O milagre da invenção

Adolfo Bioy Casares nos leva para uma ilha de mistérios que se torna um desafio à razão
Adolfo Bioy Casares, autor de ‘A invenção de Morel’
27/01/2018

Muitas vezes, quando lemos um romance, por um vício herdado dos séculos passados ou da escola ou de ambos, procuramos em geral entender o que lemos. Convenhamos que, às vezes, é difícil. No entanto, talvez a experiência de leitura realmente libertadora seja aquela que nos afaste dessa necessidade, que nos mostre que não precisamos entender tudo o que lemos, ao menos não nesse sentido da razão. E acredito que A invenção de Morel (1940), primeiro romance (dos não renegados) de Adolfo Bioy Casares, é um dos textos que nos inserem nesse campo de dúvidas, apesar da aparente racionalização de seu enredo. Talvez só consigamos lê-lo se não entendermos nada como costumávamos entender, assim como o fugitivo na ilha, o espaço onde se dão os acontecimentos.

Antes de seguir com esse raciocínio, gostaria de relembrar alguns detalhes. Com certeza, um dos fatos mais memoráveis sobre o autor e esse romance é sua relação com Jorge Luis Borges, o aclamado escritor portenho com quem partilha algumas metas, como a promoção da literatura fantástica e a ligação forte com a cena intelectual de Buenos Aires, sendo dois dos responsáveis pelo chamado boom latino-americano. Não há biografia de Bioy Casares que não mencione logo de início o nome de seu amigo mais famoso, quase como se fosse um selo de garantia de qualidade. É evidente que, sim, existem muitas razões para associá-los, porém ainda é um problema vê-los juntos, quase nunca em pé de igualdade, com a balança pendendo para Borges.

Uma exceção nesse caso talvez seja, justamente, A invenção de Morel, que, com frequência, a crítica lembra que até mesmo Borges disse ser “perfeito”. Por essa qualificação, valida-se o livro de Bioy Casares no cânone da prosa argentina e até mundial, porém a consequência imediata é que toda interpretação da obra parece partir primeiro da leitura borgiana, disponível no prólogo do romance, para depois apresentar novos aspectos. Além disso, também, ao voltar o olhar somente para essa produção do autor, ignora-se quase todo o resto escrito por ele, salvo talvez os textos publicados em conjunto com Borges e Silvina Ocampo.

Qual é a relevância dessa discussão para a leitura do romance? Acredito que é pertinente pensar em sua recepção, em como se pensou nele como uma imbricada composição de um enredo fantástico de um suposto amor associado à crítica às novas tecnologias, assim facilmente explicado por uma frase, como uma síntese reducionista do prólogo de Borges. Contudo, é importante ir além dessa visão e recordar que o livro foi alvo de leituras fervorosas de outros críticos e leitores, motivo pelo qual depois foi muito traduzido mundo afora e também adaptado para outras formas artísticas e midiáticas. Alguns exemplos são sua adaptação para os quadrinhos, do francês Jean-Pierre Mourey, a série de televisão Lost, idealizada com base no romance, e o roteiro do filme O ano passado em Marienbad (1961), escrito por Alain Robbe-Grillet e dirigido por Alain Resnais. Certamente, este último, embora não seja de fato uma adaptação da obra de Bioy Casares, é a produção que mais dialoga com a perspectiva da qual quero partir, ainda que tenha suas peculiaridades.

Pontas desatadas
À parte de teorias, o que instiga, se comparado com outras narrativas, no romance de Bioy Casares é como as pontas não são atadas, apesar de parecer que tudo se explica. O romance se complica sem parar até o fim, de modo que o leitor, instigado pela ciência por trás da ilha e da “invenção” de outra personagem, Morel, acaba somente na dúvida entre a fé ou não naquilo em que leu. É uma narrativa que brinca com nosso conhecimento, com nossa vontade em entender e com nosso fascínio por uma tecnologia humana milagrosa e redentora em um local de tantos mistérios naturais. No entanto, ao tratarmos a dita invenção de Morel como milagre, como um objeto de difícil ou impossível explicação científica, cuja crença é baseada unicamente na fé, associamos ciência à religião. O fugitivo, a todo tempo, por mais que leia os papéis de Morel e faça descobertas sobre os procedimentos da criação, parece ficar cada vez mais confuso, mas ainda fascinado. Nota-se, inclusive, o aumento do número de vocábulos cristãos conforme lemos o livro. Mesmo sem entender as “razões lógicas” do invento, ainda resta uma esperança, uma profecia ao fugitivo: “E algum dia haverá um aparelho ainda mais completo”.

