O mundo ainda é dickensiano

Romances e personagens do escritor inglês Charles Dickens capturaram o complexo sentido do século 19 e ainda permanecem muito atuais
Ilustração: Dê Almeida
20/09/2020

1.
No século 21, para ser um artista, não bastam o talento, a capacidade intelectual e a determinação inabalável para se manter produtivo numa era de tantas distrações. O artista, acima de tudo, precisa saber se posicionar politicamente. Essa precondição faz com que haja uma confusão sobre como endereçar a mensagem correta. De um lado, sobram bem-intencionados que advogam as irresistíveis causas perdidas, mesmo sem ter a capacidade adequada para esse tipo de engenho criativo; de outro, existem aqueles que, sim, têm capital intelectual para esse tipo de concepção artística, porém sem ter algo de relevante a dizer. Em síntese, são poucos os que conseguem reunir dois elementos, que, à falta de melhor definição, podem ser caracterizados como forma e conteúdo.

A trama engrossa à medida que se nota a escalada das tensões sociais no Brasil e no mundo. Enquanto cientistas políticos e demais especialistas lutam para encontrar sentido de um período marcado pela urgência de uma pandemia sem precedentes nos últimos anos, de repente, parece que os artistas jamais foram tão necessários como agora. Mas será que a cultura oferece uma resposta? Esqueçam, por ora, as distopias. Quando se coloca reparo na obra de Charles Dickens (1812-1870), seus romances e sua galeria de personagens parecem ter sido criados sob medida para as circunstâncias desta época.

E o detalhe inescapável é que, de acordo com o recorte crítico do momento, não era para ser assim.

Afinal, se existe um autor que representa o cânone da produção literária, podendo até mesmo ser questionado pelas teorias decoloniais[1], este é Charles Dickens. Nascido em Portsmouth, na Inglaterra, em 1812, esse escritor conseguiu de forma precisa capturar o sentido de uma época tão complexa e singular como o século 19. E é exatamente por isso que o escritor se estabeleceu como uma referência para além do seu tempo. Dito de outro modo, é mesmo possível afirmar que Dickens, a partir de sua ficção, soube estabelecer a moldura a partir da qual todos nós imaginamos o drama da desigualdade; da injustiça; da insensibilidade; e do valor da manutenção do caráter, não importando a realidade que se impõe.

A abordagem realista de sua literatura, resta pouca dúvida, está conectada ao fato de que Dickens adotou o jornalismo como profissão. Como consequência disso, o leitor tem a impressão de acompanhar a interpretação dos acontecimentos históricos de grande relevo, como a Revolução Francesa (Um conto de duas cidades), ou do impacto da Revolução Industrial (Tempos difíceis), ou, ainda, das consequências da ganância por parte daqueles que só pensam nos bens materiais (Uma canção de Natal).

É inegável que toda essa produção tenha força quando se observa esse passado grandioso. Só que é ainda mais notável que essa obra tenha apelo para os nossos tempos conturbados. É a própria obra de Dickens que explica como isso é possível.

Na obra de Dickens, a questão política ganha força na justa medida em que ela não se confunde por uma questão partidária.

2.
Um conto de duas cidades é um livro que tem uma das aberturas mais comentadas da literatura universal (sim, de novo, o cânone). Ali, Dickens parece fazer um resumo de uma época conturbada, mas, porque sua escrita prevalece como um farol de brilho intenso, a sensação é de que o leitor está diante de uma síntese do nosso tempo quando entra em contato com o fragmento que reproduzo a seguir:

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos para o paraíso, íamos todos direto para o sentido contrário.

Não, não se trata de um livro que se notabiliza apenas em razão de sua escrita sensível. Mas é exatamente graças a essa maneira de se aproximar daqueles eventos que a conquista da audiência está garantida. E isso se prova genuíno tão logo os personagens vão se revelando enquanto a narrativa se desenvolve. É o caso de Madame Defarge, por exemplo, que age sem qualquer hesitação ou misericórdia enquanto assiste ao jogo de decapitações do terror revolucionário francês. O autor mostra a anatomia daquele modelo processual: aos crimes cometidos pela aristocracia, é preciso estabelecer o julgamento mais sumário, sem qualquer nuance aos que são considerados culpados e, principalmente, impuros.

Nesse sentido, vale a pena ressaltar outra cena icônica do romance, quando o autor demonstra toda a sua capacidade de revelar a força irresistível da Revolução que se avizinha: os barris de vinho que são derramados no chão, fazendo com que a multidão passe a disputar, palmo a palmo, a bebida que estava agora maculada, mas que ninguém mesmo se importava porque o sofrimento era muito e a fome e a sede fizeram com o que o povo agisse apenas por instinto, sem qualquer reminiscência de humanidade ou de equilíbrio.

Pode-se dizer, também, que este é o diagnóstico da Revolução Francesa aos olhos de Dickens, que apresenta a dualidade desse evento: sim, foi o melhor dos tempos, porque a imaginação, enfim, chegou ao poder, com seu ideário de liberdade, igualdade e fraternidade, mas, é preciso reiterar, essa revolução provocou o que há de mais primitivo a partir dos expurgos e das mortes que se justificavam conforme a vontade de poder se mostrava insaciável. Em tempo: Dickens, no romance, não faz alusão a qualquer um dos protagonistas históricos do período revolucionário, mas é flagrante a forma como o narrador rejeita a sedução da guilhotina, solução encontrada para alimentar os partidários do Terror.

