O matador do romance

Com 40 anos de atraso, livro do argentino Macedonio Fernández ganha uma edição brasileira
Macedonio Fernández por Robson Vilalba
01/05/2011

Esqueçam tudo o que vocês aprenderam ou leram e enquadraram na categoria de “romance”. A palavra, por si só, não diz muito: quer se referir a uma história de amor? A uma trama inventada? Pois como escreveu Macedonio Fernández, é indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo.

Essa é a premissa de Museu do Romance da Eterna (Museo de La Novela de La Eterna, no original em castelhano), a originalíssima prosa do autor argentino que chegou às livrarias brasileiras em edição da Cosac Naify com um atraso considerável. Mas estamos absolvidos, já que no seu próprio país, a Argentina, o tal romance só foi publicado 15 anos depois da morte de Macedonio. Mas isso, a publicação, foi em 1967. Nosso atraso, fazendo as contas, ultrapassa os 40 anos.

Outro problema que cerca o acontecimento literário do ano, como vem sendo classificado: a bela edição da casa paulistana, com tradução da pesquisadora de vanguardas Gênese Andrade e projeto gráfico de Elaine Ramos, que respeita o tom fragmentário de Macedonio, é uma raridade na Porto Alegre que diz amar os livros mais do que a qualquer outra coisa — salvo a intriga política, a intriga esportiva e a intriga intelectual. Pode ser achado (se não levei o único) em apenas uma livraria da cidade. De resto, por encomenda ou pela internet não é a mesma coisa.

Mas isso não vem ao caso, já que o livro de Macedonio não foi feito para ser publicado ou para ser lido. Pelo menos não como um romance convencional. Portanto, também não precisa ser buscado em livrarias nem necessita de resenhas que o expliquem ou, pior, que o classifiquem. Ou que tenham essa pretensão, já que Museu… parece mesmo inclassificável. O que nos leva à essência da obra desse argentino que está por trás, confessadamente, dos maiores autores que por aqui costumamos adorar, como Borges, Piglia, Bioy Casares, Cortázar: o paradoxo é seu combustível.

A começar pelo próprio romance em questão, que é postergado até o limite da razão com prólogos e prólogos (são 59 até o início “oficial” da trama, mais dois epílogos e um prólogo final) que versam sobre o autor, sobre os críticos, sobre os leitores, sobre a própria literatura, sobre vida e sobre morte. Depois, a ironia — ou antes, talvez, o próprio deboche — com os objetos que deveriam fazer parte do santuário literário: a narrativa, a concepção dos personagens, a publicação, o mercado, a crítica. Em suma, a própria existência cotidiana, a ponto de Macedonio investir no Não-Existente-Cavaleiro — “o único não existente personagem, que funciona por contraste como vitalizador dos demais”. Museu do Romance da Eterna é, assim, “um lar” para a não existência. Por isso a maior aspiração de Macedonio era tornar-se inédito.

Um parêntese: o livro, segundo informam os biógrafos de Macedonio, teria sido escrito ao longo de 50 anos, entre 1904 e os estertores do autor, que morreu em 1952, com quase 80 anos. De fato, ao que consta o autor argentino nunca pretendeu publicar Museu… e, durante o processo de escrita, fez inúmeras menções públicas ao seu conteúdo, como forma de levantar expectativas midiáticas mais do que vivo interesse pela literatura. Seria essa uma forma de desmascarar o mundo dos críticos, classificados por ele como “os eternos esperadores da Perfeição”?

Mas, se tudo parece complicado, e é, espere chegar até o romance propriamente dito. Os personagens são apenas arquétipos, como o Presidente, a Doce-Pessoa, o Simples, o Viajante, a Eterna. E têm plena consciência de que fazem parte de um romance, de que são conduzidos arbitrariamente pelo cenário “da estância O Romance”, onde se passa a ação — “um campo de uns cem hectares, em litígio eterno”, perto de Buenos Aires. Em suma, sabem que não existem, que não têm vida, embora trabalhem, rumem diariamente à capital e se encontrem no final do dia para voltar à estância, depois do expediente.

Aos saltos
Mas, se o livro em si de fato não existe, estamos diante também de um lar para a vitalidade (outro paradoxo) da livre expressão, já que um romance, tomado do seu ponto de vista clássico, não é propriamente um elogio à liberdade criativa, com suas regras bem definidas e seu conjunto de pressupostos quase marciais. O que dizer então da recomendação de Macedonio — depois adotada explicitamente por Cortázar em O jogo da amarelinha — de se ler “aos saltos”? Para, logo em seguida, confessar que gosta que o leiam “seguido”, apesar de ser um literato que pula páginas? De novo, os jogos de palavras e de situações paradoxais (que agora levam a Borges) conduzem o leitor a um esforço intelectual que é o verdadeiro prêmio para quem se deixa levar pela proposta de Macedonio: “Desconcertante, ocorreu ao salteado com um livro tão cheio de valas que não houve alternativa senão lê-lo seguido para manter a leitura desunida…”

É contra a ordem cartesiana do sistema literário, que inclui leitura, escritura e autoria, que se insurge Macedonio, um autor de vanguarda que concebeu Museu do Romance da Eterna ainda no final do século 19 com o firme propósito de estabelecer um divisor de águas entre obras de arte. No caso, entre romances ruins e romances bons. Pela ordem com que deixou seus originais, que não viu publicados — Macedonio editou apenas três livros em vida, todos depois dos 50 anos —, Museu…, pela recusa ao realismo e aos cânones narrativos do gênero, seria o primeiro “romance bom” da história. Seu livro anterior, Adriana Buenos Aires, seria o último ruim.

O conceito é mais uma provocação do autor, já que — ainda hoje, depois de tanto experimentalismo — o romance continua sendo um desafio, mesmo para os leitores mais tarimbados.A narrativa gira em torno da Eterna, uma alusão à imortalidade da musa do autor que, todavia, está de fato morta e que tentará retornar à vida pela ação dos personagens. O nome da estância — O Romance — é outra provocação, já que significa o local da ação e também o próprio gênero em litígio com Macedonio. Para quem reclama de um certo hermetismo do autor, o desfecho não poderia ser mais límpido: com as costas curvadas, “mais desgraçados do que foram não pode ter sido”, todos os personagens vão embora de O Romance (a estância) porque fracassaram na sua missão de dar vida. Não só à Eterna, mas ao próprio romance clássico.

LEIA texto sobre a relação de Macedonio e Borges.

LEIA entrevista com Mónica Bueno.

Museu do Romance da Eterna
Macedonio Fernández
Trad.: Gênese Andrade
Cosac Naify
266 págs.
Flávio Ilha

É jornalista.

Rascunho