O motivo da violência

Resenha de “Literatura, violência e melancolia”, de Jaime Ginzburg
Jaime Ginzburg, autor de “Literatura, violência e melancolia”
01/08/2013

Logo no começo de É isto um homem?, Primo Levi é informado que de onde ele está só é possível sair por um lugar: a chaminé.

A violência contida naquelas poucas palavras revela um talento indiscutível da humanidade, sua maior propensão: provocar sofrimentos. Em todos os sentidos, em todos os momentos da História, em todos os lugares tivemos violência, o homem impingindo o mal a outro homem.

Talento difundido por todos os campos da atuação humana, da agressão ao meio ambiente à perseguição religiosa; do holocausto à escravidão; da pedofilia às artes; e em qualquer outro meio de expressão: uma partida de futebol, uma breve passagem de olhos pela TV Câmara, TV Senado. Somos violentos. A quantidade de lixo que produzimos é comprovação de nossa essência.

Também, pacifista leitor, vale a pena parar um pouco em frente a sua casa e reparar na quantidade de mendigos que viram e reviram as latas de nossos restos em busca de alimento. Eles são frutos da violência de nossos governantes, essa impune horda maléfica.

Mas falemos de violência na literatura. O professor Jaime Ginzburg escreveu Literatura, violência e melancolia com o propósito de discutir a violência presente na literatura. Para isso, oferece dois caminhos: pelo primeiro, espera que circulem acadêmicos e suas produções acerca do tema; acredita-se que para isso utilizem conhecimentos da teoria literária, filosofia, ciências sociais, psicanálise, política e história. Quer dizer, usar as mesmas ferramentas do mestre. Pela outra via, sugere um exame das relações entre passado e futuro e a conseqüente presença, cada vez mais diversificada, da violência na sociedade atual.

Representações
Ginzburg argumenta com Hamlet, de William Shakespeare; Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; São Bernardo, de Graciliano Ramos; contos de Primo Levi, entre outros, citando seus diferentes motivadores de violência.

Os títulos arrolados pelo autor servem como convite ao leitor, convite a pensar sobre as formas com que a morte é apresentada na literatura. Por mais que tente nos fazer entender sobre a necessidade desse ato extremo — e para isso utiliza Freud —, a compreensão da violência passa muito além de qualquer teoria.

Em Lavoura arcaica, um pai mata a filha: esta teria uma relação incestuosa com o irmão. O pai representa a lei. Ele julga, ele condena. Não há defesa. Defesa da honra é a justificativa para a violência.

Cláudio é o tio de Hamlet. Mata o irmão para ficar com o trono. Aqui, a ambição é que move o criminoso.

Grande sertão: veredas apresenta outro tipo de violência, sem relação com os motivos citados anteriormente. Trata-se de uma violência que nasce com a condição humana, a condição humana do sertão. Conforme Riobaldo:

Que quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar, querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa.

Fruto da melancolia
A violência sobre a qual o autor se debruça em Literatura, violência e melancolia resume-se à agressão física de um ser humano por outro. Ginzburg credita esse ato ao conceito de melancolia. Bem, aqui o assunto merece conhecedor dos meandros da mente e não é, nem de longe, o caso deste aprendiz que ora é merecedor de sua atenção. Essa confissão, no entanto, não implica concordância.

Seria a melancolia o fator desencadeador da violência nazista? Não creio. Mas tentemos outra: quem sabe a melancolia justifique o apartheid na África do Sul. Ou então mais uma: partiriam dessa mesma arma as balas que mataram Martin Luther King e John F. Kennedy? Outra: estaria a melancolia ao volante do carro que arrastou o garoto João Hélio, no Rio de Janeiro?

Foi a melancolia aliada ao medo que, em 1940, levou Walter Benjamin ao suicídio no dia 27 de setembro, em Portbou, na Catalunia, assim que percebeu ser impossível atravessar a fronteira franco-espanhola. A vida de Benjamin pode ser apresentada como expoente do fracasso, dor e sofrimento. Ao lermos sua obra, encontramos vários exemplos de perda. Seu caso serve como exemplo da violência fruto da melancolia. Cabe lembrar que não é um exemplo extraído de páginas literárias. Violência não permite explicações, justificativas sofisticadas. Violência é o homem.