Em meio a passagens marcantes a propósito da vilania de alguns de seus antagonistas e a uma leitura cética acerca da vocação do poder de quem assume a linha de frente do processo revolucionário, Dickens ainda encontra espaço para uma história de amor, que, sim, é um sinal de como a esperança prevalece e de como o terror pode ser suplantado pelo afeto.

Numa época em que o cinismo é a marca registrada de certa literatura afetada pelo hiper-realismo, haverá certamente quem considere Um conto de duas cidades uma obra datada, ou, mais exatamente, cafona. Nenhuma surpresa aqui. Se até mesmo para recomendar romances clássicos a elite intelectual faz o rebaixamento dos clássicos[2], imagine só reconhecer o valor de um romance tão popular — e, ainda assim, tão original. Seria o fim.

3.
Na obra de Dickens, a questão política ganha força na justa medida em que ela não se confunde com uma questão partidária. Para tempos embrutecidos, isso pode significar uma concessão imperdoável — afinal, onde já se viu compactuar com aqueles que não estão alinhados com os interesses corretos? A leitura da obra de Dickens mostra, no entanto, que o lado correto está associado a um determinado grupo, dos desvalidos, dos desassistidos, daqueles que foram desenganados desde sempre. Uma palavra adequada para expressar o viés do escritor seria a seguinte: caridade. Diferente do que se possa supor, no entanto, isso se apresenta não com sentimentalismo pueril; em vez disso, Dickens oferece uma “denúncia” em forma de romance em Tempos difíceis.

É outro romance cuja abertura poderia ser transportada para sintetizar os dias que correm, sem qualquer prejuízo. Senão, vejamos:

Agora, tudo o que eu quero são fatos. Ensine a esses garotos e garotas nada além dos fatos. Somente os fatos são necessários para a vida. Cultive nada além disso, erradique todo o resto. Você só pode formar a mente de animais pensantes com base em fatos: nada mais lhes servirá de nada. Este é o princípio sobre o qual crio meus próprios filhos, e este é o princípio sobre o qual crio essas crianças. Atenha-se aos fatos, senhor[3].

O responsável por esse discurso é ninguém menos que Thomas Gradgrind, outro dos personagens que integra a inestimável galeria de figuras arquetípicas de Charles Dickens. Gradgrind é uma legião. Entre o passado e o futuro, é possível retomar exemplos que se utilizam dessa linguagem que se pretende objetiva, mas que, no fundo, é somente a maçã envenenada do desprezo e da ausência de preocupação com o outro. Gradgrind é convincente porque, de uma só vez, é uma caricatura que simboliza a mais perfeita tradução daqueles que, com extrema presunção, se imaginam atentos aos únicos acontecimentos (fatos) que realmente importam na vida. Só que o valor desses fatos é transitório.

A escola de Gradgrind representa, na fictícia cidade de Coketown, um modelo do utilitarismo em tempos de Revolução Industrial, época em que os números e a precisão seriam mais determinantes do que qualquer outro traço de cuidado ou mesmo de humanidade. O romance de Dickens é forte porque mostra as consequências inesperadas desse tipo de formação, e a dureza dos atos desse vilão tem a sua reação não apenas na trajetória de Gradgrind, mas nas vidas de Louisa, Tom e de Sissy Jupe.

Embora a crítica à instituição escolar seja traço marcante do romance, é preciso lembrar, ainda, que o coração está com os sentimentos da classe trabalhadora, que vive em condições de extrema penúria enquanto os negócios prosperam. Dickens se posiciona exatamente junto ao elo mais fraco, apontando para os problemas desse desequilíbrio. E o dado mais pertinente, aqui, é o de que uma solução para esse impasse repousa justamente na educação das crianças — afinal, se houver outro caminho, pode ser que as decisões sejam tomadas não apenas por interesse material, mas de acordo com valores mais elevados.

Em um ensaio sobre a obra de Charles Dickens, a historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb assinala que o escritor George Orwell desconfiava que Dickens conhecia muito pouco dos pobres, ressaltando que os personagens dickensianos eram tão somente retratados como servos cômicos, simbolizando de modo genérico a classe operária inglesa. A provocação de Orwell só não atinge o alvo com perfeição porque as soluções apresentadas por Dickens nem sempre são redentoras. Tempos difíceis é um doloroso exemplo dessa condição para os personagens envolvidos na trama.

A existência pode ter contornos dickensianos — sobretudo nos momentos de grande dificuldade.

4.
Foi o próprio Dickens quem escreveu, no prefácio de David Copperfield, que este livro é o seu filho predileto. Romance de formação, a obra recupera de forma original a jornada cheia de reviravoltas do personagem-título, começando do seu nascimento, passando pelo relacionamento com a mãe, da formatação de sua visão de mundo, do turbilhão de sentimentos que é a juventude, do desespero de se ver sem perspectivas e com quase tudo acabado. Demasiadamente humano, David Copperfield é Charles Dickens na sua maior forma, ou melhor, num gigantesco romance — portanto, não se vai dizer aqui que é uma síntese de sua obra. Em vez disso, é possível afirmar que é uma espécie de ajuste de contas do autor com algumas de suas experiências pessoais. A respeito disso, em uma das biografias mais recentes do escritor inglês, o autor Michael Slater coloca em um dos capítulos o sugestivo título The Copperfield Days.

Para além dessas lembranças, é interessante observar o quanto David Copperfield, o personagem, se confunde com Charles Dickens, o autor. Não só pela forma de conceber a vida, com atenção e cuidado para aqueles cujos sentimentos falam mais alto, mas também o entendimento dos livros como um refúgio para as desventuras em série da má-educação. Aqui, além da menção, entre outras obras, a Robinson Crusoé, vale a pena citar o estratagema que garante a proteção ao jovem Copperfield quando este foi despachado para o colégio interno: contar as histórias para seus colegas noite adentro, numa alusão a Mil e uma noites. Nenhuma surpresa aqui: existe certa tendência de os grandes romances sempre renderem homenagem à literatura, de Dom Quixote a Madame Bovary. O detalhe que merece atenção aqui é o fato de Copperfield se tornar escritor.

Como em outros romances de Charles Dickens, os personagens são divertidos e amargos; cheios de vida e resignados à sua própria condição; arrogantes e virtuosos, de modo que não é absurdo conceber toda essa invenção como um espelho da condição humana e da vida em sociedade. Nesse sentido, o autor pode não ser um historiador da vida privada, mas criou, com seus livros, todo um ambiente que é propício para que a descoberta da intimidade fosse possível. Uma intimidade que também passa a ser de seus leitores, que se identificam com o cenário e com as pessoas que protagonizam suas histórias, a ponto de imaginarmos, sim, que a existência pode ter contornos dickensianos — sobretudo nos momentos de grande dificuldade.

Os sofrimentos do protagonista ao longo de seus anos de formação, no entanto, não o impedem de agir de forma elevada. Ou por outra, ele reconhece a importância daqueles que estão ao seu redor, como é o caso de Peggotty e sua família, que têm devoção e carinho absolutos por Copperfield. É um tipo de relação que não se mede apenas pelos vínculos profissionais, mas é a marca de afeto que transcende até mesmo a relação de classe — o que, nesse caso, seria percebido como condescendente numa leitura contemporânea, encontra nessa narrativa uma verdade que se torna legítima a partir da criação artística de Dickens.

Se em David Copperfield a defesa das virtudes se torna evidente graças à extensão da história, em Uma canção de Natal[4] Dickens apresenta a força de sua escrita também na forma breve. Apesar da estrutura simples, a obra pode ser lida como um exercício de reflexão forte o bastante para quebrantar o mais rígido dos corações. O cinema norte-americano[5], nas últimas décadas, adaptou este texto a partir da chave do humor ou da paródia. As possibilidades de um clássico são tamanhas, que o texto permite essa recriação. Só que o acerto de contas do Sr. Scrooge com os seus fantasmas é o exemplo preciso da visita cruel do tempo em relação ao que todos nós fizemos — e também o que deixamos de fazer.

Mais do que um clássico da literatura, cujas histórias um estudioso pode se dedicar para fins de investigação teórica, Charles Dickens, morto em 9 de junho de 1870, é um autor decisivo para o nosso tempo. Ao enfrentar dilemas que são comuns a todas as épocas, fica claro por que as obras-primas não envelhecem.

 

NOTAS

[1] Para a crítica à obra de Dickens de acordo com essa leitura, ver The decolonization reader, editado por James D. Le Sueur (2003).

[2] Em entrevista, a atriz e escritora Fernanda Torres afirmou que Guerra e paz, de Tolstói, parece difícil, mas é uma novela das 9. A declaração foi concedida para uma reportagem da Folha de S.Paulo a propósito dos livros indicados para o período de isolamento social. O link completo está disponível a seguir: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/guerra-e-paz-parece-dificil-mas-e-uma-novela-das-nove-diz-fernanda-torres.shtml

[3] Tradução livre de Hard times, publicado pela Penguin Books em 2005, com introdução e notas de Kate Flint.

[4] Embora com outras versões disponíveis em português, utilizo aqui a última tradução, publicada pela editora Companhia das Letras.

[5] Entre os filmes, vale a pena citar: Os fantasmas contra-atacam, estrelado por Bill Murray e dirigido por Richard Donner; Os fantasmas de Scrooge, estrelado por Jim Carrey e dirigido por Robert Zemeckis; e a comédia romântica Minhas adoráveis ex-namoradas, filme estrelado por Mathew McConaughey e dirigido por Mark Waters.

Charles Dickens
Nasceu em Portsmouth, na Inglaterra, em 1812. É autor dos romances “Um conto de duas cidades” (1859), “Tempos difíceis” (1854) e “David Copperfield” (1850), entre outros. Morreu em junho de 1870.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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