O Marcos Rey adulto é infantil

Relançamento da obra do autor mostra uma mesmice de uísque e mulheres gostosas
Marcos Rey: pouca consistência e muita confusão
01/06/2003

Marcos Rey ganhou fama com Memórias de um gigolô, relançado agora pela Companhia das Letras. É pena. Apesar do sucesso, este é um de seus livros mais fracos. Consagrado na literatura infanto-juvenil, o autor teve uma incursão bastante irregular no texto adulto. Na média, o Marcos Rey adulto é infantil.

Mas não é de se estranhar que a escolha para relançar o autor tenha começado com Memórias de um gigolô (a Companhia das Letras já relançou também Ópera de sabão e prepara mais dois: Café na cama e Malditos paulistas). Memórias… virou minissérie da Globo, com atores como Lauro Corona, Bruna Lombardi e Ney Latorraca, o que lhe garantiu boa parte do sucesso. Como disse-me uma vez o espírito de Nelson Rodrigues, “a televisão é um veículo de quatro patas”, por isso a fragilidade do enredo e do texto de Memórias… passou despercebida na telinha.

O grande problema de romance está na construção do personagem principal, o gigolô Mariano, que recebe o tratamento de herói, por vezes injustiçado pela vida, e quase sempre endeusado por suas atividades noturnas. Nas linhas de Rey, circular por prostíbulos e beber uísque parecem exemplos de galhardia, coragem e inteligência.

Mesmo na ficção, há que se deixar levar pela história e acreditar que ela é possível. Esta verossimilhança depende muito da habilidade do autor. Marcos Rey faz o oposto com Mariano, exagerando em tudo que lhe diz respeito, tornando-o o cúmulo do inverossímil.

Segundo Rey, o gigolô foi inspirado em um personagem real da noite paulistana. Mariano seria o Mon Gigolo, popular nos prostíbulos da cidade nos anos 30. Pior ainda. Se o personagem existiu, Marcos Rey acreditou em tudo que lhe foi dito sobre ele, ou dito pelo próprio, pois há versões que o autor ouviu a história diretamente da fonte.

Criado por uma cartomante e depois adotado por uma cafetina, Mariano se apaixona pela jovem e sedutora meretriz Lu, a Virgem de Guadalupe. Como na maioria dos romances de Rey, a protagonista é sempre a mulher mais linda e gostosa do mundo e, caridosa, retribui a paixão dos heróis pobres e injustiçados criados pelo autor. Mas as reviravoltas na vida do casal principal são constantes, e entediantes, como um prolongado ensaio para um final feliz.

“Eu sentia-me felicíssimo passeando com Lu pelas praias. Os maridos em lua-de-mel olhavam para o físico de minha maruja e comparando-o ao de suas esposas ficavam frustrados, contraídos e entregavam-se definitivamente à bebida e ao onanismo. Dava-nos um prazer mórbido corroer a harmonia proletária dos nubentes.”

A sucessão de coincidências na trajetória de Mariano, a favor ou contra, é irritante. A lengalenga da vida do gigolô se repete no romance Café na cama, uma espécie de Memórias de um gigolô ao contrário. Nesta obra, o herói vira heroína, encarnada pela jovem e sedutora Norma, a mulher mais linda e gostosa do mundo. Ela sai de uma família pobre e conservadora para se tornar prostituta de luxo, desfilando então um rosário de amantes que tudo lhe oferecem em troca de seus afagos e amor eterno.

As peripécias de Norma, que depois vira a prostituta Sandra, depois vira a atriz Sylvana, são de fazer inveja a Mariano. Ela começa balconista de loja e termina como estrela de tevê e cinema. Mas, novamente, o grande tchan da história é beber uísque que, nos revelam os heróis de Marcos Rey, também serve para matar a sede.

Mas não é apenas a fragilidade dos personagens que desencanta em Memórias de um gigolô e Café na cama. O texto também é fraco, com frases desleixadas e metáforas risíveis. (“A vida é assim, um álbum de sala de jantar para a gente mostrar às visitas e o tempo vira sanfona, vira leite condensado quando se transforma em memória”).

A estrutura dos romances também é confusa, dando sinais de que o autor não os planejou. Foi escrevendo, escrevendo, até que achou o tamanho bom e resolveu encerrá-los. Mas o pior de tudo é a infeliz tentativa humorística em Memórias…. O gigolô Mariano mais parece um personagem de Chico Anísio, com texto de Jô Soares. Talvez tivesse graça nos anos 60, ou na paulicéia dos bons tempos, como sustenta a velha guarda ao falar dos romances de Marcos Rey, mas o fato é que as piadinhas de Memórias de um gigolô só fazem rir a claque colegial do Programa do Jô.

Há também quem diga que Marcos Rey inaugurou o gênero noir na literatura brasileira. Outra bobagem. Só se for o noir teen. O policialesco Malditos paulistas causa menos suspense que uma volta no trem fantasma de um parquinho de subúrbio.