A ânsia por explicação, como disse, não vem só do leitor do romance, mas também do fugitivo diante da criação de Morel. Na verdade, sua vontade de compreender racionalmente o que acontece ao seu redor vai diminuindo, do início, quando analisava a natureza da ilha, as construções abandonadas, até sua obsessão pelo invento e pelo futuro prometido. Logo se vê a falência da razão, tão cara a alguém admirador das teses de Thomas Malthus como ele, diante das “explicações [que] demandam tanta imaginação”, mas que não o impedem de agir e se apropriar da tecnologia misteriosa. A ilha se torna, aos poucos, um ambiente de reinvenção também desse fugitivo, pela reconstituição de seu todo corpo, inclusive de sua mente, cada vez mais adaptada àquela realidade tão distinta. Nessa perspectiva, a “imaginação racional” vista por Borges no romance se torna mais uma espécie de delírio racional, uma interpretação que, de certa forma, nos impede de elaborar comparações talvez levianas como aquelas que veem na ficção borgiana um questionamento da ciência, enquanto na de Bioy Casares, uma reafirmação do método.

Se pensarmos nessas questões no percurso do autor, é interessante fazer uma ligeira comparação entre esse primeiro romance e o segundo (dos não renegados), Plano de fuga (1945). Destaca-se, é claro, a recepção do primeiro, muito mais fervorosa e também variada, mas ainda se vê a continuidade da busca por algo perto dessa “imaginação racional” que aponta Borges em seu prólogo. Bioy Casares busca aqui explorar essa relação com a ciência por um viés mais destrutivo, agora do ponto de vista da narrativa policial, em que uma personagem procura investigar o fantástico com que se depara (de novo) em uma ilha.

Acredito que, apesar da qualidade do segundo romance, talvez haja uma frustração para aqueles que busquem nessa obra uma repetição do efeito da anterior, algo que, sim, é provocado pela presença de elementos idênticos ou semelhantes, como uma ilha tropical, um cientista amador e sua invenção de meios duvidosos e fins interessantes. Entretanto, aqui, pela construção das vozes narrativas, não nos sentimos tão dentro da mente em reconstituição de uma personagem, como no caso do fugitivo do outro romance. De todo modo, o que se percebe é que, a partir desses primeiros textos, alguns traços distintivos da literatura de Bioy Casares logo se estabelecem e continuam em sua carreira.

Ao fim, o que se vê é que A invenção de Morel é apenas o começo, e não o fim da carreira literária de seu autor, daí a necessidade de lê-lo para além dessa obra, por vezes a única lembrada. Certamente, é um desafio ao entendimento e um livro que precisa ser revisitado com urgência, não apenas para retirá-lo do tédio das mesmas interpretações, mas também para que não seja visto como um texto datado. Ainda vivemos sob a égide da ciência, da tecnologia e da religião, e os limites entre esses campos não são tão claros quanto imaginamos. Como no romance de Bioy Casares, o conhecimento de um ser humano em uma ilha ainda pode se tornar toda uma realidade própria.

A invenção de Morel
Adolfo Bioy Casares
Trad.: Sérgio Molina
Biblioteca Azul
112 págs.
Adolfo Bioy Casares
Nascido em Buenos Aires, em 1914, de uma família de classe alta, desde cedo se dedicou à literatura e às línguas. Além de A invenção de Morel, publicou vários textos de prosa, em especial de 1940 à sua morte, em 1999; alguns deles em colaboração com Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, com quem foi casado. Também se voltou para o ensaio, às memórias e aos roteiros de cinema.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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