Pode a literatura?
Ao final, Ginzburg pergunta: “Pode a literatura fazer alguma coisa contra a violência?”. E responde:

Este livro defende que sim. Enfaticamente, na verdade. A convivência com a literatura permite criar um repertório de elementos — imagens, idéias, posições, relatos, exemplos — que interessa para a constituição de orientações éticas individuais e coletivas. Esse repertório, em sua variedade, contribui para um aberto e diversificado debate. A qualidade desse debate é única, porque sua matéria são textos polissêmicos, abertos, cujas possibilidades de interpretação são renovadas constantemente.

A qualidade do trabalho de Ginzburg se evidencia ao provocar o debate. Junte-se a ela o caráter didático da obra e a curiosidade que desperta no leitor no sentido de reler as obras citadas com o intuito de comparar suas conclusões às do autor. Não é pouco, convenhamos. Mas também não é o ideal.

Este aprendiz, apesar dos aspectos citados acima, discorda quando o autor afirma que literatura pode fazer alguma coisa contra a violência. Qual violência? A do dia-a-dia? A que nasce com o homem, e, infelizmente, não morre com ele? Não acredito. Nem mesmo um exército de Mandelas seria capaz.

Talvez a violência na literatura? Espero que a intenção não seja esta. Imagine, paciente leitor, É isto um homem? sem violência. O que escreveria Primo Levi? E o que restaria da Ilíada se Homero fosse obrigado a narrar sem descrever cenas onde cabeças são arrancas, barrigas são abertas? A violência contida na Ilíada continuará atravessando séculos, inspirando, entre outros, nossos locutores esportivos. Pensou Galvão Bueno? Não vale, esse é hors concours. Gargântua, de Rabelais, sem os conhecimentos médicos do autor a serviço da violência, teria chegado aos nossos dias? Chegado com a mesma força, para não dizer violência narrativa, descritiva?

Não, não acredito em poder outro que não o da violência capaz de abrandar a violência. Um livro pode e mais uma vez elogio o trabalho de Ginzburg incrementar o debate, nada além.

Mais importante é o uso da violência, da melancolia pelas artes de modo geral e pela literatura no caso em questão.

Louis Aragon, em seu poema Front rouge, sugere o assassinato de policiais:

Pliez les réverbères comme des fétus de pailles
Faites valser les kiosques les bancs les fontaines Wallace
Descendez les flics
Camarades
descendez les flics
Plus loin plus loin vers l’ouest où dorment
les enfants riches et les putains de première classe
Dépasse la Madeleine Prolétariat
Que ta fureur balaye l’Élysée
Tu as bien droit au Bois de Boulogne en semaine
Un jour tu feras sauter l’Arc de Triomphe

Outro exemplo de uso da violência a serviço da grande literatura você encontrará em As flores do mal, de Charles Baudelaire. Vá ao poema O vinho do assassino:

ma femme est morte, je suis libre!
Je puis boire tout mon soûl.
Lorsque je rentrai sans un sou
Ses cris me déchiraient la fibre.
[…] /Je l’ai jetée au fond d’un puits,
Et j’ai même poussé sur elle
Tous les pavés de la margelle. […]
Ecraser ma tête coupable,

A violência aproveitada por um escritor talentoso, sem ser gratuita, será plenamente justificada e terá boa acolhida. Trata-se da mesma violência aproveitada por Francis Bacon em seus quadros, a mesma violência utilizada por seja lá quem for que escreveu a Bíblia, Bíblias… E muito bem aproveitada sobretudo pela igreja católica, que sobrevive graças ao eterno combate entre o bem e o mal.

Tudo regiamente pago, bien sûr!

Literatura, violência e melancolia
Jaime Ginzburg
Autores Associados
128 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho