Sabe-se que Da Vinci, que dedicou muito de seu pensamento à comparação entre as formas, considerava a poesia uma arte da imaginação, isto é, estranha aos sentidos. O olhar interior da poesia seria a prova final da superioridade da pintura, porque esta produziria uma presença superior. Leonardo se ocupava, em seu Trattato della Pintura, da possibilidade mimética das artes, e julgou que a reprodução das formas tinha mais dignidade que a dos nomes, graças à superioridade das obras naturais diante daquelas do engenho humano. A representação da densidade dos corpos teria prioridade em comparação à solidão da forma simplesmente imaginada. Talvez seja esse um dos motivos de que O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques, ao brincar com os instrumentos mágicos da imitação, se depare, em tantas páginas, com o signo solitário do desencontro.
A série Cartografias se inicia com a imagem da solidão de um mapa, em que uma presença repentina se faz pressentir, “como quem deixa cair/ sobre um mapa/ esquecido aberto sobre a mesa/ um pouco de café uma gota de mel/ cinzas de cigarro/ preenchendo/ por descuido/ um qualquer lugar até então/ deserto”. Tal pressentimento, porém, não se converte em presença efetiva: por descuido da solitária, que não consegue carregar consigo o mapa que indicava o lugar do encontro marcado, a série se contenta em encerrar-se com tempo verbal das possibilidades que não se realizaram, um futuro do pretérito tristíssimo:
Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos
No entanto, o mais impressionante ainda é outra coisa. A representação do mundo se constitui como jogo infinito na poesia de Ana. Multiplicam-se as possibilidades imitativas e de experiência, e a formulação semântica transita entre estes mundos. Se, por um lado, o encontro entre os amantes é impossível porque as ruas dos mapas não coincidem com as da vida (“combinamos de nos encontrar/ na esquina das nossas ruas/ que não se cruzam”), por outro, o encontro das formas tangíveis com a imaginação é potencializado pela mimese que se constitui lúdica:
Rasguei um pedaço do mapa
de modo que o Grand Canyon continua
na minha mesa de trabalho
onde o mapa repousa
desde então minha mesa de trabalho
termina subitamente num abismo
A representação do mundo se constitui como jogo infinito na poesia de Ana Martins Marques.
A cartografia não é tanto uma demarcação do espaço como sua retaliação. No mapa, coisas desaparecem (ação essencial à escrita, que apara o matagal da linguagem enquanto nele se move). Jorge Luis Borges fixou o procedimento de tal lâmina em Do rigor da ciência: em um império indeterminado, a arte da cartografia alcançara tal perfeição que os cartógrafos “levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto”. As gerações seguintes o julgaram inútil, e abandonaram a representação do império no deserto, onde “perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas” — ademais, outra imagem do desencontro.
No âmbito da cartografia, como no da imitação em geral, a perfeição coincide com a inutilidade. De tal modo que o mapa perfeito corresponde à ausência de mapas, como se a curva de sua eficiência formasse um círculo tangenciado pelas coisas e pelo nada. Foi essa consciência que fez com que os herdeiros da tradição mimética do renascentismo acreditassem que a arte da imitação consistia em uma retaliação das coisas da natureza (intuição que pode ser encontrada nos poemas Museu e Coleção, de Ana), de tal modo que na Europa, entre os séculos 17 e 19 — uma época que Tzvetan Todorov classificou como comoventemente ingênua, com relação ao problema da mimese —, não raramente se recomendou a imitação imperfeita entre os artistas.
O que se subtrai das coisas para a sua fixação representativa é a sua experiência. Não é à toa que sucedem à Cartografia os poemas reunidos sob o título de Visitas ao lugar comum. Aqui, o procedimento é o inverso, e as expressões automáticas de nosso cotidiano retornam carregadas de lirismo, como o poema feito a partir da ideia de “tirar fotografias”:
Tirar fotografias
e depois devolvê-las
àqueles de quem as tiramos
à mulher fora de foco
em seu vestido violeta
à casa de janelas verdes
às paisagens
tomadas emprestadas
à casca
de cada coisa
aos vários ângulos
da Torre Eiffel
ao cachorro morto
na praia
Esta espécie de retomada da experiência não se configura como nenhum retorno ingênuo. Apenas ao corpo extirpado cabe esse tipo de relação com a linguagem. No mesmo passo em que a representação falha diante da vida, possibilita outro tipo de efetividade, em que palavra, imagem e coisa são niveladas como texto — como na atividade da memória, em que cada palavra que narra o ocorrido o modifica (o Poema de traz para frente autoriza esta comparação). No poema Minas, por exemplo, coincidem como objetos de “escuta” o “tumulto” do mar, “o alarido estridente” dos banhistas, e o “silêncio / elementar” dos metais; já no poema O que eu levo nos bolsos, pequenos objetos (isqueiro, grãos de areia, moedas e um nome anotado) correspondem, em dois dísticos distintos, para aquela que fala, à “minha praia / de bolso” e ao “meu deserto / de bolso”.
O que vem à luz, com a técnica de Ana, é uma das mais bem-acabadas formas, em nossa literatura, do livro como jogo. O livro se abre como um mundo em que podemos penetrar sempre novamente (a repetição é a lei dos jogos), o que o converte em uma pequena pedagogia para os iniciados (já se disse que a faculdade mimética comanda as nossas faculdades superiores). O livro das semelhanças dá início a seu movimento lúdico já em seu primeiro poema, cujos versos constituem “Ideias para um livro”, e segue ao reunir poemas em uma seção intitulada “Livro”. Para que se tenha ideia, alguns dos títulos dos poemas, que indicam também os seus temas, são: Capa, Nome do autor, Título, Dedicatória, Epígrafe, Primeiro poema, Boa ideia para um poema, Último poema, Índice remissivo, Colofão e Contracapa.
O livro de Ana se configura como um médium em que a densidade de relações ocupa o lugar da densidade dos objetos — à parte serem as palavras, em qualquer poesia, palavras-objetos. Ganham dignidade, em tal poética, também as coisas que poderiam ter acontecido. Trata-se aqui de outro tipo de presença, não pressentida por Da Vinci, e que Walter Benjamin chamou um dia de “semelhança extrassensível”. Mas não cabe esperar do livro de Ana a palavra final a propósito do problema das artes miméticas e das artes imaginativas. É mais interessante ver de que modo esse único livro consegue recolocar uma das mais antigas questões referentes à poesia. O poema que dá nome ao livro dá testemunho da força confusa entre imitação e imaginação em O livro das semelhanças, como nestes versos sutilmente lúdicos:
O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele esquenta de dentro para fora