O mundo na cidade

"Violeta", narrativa de Alberto Martins, passeia por Santos com ficção, memória, fatos históricos e poesia
Alberto Martins, autor de “Violeta”
01/09/2023

Seu bairro é um mundo. Sua rua. Nem é preciso repetir a frase do Tolstói. O entendimento de que o local é o universal está mais do que bem colocado por muitos escritores, na prática. O que desejo chamar atenção não é para esta espécie de lei geral da literatura (tipo lei da gravidade), mas para a maneira que se manifesta. Melhor: para a potência que esta característica guarda em cada possível autor de textos, ou seja, cada um dos mais de oito bilhões de humanos. Daí que tal propriedade, nem geral nem imperativa, é uma das que dão à literatura a chance de ser infinita enquanto dure. Enquanto duremos.

Violeta, de Alberto Martins, me provocou a ensaiar aqui essa ideia.

O novo livro se juntou aos irmãos e primos, com seus volumes pequenos e importante presença na minha estante, os romances A história dos ossos (2005) e Lívia e o cemitério africano (2013), além dos poemas de Cais (2002), todos publicados pela Editora 34, onde Alberto Martins trabalha como editor. Todos que contêm gravuras de autoria do escritor, também artista plástico. Todos que partem do mesmo lugar, uma cidade chamada Santos.

Por acaso, assim como o autor, nasci e cresci ali.

Ele é pouco mais velho do que eu, mas os lugares que cita e descreve, as ruas que fazem a geografia dessa parte importante de sua obra, reconheço em minhas próprias lembranças. Ruas que caminhei. Locais que estão no que escuto de meus pais e ouvi de meu avô. Pergunto no espelho: essa coincidência é necessária para a fruição do romance? Se o lugar fosse Pelotas, Dresden, Seul, Darwin ou Malé, em vez de Santos, acharia o livro tão interessante? Creio fortemente que sim. Porque é mais do que a rua, é mais do que a cidade. É o que se vive nela, pela vida do texto. Nele, eu caminharia por Pelotas, Dresden, Seul, Darwin ou Malé.

“Os verdadeiros lugares não existem no mapa, só existem na nossa memória. Esse é o verdadeiro lugar da literatura, a memória”, me disse Milton Hatoum, dez anos atrás, numa gravação em vídeo.

Montagem do passado
O principal narrador-personagem de Violeta busca encontrar o pai, não fisicamente, mas em “papéis” dele, como está posto na primeira linha — e não deixa claro, penso que de propósito, se o conteúdo dos “rabiscos” eram uma espécie de diário. Essa montagem do passado conta também com depoimentos de amigos do pai, além das pesquisas nos arquivos do jornal A Tribuna, centenário. Escrevi principal, mas seria o único?

Outro narrador-personagem é o próprio pai, a partir dos agitados dias de 1946 em torno de um dos maiores e mais importantes portos do mundo. Getúlio Vargas não era mais o ditador, mas os vícios do autoritarismo não calam do dia pra noite. Santos era uma cidade de trabalhadores engajados. E nesse ano houve uma greve dos portuários contra o governo despótico de Franco, na Espanha: ninguém descarregava em Santos o que vinha de lá. A polícia marítima, cuja truculência eu já conhecia, pelo que meu avô me contou algumas vezes, está bem apresentada no romance.

Não diria que seja um romance histórico, mas tem um traço, sim. Alberto Martins deixa o leitor avisado em nota que as notícias de A Tribuna, em um dos capítulos, são reproduções fidedignas. Pesquisas que o personagem fez, buscando se colocar pelos acontecimentos daquele tempo, achar algo daquele clima combativo e de repressão oficial de 1946… não só. Os fatos estão conectados a 1964, à repressão do governo golpista, que se aprimorou na violência e ancorou no estuário santista um navio-prisão chamado Raul Soares, para torturar quem se opunha ou potencialmente poderia se opor à nova ditadura.