Agora nosso herói é um motorista, jovem e sedutor, que por sinal bebe uísque como ninguém. Raul é tão bacana que a patroa o deixa entrar nos desfiles de moda que assiste, apesar do uniforme e do quepe. E, adivinhem, uma modelo linda se apaixona pelo motorista. A patroa, claro, fica com ciúmes. Mas a novidade agora é o noir. O motorista vai investigar as atividades ilícitas do patrão (ah, antes disso uma bela prostituta também se apaixona por ele) e descobre uma rede internacional de contrabando de pedras preciosas. O desfecho seria surpreendente, se fosse um livro infantil.

Sem qualquer demérito, Marcos Rey foi um brilhante escritor infanto-juvenil (para quem acredita em prêmios, o Livro do Ano do Prêmio Jabuti foi o infanto-juvenil Bichos que existem & bichos que não existem (Arthur Nestrovski; Cosac & Naify).

Rey escreveu obras célebres para o público jovem, como O menino que adivinhava, O Mistério do Cinco Estrelas, O rapto do garoto dourado e Enigma na televisão. No entanto, percebe-se em seus primeiros romances uma dificuldade em trocar de público.

Mas há que se fazer justiça a um escritor com mais de 6 milhões de exemplares vendidos (ainda que a maioria dos compradores seja adolescente). Rey mostrou amadurecimento literário com Ópera de sabão, de 1981. É um livro delicioso e bem-estruturado, sem dúvida o sei melhor romance. Há agora um enredo definido, uma boa história, e um texto mais caprichado.

O carreteiro Manfredo Manfredi quer vingar o suicídio de Getúlio Vargas matando Carlos Lacerda. Sua mulher Hilda é, no rádio, a Madame Zohra, que faz campanha contra o aborto, até que seu filho Lenine, usando o nome falso Odilo, engravida Celeste. O patrão de Lenine quer casar com a irmã do funcionário, trinta anos mais moça. O tímido Benito, o primogênito, único da família a comprar um imóvel, apaixona-se pela vedete Coca Giménez e vende o apartamento para pagar as noitadas e os presentes para a amada.

Neste livro, Marcos Rey soube amarrar os acontecimentos em torno da família Manfredi, sem deixar escapar as rédeas do romance. Até o humor ficou mais afinado, como a impagável cena em que Zohra traz Celeste para sua casa após incentivá-la a fazer um aborto, mas tem que a esconder de Lenine, pois a garota não sabe que o canalha que a engravidara é filho da Madame. Só que Manfredo Manfredi volta para casa depois de três dias com uma amante e o lar vira uma balbúrdia. Zohra descuida-se e Lenine encontra-se no quarto com Celeste, esta agarradinha, dançando e beijando Benito, que conhecera havia poucos minutos.

“Um grito fino, de gilete, que feriu todas as paredes da casa. Quanto a Benito, supôs que o grito, apesar do exagero vocal, não passava de manifestação de pudor duma donzela surpreendida numa dança pecaminosa.

— Acalme-se querida — disse-lhe Benito. — É apenas meu irmão. Ele não morde.

— Ele é seu irmão? Odilo, você é irmão dele?

— Você está equivocada, meu amor — sorriu Benito. — O nome dele é Lenine.”

Além de Ópera de sabão, o melhor de Marcos Rey está nos contos, infelizmente ignorados neste relançamento. O talento que falta em Memórias…, Café na cama e Malditos paulistas sobra nas narrativas curtas.

Aí, sim, pode-se dar ouvidos à claque de Marcos Rey, que vê no autor um grande retratista de pessoas e da vida urbana. Esta habilidade fica evidente em O cão da meia-noite, lançado pela Ática em 1997, dois anos antes da morte do escritor.

É incrível a diferença do texto de Marcos Rey em seus contos em relação aos romances. Há muito mais cuidado com as frases, com as palavras. Os personagens ganham vida pelos olhos observadores do autor.

A fábula O cão da meia-noite é de uma sensibilidade acre-doce. O protagonista disfarça a busca de um fim para a sua solidão, ainda que a companhia seja a de um cão de rua. Mas o animal, a quem chama de Augusto, não o quer, ferindo seu ego. “Não me faça desaforos, Augusto. Pensa que imploro sua companhia? Tenho amigos e já tive até uma amante. Para mim você não passa de um cão vagabundo. Posso ter muita gente para conversar. Escrevo para jornais e já publiquei um livro. E você? Quem é você, afinal de contas?”

A sátira também é contagiante no conto O adhemarista, com o taxista Moa, partidário ferrenho de Adhemar de Barros, disposto a encarar qualquer parada em defesa de seu candidato. Ou em Eu e meu fusca, um conto com leveza e bom humor, mas com um desfecho mais noir que todo o romance policial Malditos paulistas.

É mesmo pena que Marcos Rey tenha ficado famoso com Memórias de um gigolô que, com a cumplicidade da tevê e do cinema, obscureceu Ópera de sabão. É lamentável que o relançamento de parte de sua obra ignore seus contos. Se O cão da meia-noite estivesse no pacote da Companhia das Letras, quem sabe até esta resenha poderia ter começado menos ranzinza.

Memórias de um gigolô
Marcos Rey
Companhia das Letras
320 págs.
Ópera de sabão
Marcos Rey
Companhia das Letras
320 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho