O mar é muito presente na fabulação brasileira, “O mar; Quando quebra na praia; É bonito”, na canção de Dorival Caymmi, “Eu estava na beira e não via; Que o mar prometia; Morrer, deslindar”, na inconfundível voz de Lia de Itamaracá. “E do mar sobre as escumas; E do céu sobre as brumas; Um ao outro dando a mão”, na poesia de Castro Alves. Já no romance Água de maré, de tatiana nascimento, o mar invade abraços e tristezas, as cumplicidades e os desentendimentos, e ainda pode ser extremamente belo ao cair da tarde da cidade, que não é para todos.
O livro abre em epígrafe de Dionne Brand, escritora de Trinidad, ilha caribenha perto da Venezuela. E vemos uma mulher sentada na praia, “ou então teria te afogado dentro do mar, ou você ouviria aquele nome”, fragmento do poema Hard against the soul (duro contra a alma). Adentramos, portanto, nos movimentos das marés pelo virar dos capítulos compostos em formato de contagem regressiva, do onze ao zero, no encher e esvaziar das duas protagonistas, irmãs de sangue e de sonhos, Antonia e Nereci, entramos na casa delas, parede com retratos da avó, da filha e das netas, conhecemos a sua família e a alegria do cheiro novo do cimento, as reformas que nunca são suficientes, mas que causam alergia em mesma medida que abre o sorriso da velha preta, que, por um instante, não recorda mais ter sido empregada doméstica, diarista, babá, costureira, isto é, de pertencer ao Brasil que acorda cedo para preparar o café e levar o conforto para as outras pessoas, de outros endereços e condições sociais. tatiana apresenta com singular produção literária a mimese de uma Salvador ladeada por águas calmas e revoltas, onde o mar toca as calçadas, as ruas e os bairros, desembocando em vidas repletas de orixalidade e de esperanças, por vezes cruas e viscerais.
É água do mar
A estrutura narrativa de Água de maré é regida pelos movimentos das águas e escrita em letras minúsculas, fincada na oralidade e rejeitando as convenções formais, feito as marés, que vem por baixo, pelo fundo, para depois emergir, instaurando uma espécie de horizontalidade hierárquica de personagens e de arcos dramáticos, algo que é habitual na poesia brasileira contemporânea, em que os nomes próprios podem ser nivelados com o das coisas. Os adjetivos, substantivos e verbos têm a mesma importância. E inclui uma linguagem híbrida, com características de teatro, de cartas, de roteiro, com ações e monólogos, que ocorrem em cortes abruptos, mas que não deixam o leitor à deriva. Em alguns momentos o narrador não está presente, mesmo onisciente, remetendo a uma vontade não alcançada. Fastio. O uso de pronomes neutros e não binários é outro fator muito interessante linguisticamente e, claro, representativamente.
Tudo isso dentro de uma verossimilhança voraz, muito bem posta, percorrendo uma linha semântica e metafórica, ou seja, a periferia e a ancestralidade na obra de tatiana habitam as diversas brasilidades atuais e as suas heranças históricas. A linguagem segue o mar para ficcionalizar a história de duas irmãs, que contam do bolo de carimã, do emprego na lojinha de R$ 1,99, das singelas alegrias enquanto crianças, na vaga para trabalhar no shopping do Imbuí, do curso de eletrônica, do pastor da igreja, na orgulhosa ascensão financeira pelo crime e na vida de muitas vontades suprimidas pela realidade que não descansa, dicotomias que insistem em revelar o pior e o melhor delas.
mas se eu passasse mais uma tarde ali o cara acabava era sem dente nenhum. eu tinha essa raiva constante dentro do peito, que nem fosse gamela de azeite no foto, todo mundo via. e todo mundo pressentia o que ia acontecer, eu também. nossa vó rezava, pedia ajuda pra entidade, e era sempre um doce comigo. rígida, mas um doce: pra gente aprender a ser vendo ela sendo.
É maré cheia
Antonia e Nereci, negras e lésbicas, crescem em uma Salvador sensorial, excludente e distante da elite. Vivem a ausência paterna, a presença inconstante da mãe e a relação complexa com a avó, barreiras de vivências distintas, mas conectadas por afetos enraizados na ancestralidade. A mais velha, Antonia, é concebida intencionalmente pelo arquétipo de Exu, aquele que vem primeiro, de tempo e movimentação, a mais nova, Nereci, por Odoyá, na força das águas, representadas pela própria maré, isto é, em cosmo alvoroçado e calmo, expansivo e letárgico. Em Corpo lúcido, obra da poeta Flávia Santos, “incógnitos ficarão; o mar; a estrada; a fadiga; o céu azul”, trecho achegado para as irmãs de Água de maré, em euforia e desalento, em destino de incertezas e nas indisponibilidades brutais. As saídas, quando vistas, estão com as portas lacradas. Nem todo caminho permite escoar a vida pela vontade, esforço próprio ou pela urgência rentável. Quando a maré baixa e as águas estão tranquilas, de poucas nuvens e de dia claro, a fuga rasga, remenda e retrai. As duas, então, naufragam de múltiplas forças sociais e psíquicas. A encruzilhada é íngreme.
faz tempo que não dormiam as duas naquela casa. uma película de silêncio e escuridão cobre tudo. a marisca trança as pernas e antonia quando ela entra. passando logo atrás de nereci pela cozinha, vê um prato coberto no fogão. enquanto a irmã entra pro banheiro, antonia levanta o pano de prato, vê a comida bem arrumadinha, dá um pequeno sorriso lembrando da avó. cheira, mas não come. toma água duma moringa sobre a geladeira.
O romance é vencedor da primeira edição do Prêmio Pallas de Literatura. É postulado de maneira fragmentada, norteado por memórias e frequentado por muita musicalidade estética. Há menções diretas, como ao Racionais MC’s, Djavan, e à Luedji Luna. A imagem da capa é de autoria de Emerson Rocha, potente artista visual, reconhecido pelo trabalho harmônico com as cores azul, branco e dourado. tatiana explora violências nacionais utilizando o espectro de uma cidade reminiscente. Fabula o imaginário popular sobre o mar em ousada narrativa, que é concisa e breve, de diferentes sintetizações e abordagens. Encara o racismo, o sistema prisional, as injustiças sociais e a homofobia com estrutura literária distante dos padrões costumeiros. É uma obra brusca, plástica e perspicaz. Os gêneros se mesclam rapidamente, em teatro, prosa, e, em alguns momentos, em poesia concreta e conto. No entanto, Água de maré assume o risco de inundar abruptamente, de uma só vez, e a correnteza verter para uma única direção. Afinal, dentro do mar tem rio.