Quem já fez pesquisa em arquivo de jornais vai se identificar com a narrativa desse momento do livro, as descobertas e conexões que vamos fazendo…

Violeta tem ficção, tem memória, tem fatos históricos. E tem poesia. O título remete a dias obviamente empolgantes que o pai do personagem viveu, perto do porto e no coração do teatro. Alberto Martins não fala de Plínio Marcos nem de Pagu neste livro, mas, lendo, sinto que pairam, na Santos dos anos 1940, 1950, 1960.

Tartaruga marinha
Falava de poesia… “Por alguma razão, a água sempre foi cinza na beira da praia e verde nos canais” é como começa um capítulo em que o autor, com muita liberdade, faz que sai da cidade onde tudo se passa e acompanha uma tartaruga marinha Atlântico afora, dá mergulhos fabulosos, surfa nos ventos sobre o mar, beija a África, a Europa, a América do Norte e retorna à beira de um canal de Santos, onde estavam “Violeta e meu pai”, caminhando de volta ao centro da cidade, de mãos dadas. Quando topar com movimentos assim, em outros livros, não vou mais chamar de nenhum bolinho francês, prefiro dizer que é um passeio de tartaruga marinha.

[…] lá ela namora os corais, os ouriços e outros seres de carapaça que serão, quiçá, seus parentes, mas não se demora junto deles e prefere voltar à superfície em busca de pólipos e anêmonas, se tiver sorte, um manjar de caravelas, ou então simplesmente planar no meio de tantas espécies e vê-las passar, que se para alguma coisa serve durar duzentos, trezentos anos, é para ter no corpo uma outra escala de tempo.

Esse trecho não representa o livro todo. Em certas oficinas de escrita talvez algum professor, burro como eu mesmo posso bem ser, diria que era melhor o autor repensar, porque o capítulo escapa demais da narrativa principal, objetividade, blá-blá-nhe-nhem. Se essa liberdade não é a própria essência da literatura, eu realmente não sei nada a respeito disso.

Fazendo reportagem na Grécia, em 2004, conheci um plantador de pistache que tinha sido marinheiro (na Grécia, todo mundo já foi marinheiro) e ele se lembrava de Santos. Pelo olharzinho maroto, supus que se estivesse revivendo alguns lugares que também estão no livro, a “Boca”, a “Zona”, os bares do Centro da cidade, pegado ao porto, onde a noite brilhava mais que os dias mais quentes — e talvez por isso tão pouca roupa se usava por ali. Aquele catador de pistache é Santos no casco da tartaruga, nadando água salgada sem fronteiras.

Isto não é uma resenha, é um pequeno e pobre ensaio que parte da leitura do livro. O que diz sobre um livro é ele próprio: nem mesmo seus autores. Fora isso, são leituras.

Santos de Martins, Buenos Aires de Borges, Brasília de Hatoum, a Nova York de Phillip Roth ou de Woody Allen, Varjota de Maílson Furtado. O leitor de Porto Velho pode encontrar em Violeta essa sensação de lida com a memória, de busca da própria história, de transformação de vivências em poesia e denúncia, tudo ao mesmo tempo. Cada lugar do mundo tem muito a dizer a cada cantinho do mundo, na cabeça de cada pessoa. Quando bem contado e lido com generosidade.

Violeta é um livro riquíssimo, com sua mescla de abordagens. Autobiográfico? Autoficção? Talvez em grande medida seja. Há coincidências entre o narrador e o autor. Já não importa, posto que transformado, posto que literário. É o terceiro livro de uma série, que não precisa ser lida na ordem de lançamento. Mas instiga a isso: vou reler os outros dois, antes de reler Violeta. E Cais para temperar.

Violeta
Alberto Martins
Editora 34
144 págs.
Alberto Martins
Homem dos livros e das artes, Alberto Martins nasceu em 1958, é artista plástico e trabalha como editor na Editora 34. Como autor, além dos romances A história dos ossos (2005) e Lívia e o cemitério africano (2013), tem lançados os volumes de poesia Cais (2002) e Em trânsito (2010).
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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