“Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.” A frase de Tolstói, em Ana Kariênina, me veio tão logo iniciei a leitura de Léxico familiar. Natalia Ginzburg reconstitui, com palavras, ações familiares: as ações de sua família. E os sofistas já diziam: o melhor que tem o homem é a palavra, o pior que tem o homem é a palavra. Quem substituir palavra por família também acertará o alvo.
Todo escritor terá em sua família um reservatório de histórias, basta admiti-las, o que, convenhamos, nem sempre é tarefa das mais fáceis, apesar de a teoria literária consegue diferenciar a autoficção da autobiografia.
Léxico familiar apresenta a memória de Natalia Ginzburg. No entanto, a forma primorosa com que a autora a renova torna o tema, aparentemente restrito àquela família, de alcance universal. O leitor entrará em contato com um cotidiano tecido em palavras, assim como o cotidiano pintado pelo holandês Vermeer. E, de algum modo, o leitor também se verá nas linhas e entrelinhas de Natalia.
O romance oferece ao leitor as impressões de uma família acerca do fascismo. Mas isso não fica restrito à simples análise. A família “põe a mão na massa”. Não se trata de um livro simples, mas acima de tudo crítico e de uma complexidade atraente. Uma obra fora de série, seja vista como autobiografia ou como romance.
Representante feminina do neo-realismo italiano do pós-guerra, Natalia Ginzburg trabalha com a linguagem direta neste Léxico familiar, com a predominância de diálogos desprovidos de pompa. As frases são carregadas de um naturalismo impressionante, sem com isso chegar ao superficialismo de uma novela de tevê. Os artificialismos literários que a teoria recomenda não são utilizados. A temática, aparentemente banal, é abordada de forma profunda. Invejável.
O que vem a ser este Léxico familiar? Romance, biografia? A autora consegue mostrar a junção de fatos reais e ficcionais no interior dessa obra? Mantém compromisso com a verdade, aspecto fundamental na escrita autobiográfica? Ginzburg faz uma advertência: “Embora extraído da realidade, acho que [este livro] deva ser lido como se fosse um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer”.
Segui a orientação a autora e o li como um livro de autoficção.
O foco do problema passou a ser a autora, um ser enunciativo, uma persona projetada pela autora real, que comanda as escolhas e estratégias envolvidas na construção da história, sem esquecer, no entanto, que a autoficção é ficção.
Léxico familiar conta a história de sua família, formada por judeus italianos. A autora não segue a linha cronológica dos acontecimentos, tampouco se demora em detalhes. Dispensa os casamentos e as mortes; ou melhor, comenta-os superficialmente. Sua atenção está voltada para o código que regula as relações entre os membros da sua família. São os detalhes, as maneiras de dizer as coisas, o tal do “léxico familiar”. Os hábitos de uma família incomum. Por exemplo: todos escreviam poemas — não eram necessárias efemérides ou ocasiões especiais —, estudavam línguas, cantavam e brigavam.
Natalia diz sobre seu pai:
Às refeições, costumava tecer comentários sobre as pessoas que vira durante o dia. Era muito severo em seus julgamentos e xingava todo mundo de imbecil. Para ele um imbecil era “um parvo”. — Pareceu-me um grande parvo — dizia, comentando sobre alguém que acabara de conhecer. Além dos “parvos” havia “os negros”. “Um negro”, para meu pai, era quem tinha maneiras deselegantes, estabanadas e tímidas, quem se vestia de modo impróprio, quem não sabia ir à montanha, quem não sabia línguas estrangeiras.
É este o léxico familiar composto de brigas, de dizeres conflitantes, de espontaneidade, um léxico onde as idiossincrasias são encaradas com naturalidade, as divergências não colocam em risco a união familiar, o amor acima de tudo.
“Nele há também muitas coisas que eu lembrava e que deixei de escrever” — natural, por mais que ela se disponha a desnudar sua família, reservas, silêncios e vazios são bem entendidos. É outra característica notável desta autora: o distanciamento dos acontecimentos. Mesmo daqueles em que, se não foi protagonista, atuou como coadjuvante em cenas das mais fortes. O leitor não encontrará os exageros sentimentalóides tão comuns na literatura atual. E não se trata de episódios banais. São trágicos, dramáticos. Vão da prisão dos irmãos ao seu próprio isolamento com os filhos, passam pelo esfacelamento familiar na guerra e culminam com a morte do primeiro marido, torturado na prisão. O peso de toda essa tragédia se dilui na brilhante narrativa de Natalia. Caberá ao leitor, finda a leitura, decifrar o enigma: Léxico familiar é um livro alegre ou um livro triste?
Adianto minha resposta. Um livro excelente.