A narrativa literária dialoga com o cinema. Em camadas diretas, sutis e em entrelinhas e clicks rapidíssimos. É o olhar de Pedro quem conduz a narração. O olhar de Pedro é a edição, a mão do diretor, o plano final do roteiro, o ator em ação: “PORQUE TUDO O QUE VEJO É ATRAVÉS DOS SEUS OLHOS”. O dia Mastroianni se dá a partir do olhar embriagado, modificado pelo consumo de haxixe e outros alucinógenos que Pedro Cassavas ingeriu: “Porque só existe o que você pode ver”. O dia Mastroianni pode não passar de delírio, mas passa pela retina de Pedro. Mxyzptlk salienta: “Pedro, eu vou contar um segredo: só existe o que você vê”.

Leitor, leitora: esta resenha não existe. O que existe é O dia Mastroianni, o livro. Agora, já não escrevo mais esta resenha. Fui, estou diante da porta do Monga Bar, aqui em Curitiba. Ou seria o Café Almofada? Tanto faz. É tudo igual: a mesma miragem. Pego a ficha de consumação. Que não pagarei com três notas de sete reais. Não entrei. Mas no porão do Monga Bar, ou seria do Café Almofada?, uma Pose passa. Um músico com disco mas sem música. Ali, perto do balcão, um poeta com livro publicado mas sem poesia. Na escada, um publiciOtário: não lê, nunca leu, mas se quer escritor — e tem uma máquina de trocadilhos, clichês e lugares-comuns no lugar do que seria o cérebro. Pedro Cassavas chega, abraçado com a doce Maria. Atrás deles Tomás Anselmo e Verônica se beijam. Numa mesa, parece que é o João Paulo Cuenca. Não. O João Paulo Cuenca não faz parte dessa fauna. O João Paulo Cuenca ao mirar a realidade mais do que próxima produziu longa narrativa que abduz nuances desse presente, foco em seres jovens possivelmente os mais senis que se tem notícia na história do Homo sapiens.

Posfácio, uma saideira
O dia Mastroianni é um livro absurda e absolutamente indispensável. Para pensar o presente. E chorar pelo futuro. E ter vontade de viver no passado. Romance com brilho, irônico, escrito com fúria e força raras — momento raro de força nestes tempos insossos em que qualquer Pose se quer um gênio inédito da raça. O dia Mastroianni é prosa para ler — e reler, rindo, para gargalhar. E, então, se dar conta de que João Paulo Cuenca é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.

O dia Mastroianni
João Paulo Cuenca
Agir
210 págs.
João Paulo Cuenca
Nasceu em 1978 no Rio de Janeiro. Foi cronista da Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil. Hoje, assina textos veiculados no Megazine, de O Globo. Autor do livro Corpo presente e co-autor de Parati para mim, escrito sob encomenda para a primeira edição da Festa Literária Internacional de Parati (Flip). Tem textos publicados nas coletâneas Dentro de um livro, Contos sobre tela, Prosas cariocas, Cenas da favela.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho