Epígrafes são as inscrições que encontramos nos livros logo assim que começam. São coisa aparentemente pequena, um extratexto, diriam, mas entregam, não só um posicionamento quanto a poética ou linha política e estética a que a escritora ou o escritor se alinham, como também o clima, o tom daquilo que está por vir. Tipo a música que alguém liga preparando o ambiente. As epígrafes, portanto, são inscrições sobre o texto e que operam além dele. Vejamos a epígrafe que abre Sal, segundo livro de poemas de Mar Becker: “Alguém entrou na memória branca”, de um verso do poeta espanhol Antonio Gamoneda. A epígrafe nos submerge numa espécie de neblina — uma neblina da memória — uma memória que é breu branco sem imagens, em que alguém entra para, talvez, resgatar alguma forma.
Nesse sentido, no posfácio assinado pelo jornalista e escritor José Francisco Botelho, é possível destacar um parágrafo que serve como linha de leitura para a obra de Mar Becker e, logo, de seu Sal: “A poeta Mar Becker vem criando seu mundo há dois livros: primeiro, em A mulher submersa, ela nos franqueou a entrada a este universo onde, fantasticamente, não há diferença entre lírico e épico; agora, em Sal, permite que nos embrenhemos mais profundamente em seus meandros, não apenas prosseguindo a exploração de seus temas e obsessões, como abrindo novas e insuspeitas veredas”. Antes disso, Botelho propõe ainda uma troca no conhecido mito religioso de nossa cultura: “se imaginássemos uma Eva nascida não do osso adâmico, mas do barro universal, uma Eva encarregada de olhar as coisas e os seres pela primeira vez, com olhos de vaticínio, atribuindo a cada escritura seu verdadeiro nome? Que nomes, que palavras seriam essas? Parece-me que o resultado dessa irrecuperável nomenclatura universal seria algo semelhante à poesia de Mar Becker”. Um mundo que nasce da tensão entre silêncio e renomeação, revividos na língua.
Quanto à configuração na página, os poemas de Sal não têm nome, quer dizer, são poemas sem título e estão organizados em quinze seções, estas sim nomeadas. E há muitos poemas com versos esparsos, quer dizer, abaixo do verso, após a dobra da linha, não damos com um novo verso que se seguiu, mas com um vácuo, uma linha vazia, de modo que há muitas estrofes de um verso só, como neste poema da seção fugas:
em dezenas de milhões de anos, o fogo se consome numa estrela de porte
em oito horas, uma vida inteira se vai na flor do mandacaru
duas linhas de tempo
uma, do imenso
a outra, do ínfimo
(mas nada impede que uma hora
um dia qualquer, elas de repente se cruzem e narrem juntas
a história da dissolução)
e eu direi que de quando em quando
mesmo as maiores coisas
são tocadas pelas pequenas
direi que as palavras que conheço, em língua tão antiga
mesmo elas se calam neste segundo jovem
em que percorro seu nome
É uma boa ideia refazer a leitura desse poema, agora em voz alta. Fica aqui como sugestão, porque acho o poema de fato lindíssimo, e a leitura sonora feita com pausas só realça a sua força. Para além desses silêncios entre cada uma das estrofes de um só verso, ou ainda de brincar dizendo do poema que emergiu da memória branca referida na epígrafe do livro, carregando consigo ainda seus espaços vazios, podemos observar outros procedimentos ainda neste mesmo poema que se prolongam em outros e ensinam algo sobre a poética de Mar Becker.
Os espaços vazios reforçam o quanto cada verso é linha. E lemos “duas linhas de tempo” depois de terem sido definidas anteriormente em linhas separadas durações temporais quase reversas, a da estrela e a do mandacaru — uma explosão em dezenas de milhões de anos e uma morte em 1/3 de dia. Esses versos, linhas de tempo, se cruzam adiante conforme avisa a poeta — “(mas nada impede que uma hora/ um dia qualquer, elas de repente se cruzem e narrem juntas/ a história da dissolução)” — e florescem em fogo. Dito de outro modo, o poema se desdobra em uma sucessão de versos que no espaço da página não se cruzam, mas no sentido e nas imagens sim.
Os versos parecem ir se abrindo um sobre o outro, de modo que ao verso inicial que insere uma ordem de grandeza, “em dezenas de milhões de anos, o fogo se consome numa estrela de porte”, se interponham outros, colocando equivalências: “uma, do imenso”, depois “mesmo as maiores coisas”, até finalmente chegar a “mesmo elas [as maiores coisas] se calam neste segundo jovem”. Se estes são versos que organizam o imenso, de outro lado há as linhas que organizam o pequeno, o ínfimo: “em oito horas, uma vida inteira se vai na flor do mandacaru”, “a outra, do ínfimo”, “são tocadas pelas pequenas” e “em que percorro seu nome”.
O jogo de perspectiva entre o imenso e o mínimo acontece por meio de entrelaçamentos até o último verso do poema, “em que percorro seu nome”, cujo ponto de chegada é mínimo, um nome. O caminho traçado — e trançado — pela poeta a partir dessas linhas contendo temporalidades e lugares ora amplos, ora menores, nos coloca diante da ambivalência entre o épico e o lírico, entre a nomeação e o silêncio, entre a abertura ao universal e a atenção ao específico que perpassa todo o livro de Mar Becker. Os versos, afinal, cobrem as páginas e se desfolham em flor que nasce e morre em estrela e explode e se fixa na superfície.
Como um nome de alguém, “seu nome”, que percorrido e pronunciado emerge da memória branca, sedimentado, palavra antiga, que vem renovada à boca, viva, pedra de sal.