Peço licença para propor uma resenha diferente. A começar por essa primeira frase, na qual faço um incomum uso de primeira pessoa. Assim seguirá. A quebra de protocolo se deve ao livro em questão, Dias perfeitos. Mentira. Deve-se, na verdade, ao autor, Raphael Montes. Seria desonesto atestar que nada tenho a ver com isso tudo. Logo entenderão. Convido-o resistir até o fim desta resenha subvertida e antecipo, desde já, que foi descomunal o esforço despendido para honrar vossa leitura. Não se engane, no entanto. Trata-se, essencialmente, de uma resenha. Sinopse, enredo, trama, crítica, constam abaixo. E algo mais.
Conheci Raphael na infância. Ele era um pouco mais novo, não importa quanto. Tornamo-nos melhores amigos e corríamos por entre as mesas de bares de Copacabana. Nossos pais frequentavam o Cervantes — o melhor sanduíche do Rio de Janeiro —, e por lá ficávamos até de madrugada. Saíam, trocando as pernas, e adoravam passar pelo Beco das Garrafas, onde, juntos, contavam a mesma história de Tom, Vinicius e a turma da Bossa Nova. Orgulhavam-se de terem assistido Maria Bethânia à frente de Opinião, comendo e matando o carcará.
Eu e Raphael entramos no mesmo ano para a faculdade. Direito, na UFRJ. Conhecemos Ritinha. Ela se apaixonou por mim. Raphael por ela. E nada mais foi o mesmo. Anos se passaram. Sem qualquer contato. Fui voltar a cruzar com Raphael por conta do romance policial Suicidas, escrito por ele e lançado em 2012. O burburinho em torno da obra me seduziu. Li em três dias. Avassalador.
Por se tratar de um texto de estreia, um grau de ansiedade paira no ar. Uma espécie de ejaculação precoce literária. Nada que o atrapalhe. O conteúdo, de grande impacto, toma conta do resto e faz estragos. Jovens trancados em um porão encaram uma roleta russa. As mães dos jovens prestam depoimento. O romance avança e regride. Um ritmo frenético, conduzido, surpreendentemente, com maestria pelo jovem Raphael, o melhor amigo que passou a me detestar quando namorei Ritinha, por três meses, apenas para tentar, ineficazmente, enciumá-lo.
Era preciso admitir que Raphael escrevia bem. As mórbidas cenas, recheadas de sangue, suor e necrofilia, provocam uma tensão no leitor (e, suspeita-se, tesão, em certa parcela). Perda de ar. Ele sabe exatamente onde provocar. Não. Ele sabia exatamente onde me provocar, e assim o fez. Ritinha aparece na história! Ela morre (o livro não diz respeito a quem morre ou deixa de morrer, portanto não se desanime com a informação).
Contei até dez. Entrei em contato com Raphael. Pedi explicações. Nada. O livro vendeu bem. Pegou o mercado de surpresa. Não precisava prestar quaisquer esclarecimentos para mim. E não prestou. Pediu para que eu me afastasse. Ameaçou-me. Revelou um lado cruel, que os 18 anos de convivências esconderam tão bem. Soube, então, desse Dias perfeitos, que acaba de invadir as prateleiras com uma tiragem inicial que deixaria (e deixou, possivelmente) Ferreira Gullar desconcertado.
Mais sutil
Sendo minha única forma de comunicação, mesmo que abstrata e distante, encarei a nova aventura. O Raphael de Suicidas mudou. Em Dias perfeitos, a dinâmica é outra. O tom macabro aparece mais sútil, enquanto o teor sexual ganha novas cores e foge dos tons de cinza. O terror psicológico do primeiro trabalho saiu da esfera mental e invadiu o físico. Assim como os jargões acadêmicos e a escrita formal, que agora tendem para o cult e para o despojado. As entrelinhas do primeiro trabalho são escancaradas no segundo.
Dias perfeitos versa sobre Téo. Um rapaz introspectivo, morador de Copacabana, que adora Pequena Miss Sunshine, Caetano Veloso e música clássica. Exatamente como Raphael. E digo com propriedade, afinal, como já ficou enfadonhamente claro, eu o conheci muito bem. Téo estuda medicina e nutre certo carinho por uma única pessoa, de nome Gertrudes: um cadáver que serve como cobaia para os experimentos e dissecações dos futuros médicos. Téo a idolatra.
Nem a mãe desperta tamanho afeto. Até a aparição da menina Clarice. A escolha do nome, certamente, remete a Clarice Lispector, de quem Raphael é fã. A referência à escritora ucraniana consta do texto, inclusive. Raphael adora essas brincadeiras. E, de fato, ele as faz muito bem. A ponto de trazê-las para a vida real. Se Raphael tiver filhos, irá chamá-los de Dante ou Cora. Aposto.
Clarice! Quase me esqueço. A menina surge em um despretensioso churrasco. Raphael, digo Téo, apareceu por lá sem querer, por imposição da mãe. A vida dele parece restrita a compromissos sociais, eventos mundanos e uma ausência absoluta de sensações. Apaixona-se. Patologicamente. Segue os passos de Clarice. Descobre onde ela estuda, onde mora, onde e quem come. Sequestra-a. Uma tentativa chula de desencadear na garota a síndrome de Estocolmo ou coisa que o valha.
A partir daí, o Raphael Montes, apontado como novo “príncipe dos horrores” da literatura nacional, assume as rédeas (o gatilho, seria mais apropriado) de vez. O sangue passa a ser elemento constante, assim como insinuações sexuais, escatologias e sugestões de cenários que beiram o indigerível. Aos adeptos do gênero, um deleite. Aos menos entusiasmados, fica uma expectativa pelo Raphael que joga com as referências, surpreende com uma frase inusitada e provoca sorrisos de satisfação, no canto da boca.
Quem jamais nos deixa é o Raphael capaz de constranger o leitor, que jaz encabulado, diante dos próprios fetiches, embora não os admita. Enquanto lemos, Raphael aparece ofegante, na nossa nuca e diz, ao pé do ouvido, com um hálito húmido e quente: “Eu sei o que você andou fazendo”. Amedronta.
Certamente, um medo que não deve ser superior ao de Clarice, em Dias perfeitos, amordaçada e dominada por Téo. O jovem tenta satisfazê-la como pode e acredita, absolutamente, que a faz um favor. A perversidade de Téo não é para consumo exclusivo de Clarice. A mãe dele sofre, uma vizinha, um ex-namorado de Clarice, o pai, o leitor. Tudo camuflado pela certeza doentia de que se pratica o bem.
Cada um dos locais pode onde Clarice e Téo passam (trata-se de um sequestro prófugo) são retirados de um roteiro escrito por Clarice, cuja qualidade não agrade Téo. Assim, generoso como acredita ser, leva a amada para melhor conhecer os cenários e, consequentemente, melhor escrever acerca deles. Teresópolis, Ilha Grande, Paraty. Todos no estado do Rio de Janeiro. Clarice padece em cada um, vítima de uma tortura infindável.
Teresópolis! Ler o nome das cidades incomodou-me. São as cidades favoritas de Raphael. Na verdade, o decorrer da leitura em si revelou uma série de coincidências que causaram estranhamento. Os detalhes, os nomes dos personagens, o modus operandi começaram a soar… reais. E Raphael parece gostar dessa impressão. Logo no início, admite aos quatro eventos que o escritor de ficção adora falar de si. Lista títulos de filmes e figuras excêntricas, como Woody Allen que, eu sei, ele adora. Chega a mencionar uma tradicional escola carioca. A mesma que frequentamos juntos, 20 anos atrás. A narrativa do livro, inclusive, parece justificar os atos sórdidos de Téo. Legitimá-los. A linha tênue entre o real e o inventivo desaparece, por demais.
Para não antecipar qualquer prazer, alguns segredos precisam permanecer sinistros, até que o leitor se aventure pelas páginas de Dias perfeitos. O desenrolar do sequestro, as consequências sofridas (ou não), os excessos, as avarezas, cabem a Raphael revelar.
Fantasmas
Encerrada a leitura e movida por um intenso saudosismo (e certa suspeita), busquei novo contato com Raphael. Pessoalmente. Não liguei. Sei qual teria sido a reação. A história de Ritinha nos rondava. Gostaria de apaziguar a situação. Fui ao prédio. Ele não estava. Esbarrei, no entanto, com Alessandro. Amigo das antigas e do mesmo grupo de outrora. Sentamos em um bar. Depois das frivolidades tradicionais, indaguei sobre fantasmas que andavam me perseguindo, desde o término de Dias perfeitos. O relato, a seguir, foi escrito e reescrito inúmeras vezes. É falho. As palavras não transparecem o medo que me acometeu. Desde então, carrego um opressivo tormento. Ei-lo.
“Você tem notícia de Teodoro, o Téo? Ele fazia direito. Era do prédio do Rapha”, perguntei a Alessandro, tentando não transparecer minha ansiedade. “Sei quem é assim, claro. Andava com a gente. Cara, você não soube?”, ele replicou. Diante da minha resposta negativa, seguiu: “Largou direito. Foi cursar cinema. Ele e o Rapha começaram a escrever um roteiro para um filme. Mas brigaram. Feio. Abandonaram a parada. O Téo deu uma sumida depois. Os pais se mudaram. Encontrei a Laura, irmã dele, alguns meses atrás. Lá na Lapa. Acabou me dizendo que o cara estava no Pinel, acredita?”. Alessandro estava se referindo ao hospital psiquiátrico Philippe Pinel, antigo hospício. O Téo era um interno, aparentemente.
Perplexo com o que acabara de escutar, pleiteei: “Preciso que me diga algo. Lembro do que se tratava esse roteiro?”. Ele percebeu minha inquietação, mas respondeu: “Não. Nunca li. Lembro-me do título, pois vi de relance no computador do Rapha, uma vez: Dias perfeitos”. Comecei a suar. A pressão baixou. “O que foi?”, Alessandro me indagou, mostrando ares de preocupação. Com os lábios pálidos, disse a verdade, ou parte dela: “Estou preocupado com o Raphael. Acho que ele…”. Alessandro me interrompeu. “Bobagem! Ele está em uma fase ótima. Lançando livro, escrevendo. Deu-se super bem aquele ali. Até namorada ele arranjou. Por isso que ele não está em casa. Foram passar o fim de semana em Teresópolis”. Gelei. “Ritinha?”, perguntei. Taquicardia. A boca seca. “Que Ritinha, rapaz! Uma tal de Clarice”.
Pausa longa. A pausa aqui requerida foi definida por Zofia Dudek, e parafraseada por Amity Gaige, como “silêncio comunicativo” (um nada que é alguma coisa). Quando o coração para e a verdade começa a aparecer.
Tudo escrito até aqui sobre minha relação com Raphael Montes é falsa. Não somos amigos de infância. Esbarrei com ele por conta de Suicidas, sobre o qual mantenho e ratifico o que escrevi acima. O mesmo vale para Dias perfeitos. Da mesma maneira que esta resenha, é preciso ler Raphael Montes até o último parágrafo. E que fique claro: a crueldade que atribuo ao autor é resultado, somente, de uma destreza literária. E não de sua personalidade real. Mas posso estar errado.